Por M.A.K. Halliday, via Language as social semiotic: The social interpretation of language and meaning[i], traduzido por Gabriel Freitas
Em poucas páginas, pretendo resumir o que tem sido dito ou assumido sobre a forma como a língua expressa o sistema social. No curso da discussão, pretendo oferecer a visão de que a relação da língua com o sistema social não é meramente de expressão, mas uma relação dialética mais complexa, a partir da qual a língua simboliza o sistema social ativamente, de forma a criar o sistema social e, ao mesmo tempo, ser criada por ele. Pretendo, assim, indicar, mesmo que de forma superficial, a minha compreensão de língua como um sistema sociossemiótico.
[i] Texto disponível em HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. London & Baltimore: Edward Arnold & University Park Press, 1978.
Para fornecer uma base conceitual mínima, pretendo diferenciar entre (i) língua como sistema e (ii) língua como instituição. Sob a primeira perspectiva, destacam-se os fatos de que a língua é um sistema (a) estratificado (é um sistema de codificação de três níveis, consistindo de semântica, lexicogramática e fonologia) a (b) que possui um sistema semântico organizado em componentes funcionais (ideacional, incluindo experiencial e lógico; interpessoal; textual). Sob a perspectiva de língua como instituição, destaca-se o fato de que ela é variável; há dois tipos de variação: (a) de dialeto (variação de acordo com o usuário) e (b) de registro (variação de acordo com o uso). Certamente, tudo isto não passa de um construto idealizado; não existem fronteiras facilmente delimitáveis entre os fatos em si.
1 Língua como instituição
1.1 Dialeto
A dialetologia clássica, desenvolvida na Europa, caracteriza-se por certas suposições implícitas sobre falantes e comunidades de fala. Uma comunidade de fala é entendida como uma unidade social cujos membros (i) comunicam-se entre si, (ii) falam de uma forma consistente e (iii) falam de forma semelhante. Mais uma vez, uma visão idealizada; mas no tipo de comunidade rural estabelecida para o qual os estudos de dialetos foram desenvolvidos pela primeira vez, está próxima o suficiente da realidade para servir como uma norma teórica.
A variação dialetal, neste tipo de modelo, é caracterizada essencialmente como variação entre comunidades de fala. Talvez seja possível reconhecer alguma variação dentro da comunidade – escudeiro e pároco, ou senhorio e padre, provavelmente falam de maneira diferente de outras pessoas – mas esta é uma questão de pouca importância para os nossos propósitos aqui; e não encaramos a variação como algo que surge internamente à fala de um falante individual.
Quando a dialetologia se mudou para um ambiente urbano, com estudos como o de Labov da cidade de Nova York, a variação assumiu um novo significado. Labov mostrou que, dentro de uma típica comunidade urbana norte-americana, o discurso varia (i) entre os membros de acordo com a classe, e (ii) dentro de cada membro de acordo com a “escala de estilo” (quantidade de monitoramento ou atenção). O efeito de cada um desses fatores é quantitativo (portanto, de origem probabilística), mas o quadro é claro: quando variáveis de um único dialeto são isoladas para investigação intensiva, observa-se que elas são frutos da estratificação social. As formas da variável (“variantes”) são classificadas em uma ordem tal que a variante “alta” está associada a um status social mais alto ou a um contexto de fala mais formal, e a “baixa” a um status social mais baixo ou a um contexto de fala mais informal.
1.2 Dialeto social
Uma vez que variação dialetal é geograficamente determinada, podemos pensar: um grupo fica de um lado da montanha, o outro grupo se muda para o outro lado da montanha e eles não conversam mais entre si. Mas não existem montanhas dividindo classes sociais; membros de classes sociais diferentes conversam entre si, mesmo que em situações limitadas. Qual é a explicação para essa variação socialmente determinada? Como “dialetos sociais” surgem?
Uma das descobertas mais significantes de Labov foi a impressionante uniformidade observada em pessoas de todos os grupos sociais nas suas atitudes com relação à fala de outros. Esta uniformidade significa que os membros são altamente sensíveis ao significado social da variação dialetal, uma forma de sensibilidade que é aparentemente atingida durante os anos cruciais da adolescência, entre os 13 e 18 anos.
