Por Vladimir Ilitch Ulianov Lênin Via Marxists.org. Traduzido por Octavio Augusto Potalej
No mesmo ano do fatídico Domingo Sangrento, Lênin aponta como a revolta do povo já abala o tsarismo e o obriga a fazer cada vez mais concessões, ao passo que também utiliza de mais violência para conter uma população que começa a enxergar sua própria força e capacidade para se libertar. Apesar de pouco menos de doze anos antes da vitoriosa revolução de outubro de 1917, já era possível ver traços fortes de uma nova sociedade russa no porvir.
As forças estão em equilíbrio, escrevemos há quinze dias[1], quando chegaram as primeiras notícias da greve política de toda a Rússia, e estava ficando evidente que o governo não ousaria fazer uso imediato de suas forças militares.
As forças estão em equilíbrio, nós repetimos uma semana atrás[2], quando o Manifesto de 17 de outubro era a última notícia política, anunciando a todo o povo e ao mundo em geral que o tsarismo estava nas garras da irresolução, e estava em retirada.
No entanto, o equilíbrio de forças não impede de forma alguma uma luta; pelo contrário, torna a luta mais aguda. O único objetivo do recuo do governo é, como já dissemos, permitir que ele escolha o que considera uma situação nova e mais favorável para uma batalha. A proclamação das “liberdades” que adornam o pedaço de papel conhecido como o Manifesto de 17 de Outubro é apenas uma tentativa de preparar as condições morais para uma luta contra a revolução, enquanto Trepov, à frente das Centenas Negras de toda a Rússia, prepara as condições materiais para essa luta.
O desfecho está próximo, a nova situação política está tomando forma em uma velocidade de tirar o fôlego, que marca apenas épocas revolucionárias. Em palavras, o governo começou a recuar, mas de fato começou imediatamente a se preparar para uma ofensiva. Promessas de uma constituição foram seguidas pelos mais brutais e feios atos de violência, que pareciam propositadamente planejados para dar ao povo uma lição objetiva do real significado do poder real da autocracia. O contraste entre promessas, palavras e pedaços de papel, por um lado, e os fatos da realidade, por outro, tornaram-se infinitamente mais manifestos. Os eventos começaram a fornecer confirmação de uma verdade que há muito proclamamos aos nossos leitores, e repetiremos de novo e de novo, a saber, até que o poder real do tsarismo seja derrubado, de que todas as suas concessões, e até mesmo uma assembleia constituinte, são um fantasma, uma miragem, uma fraude.
Os trabalhadores revolucionários de São Petersburgo deixam isso perfeitamente claro em um daqueles boletins diários[3] que ainda não chegaram até nós, mas são cada vez mais citados pelos jornais estrangeiros, espantados e assustados com o poder do proletariado. “Recebemos a liberdade de reunião”, escreveu o comitê de greve (estamos traduzindo do inglês de volta para o russo, então alguma imprecisão é inevitável na tradução), “mas nossas reuniões são cercadas por soldados. Foi-nos concedida a liberdade de imprensa, mas a censura continua. A liberdade de aprendizado foi prometida, mas a Universidade está ocupada por tropas. A inviolabilidade da pessoa foi prometida, mas as prisões estão lotadas de pessoas presas. Foi-nos concedido Witte, mas o Trepov ainda existe. Recebemos uma constituição, mas a autocracia ainda existe. Tudo nos foi concedido, mas nada temos”.
O “Manifesto” foi suspenso por Trepov. A constituição foi detida por Trepov. O real significado das liberdades concedidas foi esclarecido pelo mesmo Trepov. A anistia foi destroçada por Trepov.
Mas quem é esse Trepov? É alguma personalidade extraordinária, cuja remoção é de significado especial? Nada disso. Ele é apenas um policial comum, que está fazendo o trabalho diário da autocracia, com os militares e a polícia à sua disposição.
Por que esse típico policial e seu “trabalho” rotineiro de repente adquiriram uma importância tão extraordinária? É porque a revolução fez imensos progressos e aproximou o desfecho. Liderados pelo proletariado, o povo está se tornando politicamente mais maduro a cada dia, ou melhor, a cada hora, ou, se preferir, não a cada ano, mas a cada semana. Enquanto para um povo que estava politicamente adormecido, Trepov era apenas um típico policial, para um povo que se conscientizou de que é uma força política, ele se tornou insuportável, pois personifica toda a brutalidade, criminalidade e insensatez do tsarismo.
A revolução ensina. Fornece a todas as classes do povo e a todas as nações da Rússia excelentes lições objetivas sobre a natureza de uma constituição. A revolução ensina trazendo à tona as tarefas políticas imediatas e urgentes, em suas formas mais evidentes e convincentes; obriga as massas a realizar essas tarefas e torna impossível a própria existência do povo, sem o cumprimento dessas tarefas; desmascara a inutilidade de todas as pretensões, desculpas, promessas e reconhecimentos. “Recebemos tudo, mas não temos nada”. De fato, nos foram “concedidas” apenas promessas, uma vez que não temos o poder real. Chegamos perto da liberdade, obrigamos todos, até o tsar, a reconhecer a necessidade de liberdade. O que queremos, no entanto, não é o reconhecimento dessa necessidade, mas a própria liberdade. O que queremos não é um pedaço de papel com promessas de poderes legislativos para os representantes do povo, mas a real soberania do povo. Quanto mais nos aproximamos dessa soberania, mais intolerável se torna sua ausência. Quanto mais tentadores são os manifestos do tsar, mais insuportável é o seu governo.
A luta está se aproximando de seu desfecho, a resposta à questão de saber se o poder real deve permanecer com o governo do tsar. Quanto ao reconhecimento da revolução, agora é geralmente reconhecido. Foi reconhecida há muito tempo pelo Sr. Struve e a nobreza de Osvobozhdeniye. Agora é reconhecida pelo Sr. Witte e por Nicholas Romanov. “Prometo-lhe o que quiser”, diz o tsar, “apenas deixe-me manter o poder, deixe-me cumprir minhas próprias promessas”. Essa é a essência do Manifesto do tsar, e obviamente teve que desencadear uma luta determinada. “Eu