Adquirimos essa sensitividade no processo de crescer em sociedade, dado que variação dialetal é funcional com respeito à estrutura social. E é por isso que ela não desaparece. Após a Segunda Guerra Mundial, previu-se, com bastante confiança, que, com o aumento constante da dominação da mídia de massas, os dialetos desapareceriam e passaríamos a falar da mesma forma. Certamente, os dialetos de base regional das áreas rurais estão desaparecendo, ao menos nas sociedades industriais. Contudo, no caso dos dialetos urbanos, o oposto tem acontecido: a diversidade está aumentando. Podemos explicar este fato com a demonstração de que a diversidade é socialmente funcional. Ela expressa a estrutura da sociedade.
Seria um erro pensar que a estrutura social simplesmente em termos de um índice específico da classe social. A característica essencial da estrutura social, como a conhecemos, é a sua hierarquização; e a variação linguística é o que expressa esse caráter hierárquico, seja em termos de idade, geração, sexo ou qualquer uma dessas manifestações, incluindo classe.
Imaginemos uma sociedade perfeitamente homogênea, sem qualquer uma dessas formas de hierarquia social. Os membros de tal sociedade supostamente falariam uma língua perfeitamente homogênea, uma língua sem variação dialetal. Agora, imaginemos uma antítese hipotética: uma sociedade dividida em dois grupos em conflito, uma sociedade e uma antissociedade. Neste caso, é de se esperar que encontremos algum tipo de correspondência de ordem linguística: duas variedades linguísticas mutuamente opostas, uma língua e uma anti-língua. Mais uma vez, apenas construtos idealizados; porém, fenômenos que se aproximaram a estes dois surgiram em várias épocas e lugares. Por exemplo, as condições sociais da Inglaterra do século XVI geraram uma antissociedade de “vagabundos”, que viviam extorquindo riqueza da sociedade estabelecida; e esta sociedade tinha a sua anti-língua, cujos fragmentos podemos encontrar em documentos contemporâneos. A anti-língua é uma língua de conflito social – de resistência passiva ou oposição ativa; mas, ao mesmo tempo, como qualquer outra língua, é um meio para expressar e manter a estrutura social; neste caso, a estrutura da antissociedade.
Na maioria das vezes, o que encontramos na vida real são hierarquias de dialetos, padrões de variação de dialetal em que um “padrão” (representando a base de poder da sociedade) é posta em oposição às variedades que não correspondem a esse padrão (sobre as quais os membros se referem como “dialetos”). Os dialetos do último caso podem se tornar línguas de oposição e protesto; períodos de explícito conflito de classe tendem a ser caracterizados pelo desenvolvimentos de tais línguas de protesto, indo em direção à outra extensão do polo, das anti-línguas. Quando isso acontece, dialetos tornam-se um meio de expressão da consciência de classe e consciência política. Podemos reconhecer uma categoria de “línguas oprimidas”, línguas de grupos que são sujeitos à opressão social e política. É característico das línguas oprimidas que seus falantes tendem a se destacar na disputa e exibição verbal. O significado é muitas vezes a forma mais eficaz de ação social que se encontra disponível para eles.
1.3 Registro
Dialetos, no sentido usual do termo, são formas diferentes de dizer a mesma coisa. Em outras palavras, os dialetos de uma língua diferenciam-se ou fonologicamente ou lexicogramaticalmente[i], mas não, em princípio, semanticamente.
Nesse sentido, variação dialetal é contrastada com variação de outro tipo, a variação de registro. Registros são formas de dizer coisas diferentes. Registros se diferenciam semanticamente. Eles também se diferenciam lexicogramaticalmente, uma vez que é assim que os significados são expressados; mas diferenças lexicogramaticais entre registros, em grande medida, são consequências automáticas de diferenças semânticas. Em princípio, registros são configurações de significados que são trocados de forma típica – significados que estão “em risco”, podemos dizer assim – sob determinadas condições de uso.
Um dialeto é “o que você fala” (habitualmente); isso é determinado por “quem você é, seu local de origem e/ou adoção regional e/ou social. Um registro é “o que você está falando” (em um dado momento), determinado por “o que você está fazendo, a natureza da atividade social em curso. Enquanto que variação dialetal reflete a ordem social no sentido da hierarquia da estrutura social, a variação de registro também reflete a ordem social, mas de uma forma social – reflete a diversidade dos processos sociais. Não fazemos as mesmas coisas o tempo todo, de forma que falamos agora em um registro, depois em outro. Contudo, toda a extensão dos processos sociais em que qualquer membro normalmente se envolve é uma função da estrutura da sociedade. Cada um de nós tem o seu próprio repertório de ações sociais, refletindo nosso lugar no todo complexo das hierarquias sociais. Existe uma divisão de trabalho.
Uma vez que a divisão de trabalho é social, os dois tipos de variação linguística, de registro e de dialeto, estão intimamente interconectadas. A estruturada da sociedade determina quem, em termos das várias hierarquias de classe, geração, idade, sexo e outras, quem tem acesso a quais aspectos dos processos sociais – e, portanto, a quais registos. Por sua vez, isso significa que um registro específico tende a ser associado a um dialeto específico: os registros da burocracia, por exemplo, exigem um dialeto “padrão” (nacional), enquanto que a pesca e a agricultura tendem a se associar com as variedades rurais (locais). Portanto, o dialeto simboliza o registro; quando ouvimos o dialeto local, de forma inconsciente “desligamos” uma grande parte da nossa gama de registros.
Dessa forma, em uma típica estrutura social hierarquizada, o dialeto se torna um meio para que um membro tenha, ou não, acesso a certos registros. Então, se dizemos que a estrutura linguística reflete a estrutura social, o que estamos fazendo é designar à língua um papel que é muito passivo (embora eu esteja usando o termo “estrutura linguística” para manter o paralelo com “estrutura social”, na verdade me refiro ao sistema linguístico). Na verdade, seria mais adequado dizer que a estrutura linguística é a realização da estrutura social, simbolizando-a de forma ativa, em um processo de criatividade mútua. Uma vez que se encontra em uma posição de metáfora para a sociedade, a língua tem a propriedade de não apenas transmitir a ordem social, mas também de mantê-la e, potencialmente, mudá-la (o que é, sem dúvida alguma, a explicação das atitudes violentas que, sob certas condições sociais, são observadas por um grupo em relação à fala de outros. Um grupo distinto de vogais é percebido como o símbolo de um grupo diferente de valores e, portanto, assume a característica de uma ameaça). Variação na língua é a expressão simbólica da variação na sociedade: ela é criada pela sociedade e, por sua vez, ajuda a criar a sociedade. Um dos tipos de variação na língua, a de dialeto, expressa a diversidade da estrutura social; a variação de registro expressa a diversidade dos processos sociais. A interação de dialeto e registro na língua expressa a interação estrutura/processo na sociedade.
2 Língua como sistema
2.1 Função
Acabamos de considerar como a variação na língua é socialmente funcional. Agora, vamos considerar como o sistema linguístico é socialmente funcional.
O fato mais importante sobre a língua como sistema é a sua organização em componentes funcionais
É evidente que a língua é usada para uma multitude de formas diferentes, para uma multitude de propósitos diferentes. Não é possível enumerá-los; nem é necessário que tentemos: não haveria uma maneira de priorizar uma lista sobre outra. Essas várias formas de se usar a língua às vezes são referenciadas como “funções da língua”. Mas dizer que a língua tem muitas “funções”, nesse sentido, é o mesmo que as pessoas participam em uma variedade de ações sociais – que elas, juntas, fazem coisas diferentes.
Consideremos “funções” em um sentido mais fundamental, como um elemento necessário na interpretação do sistema linguístico. O sistema linguístico é orquestrado em diferentes modos de significado, e estes representam as suas orientações funcionais mais gerais. Não há dúvidas de que a língua evoluiu da forma como evoluiu por causa das formas em que é usada; os dois conceitos de função certamente se inter-relacionam. Contudo, se buscarmos explicar o funcionamento interno da língua, somos forçados a levar em consideração a sua relação externa com o contexto social.
Considerada em relação com a ordem social, a língua é um recurso, um potencial de significado. Formalmente, a língua tem essa propriedade: por isso, é um sistema de codificação de três níveis. Grande parte de sistemas dessa natureza possui dois níveis: um conteúdo e uma expressão. Por exemplo, os sinais de trânsito, com os conteúdo “parar/seguir” codificados nas expressões “vermelho/verde”. Por sua vez, a língua evoluiu um terceiro nível, abstrato e formal, posicionado entre o conteúdo e a expressão, sendo constituída de conteúdo, forma e expressão, ou, em termos linguísticos, de semântica, lexicogramática e fonologia. Agora, quando colocamos o conteúdo sob análise, o sistema semântico e a sua representação na gramática, percebemos que as funções sociais da língua são claramente refletidas na sua organização interna.
2.2 Componentes funcionais
O sistema semântico é organizado em um pequeno número de componentes – três ou quatro, dependendo da forma como os observamos -, de forma que dentro de um componente há um alto grau de interdependência e restrição mútua, enquanto que entre os componentes essas relações são muito fracas: cada um é relativamente independente dos outros. Os componentes podem ser identificados da seguinte forma:
1 ideacional (língua como construção), englobando
(a) experiencial (b) lógico
2 interpessoal (língua como ação)
3 textual (língua como tessitura, em relação ao ambiente)
Quando dizemos que esses componentes são relativamente independentes entre si, queremos dizer que as escolhas feitas dentro de um componentes, embora afetam consideravelmente pelas escolhas dentro do mesmo componentes, não afetam, ou tem um efeito muito fraco, nas escolhas feitas nos outros. Por exemplo, dado o potencial de significado do componente interpessoal, dentro das inúmeras escolhas disponíveis para mim, posso escolher (i) oferecer uma proposição, (ii) entoada de uma forma específica (por exemplo, um tom contraditório-defensivo), (iii) com uma intenção específica em relação a você (por exemplo, de convencimento), (iv) com uma avaliação específica de probabilidade (por exemplo, de certeza) e (v) com uma de uma atitude específica (por exemplo, de arrependimento). Perceba como todas essas escolhas fortemente se influenciam; se usássemos um modo de representação como uma rede, na forma como vemos na teoria sistêmica, poderíamos vê-las como padrões complexos de restrição interna entre as várias sub-redes. Contudo, estas escolhas quase não afetam os significados ideacionais, no conteúdo sobre o qual eu preciso te convencer, que pode ser sobre a Terra ser plana, Mozart ser um grande músico ou que estou com sono. De forma semelhante, os significados ideacionais não determinam os interpessoais; mas existe um alto grau de influência dentro do componente ideacional: o tipo de processo que eu escolho usar, os participantes no processo, as taxonomias das coisas e propriedades, as circunstâncias de tempo e espaço, bem como a lógica natural que conecta todos esses elementos em um todo coeso.
2.3 Componentes funcionais e estrutura gramatical
Até agora, tenho lidado com a questão a partir de um ponto de vista semântico, observando o problema como a interpretação do sistema semântico. Passemos a uma segunda abordagem, de um ponto de vista lexicogramatical – “de baixo”, digamos assim. Na interpretação do sistema lexicogramatical, nos encontramos de frente com um problema diferente, ou seja, o de explicar os diferentes tipos de estrutura que encontramos neste nível. Considerações sobre este problema estão além do nosso escopo aqui, porém, em uma rápida observação, percebemos que os vários tipos de estruturas gramaticais se relacionam aos componentes semânticos de uma forma sistemática. Cada tipo de significado tende a ser realizado por um tipo específico de estrutura. Portanto, na codificação de um texto, cada componente de significado contribui para o resultado estrutural; cada contribuição de uma estrutura específica é carimbada pelo tipo de significado específico ao qual se associa. Sendo assim, podemos resumir da seguinte forma[ii]:
Componentes funcionais | Tipo de estrutura gramatical pelo qual tende a ser realizado |
1 Ideacional
a) Experiential b) Lógico |
a) Segmental b) Recursiva |
2 Interpessoal | Prosódica |
3 Textual | Culminativa |
2.4 Componentes funcionais e contexto social
Ademais, podemos abordar a questão “de cima”, da perspectiva da língua e da ordem social – no nível que chamo de nível “sociossemiótico”. Quando investigamos a relação da língua com o contexto social, descobrimos que os componentes funcionais do sistema semântico, mais uma vez, fornecem a chave. Vimos que eles se relacionam aos diferentes tipos de estrutura gramatical. Há também uma relação semântica entre os componentes funcionais do sistema semântico a estrutura semiótica da situação de fala – em parte, é o que valida a noção de situação de fala.
Vamos assumir que o sistema social (ou a “cultura”) pode ser representada como uma construção de significados – como um sistema semiótico. Os significados que constituem um sistema social são trocados através de vários outros sistemas semióticos, sendo a língua um deles. A partir dessa noção sociossemiótica, um contexto social (ou “situação”) é um construto temporário ou instanciação de significado do sistema social. Um contexto social é uma estrutura semiótica que podemos interpretar de acordo com três variáveis: um “campo” de processos sociais (o que está acontecendo), uma “sintonia” das relações sociais (quem está interagindo) e um “modo” da interação simbólica (como os significados são trocados). Se focarmos na língua, a última categoria, a de “modo”, refere-se a que papel a língua está desempenhando em uma dada situação.
Como dito acima, os componentes do contexto se relacionam sistematicamente aos componentes do sistema semântico; e, reforço, uma vez que o contexto é um construto semiótico, essa relação pode ser vista como uma de realização. Os significados que constituem o contexto social são realizados através das relações no potencial de significado da língua. Resumindo:
Componentes do contexto social | Componentes funcional-semântico através do qual tende a ser realizado |
1 Campo (processo social) | experiencial |
2 Sintonia (relação social) | interpessoal |
3 Modo (modo simbólico) | textual |
O sistema linguístico, em outras palavras, organiza-se de tal forma que é possível prever o contexto social a partir do texto. É por isso que um membro consegue fazer as previsões necessárias sobre os significados que estão sendo trocados em qualquer situação que encontra. Se entrarmos em uma reunião, somos capazes de nos sincronizar muito rapidamente, porque avaliamos o campo, a sintonia e o modo da situação e, de uma vez só, formamos uma ideia dos significados prováveis. Dessa forma, sabemos as configurações semânticas – qual registro – provavelmente necessárias para participarmos. Se não fizermos isso, não há comunicação, uma vez que apenas uma parte dos significados que entendemos são explicitamente realizados pela lexicogramática; o resto permanece sem realização, são deixados de fora – ou, melhor dizendo, eles ficam fora de foco. Somos capazes de trocar significados porque temos acesso à estrutura semiótica da situação a partir de outras fontes.
3 Língua como um sistema sociossemiótico
3.1 Variação e significado social
A distinção entre língua como sistema e língua como instituição é importante para investigarmos os problemas da língua na sociedade. Mas estes são, na verdade, dois aspectos de um grupo de fenômenos mais gerais e, em qualquer interpretação da ordem social, precisamos uni-los.
Um passo importante nessa direção é dado pela teoria da variação. Anteriormente, dissemos que uma característica da língua como instituição é a sua variabilidade: grupos diferentes de falantes, ou os mesmos falantes em diferentes tarefas-papéis, usam dialetos e registros diferentes. Mas isso não significa que não há variação no sistema. Alguns linguistas negariam esse fato e explicariam todo tipo de variação institucionalmente. Outros (inclusive eu) entendem que isso enrijece de forma excessiva a distinção entre sistema e instituição; entendem que uma das grandes conquistas da dialetologia social foi mostrar que variações semelhantes às de dialeto são uma característica normal da fala do indivíduo, ao menos em algumas, mas possivelmente, em todas as comunidades. Em alguns contextos na língua, um falante vai selecionar, com uma certa probabilidade, uma variante entre um grupo pequeno de outras variantes, todas elas equivalentes no sentido de serem realizações alternativas da mesma configuração dos níveis superiores. As condições determinando essa probabilidade podem ser linguísticas, sociais ou uma combinação das duas. Para saber a probabilidade de um falante específico pronunciar uma certa variante de um som vocálico ou consonantal na pronúncia de uma palavra, tomamos o produto dos efeitos de condicionamento de uma série de variáveis como: a palavra é lexical ou estrutural? A palavra seguinte começa com uma vogal? A frase é temática? O falante está bravo? E o pai dele é membro da classe trabalhadora? (Claro, isso não se passa de uma caricatura, mas dá uma representação justa de como essas coisas acontecem).
Sendo assim, variação, que primeiramente reconhecemos como uma propriedade da língua como instituição (na forma de variação entre falantes, de um tipo dialetal), começa a aparecer como uma extensão da variação que é uma propriedade do sistema. Ou seja, um dialeto é apenas uma soma das variantes que possuem uma forte tendência de concorrer. A partir dessa perspectiva, compreende-se que a variação dialetal não é tanto assim consequência da estrutura social tanto quanto o é resultado da natureza inerente da língua em si.
Entretanto, isso é unilateral. Em última análise, o sistema linguístico é produto do sistema social; e, vista por esse ângulo, variações como a de dialeto em um indivíduo é um caso especial de variação entre indivíduos, não o contrário. O que quero destacar aqui, contudo, é que não há uma divisão clara entre a variação externamente condicionada, a chamada “sociolinguística”, que é encontrada na fala de um indivíduo, uma vez que é uma propriedade da língua como instituição, e as variações condicionadas puramente de forma interna que ocorre em uma parte específica do sistema linguístico (por exemplo, alternação morfofonêmica). Ambientes condicionadores podem ser de qualquer tipo; em resumo, não há uma descontinuidade entre fenômenos aparentemente diversos. Isso explica por que concluímos que toda variação é potencialmente significativa; qualquer grupo de alternantes pode (mas não precisa) se tornar o portador de informação e valor social.
3.2 Língua e realidade social
Muito além das noções de “língua como sistema” e “língua como instituição” há um conceito mais geral e unificador que eu chamo de “língua como sociossemiose”: língua no contexto da cultura como um sistema semiótico.
Consideremos a forma como uma criança constrói a sua realidade. Por meio da língua como um sistema – sua organização em níveis de codificação e componentes funcionais -, a criança constrói um modelo da troca de significado e aprende a construir as relações interpessoais, os fenômenos experienciais, as formas de lógica natural e os modos de interação simbólica em padrões coerentes do contexto social. Isso acontece enquanto a criança é muito jovem, e é o que torna possível para que ela aprenda a língua com sucesso – os dois processos andam juntos.
Por meio da língua como instituição – sua variação em dialetos e registros -, a criança constrói um modelo do sistema social. Isso demora um pouco para acontecer se compararmos ao aprendizado da gramática e da semântica (vejam o exemplo que Sankoff (1974) nos fornece, de que alguns padrões são primeiro aprendidos como categóricos e mais tarde são modificados para se tornarem variáveis), embora seja essencialmente parte de um processo unitário do desenvolvimento linguístico. Em termos mais amplo, a partir da variação de dialeto a criança aprende a construir os padrões da hierarquia social, e a partir da variação de registro tem acesso à estrutura do conhecimento.
Portanto, a língua, embora represente a realidade através das suas palavras e estruturas, também representa a realidade metaforicamente através da sua própria forma interna e externa. (1) A organização funcional da semântica simboliza a estrutura da interação humana (a estrutura semiótica dos contextos sociais). (2) Variações de dialeto e de registro simbolizam, respectivamente, a estrutura da sociedade e a estrutura do conhecimento humano.
Contudo, à medida que a língua se torna uma metáfora para a realidade, pelo mesmo processo a realidade se torna uma metáfora para a língua. Uma vez que a realidade é um construto social, ela pode ser construída apenas através de uma troca de significados, de forma que compreendemos que os significados são constitutivos da realidade. A partir de uma linguística sociológica, devemos ser capazes de chegar a uma interpretação da língua compreendendo o seu lugar na evolução de longo prazo do sistema social.
3.3 Considerações metodológicas
Tem sido comum entre linguistas representar a língua em termos de regras.
No processo de investigar a língua e o sistema social, é importante transcender essa limitação e interpretar a língua não como um grupo de regras, mas como um recurso. Ao longo deste texto, utilizei o termo “potencial de significado” para caracterizar a língua dessa forma.
Quando focamos a nossa atenção nos processos da interação humana, vemos o potencial de significado em ação. Nos encontros microsemióticos do dia a dia, encontramos pessoas fazendo uso criativo dos recursos de significado e continuamente modificando esses recursos no processo.
Portanto, para interpretar a língua, o conceito organizador que precisamos não é o de estrutura, mas de sistema. Grande parte dos linguistas recentes tem se limitado à estrutura (uma vez que a estrutura é o que é descrito por regras). Com a noção de sistema, podemos representar a língua como um recurso, em termos das escolhas disponíveis, a interconexão dessas escolhas e as condições afetando o acesso a essas escolhas. Usando redes sociossemânticas, podemos relacionar essas escolhas a contextos sociais reconhecíveis e significantes; e investigar perguntas que procuram compreender a influência de vários fatores sociais nos significados trocados, por exemplo, por pais e filhos. Os dados são os fatos observados do “texto-em-situação”: o que as pessoas falam na vida real, não deixando de lado o que elas pensam que podem falar e o que elas pensam que devem dizer (ou, melhor dizendo, o que elas significam, uma vez que falar é a única forma de significar). Contudo, para interpretarmos o que é observado, precisamos estabelecer relação com o sistema: (i) o sistema linguístico, que então ajuda a explicar, e (ii) ao contexto social, e através dele ao sistema social.
Após um período de estudo intensivo da língua como um construto filosófico idealizado, os linguistas passam a finalmente compreender que as pessoas falam umas com as outras. Para resolver os problemas puramente internos da sua própria história e estrutura, a língua teve que ser retirada da sua caixa de vidro empoeirada e posta de volta em um ambiente vivo – em um contexto de situação, como diria Malinowski[iii]. Contudo, cabe destacar que uma coisa é ter um componente “socio-” (ou seja, vida real) na explicação dos fatos da língua. Agora, é outra coisa completamente diferente procurar explicações que relacionam o sistema linguístico ao sistema social, de forma a trabalhar em direção a uma teoria geral da estrutura linguística e social.
Notas
[i] Na teoria Sistêmico-Funcional, inaugurada por Halliday e a que subsidia este texto, a lexicogramática é compreendida como o conjunto de recursos cuja função é construir os significados na forma de fraseados – a combinação da gramática e do léxico (vocabulário). Embora tradicionalmente a gramática e o léxico sejam vistos como componentes ou módulos distintos, a Teoria Sistêmico-Funcional entende que, na verdade, estamos lidando com o mesmo fenômeno. É a forma como se dá a observação desse fenômeno que vai determinar se privilegiamos a gramática ou o léxico: se nos localizamos em pontos mais (léxico) ou menos (gramática) delicados do sistema lexicogramatical. [N.T.].
[ii] Com o desenvolvimento da teoria desde a publicação deste texto, os tipos de estrutura gramatical foram atualizados da seguinte forma: Partícula/atomística; Recursiva; Campo/prosódica; Onda/culminativo-periódica. [N.T.].
[iii] Referência a Bronislaw Malinowski, a grande referência para Halliday compreender a importância do contexto na produção de significado. Malinowski enfatizou que o significado é uma função tanto do contexto de situação – o ambiente imediato para o desdobramento de uma situação – quanto do contexto mais amplo da cultura. [N.T.].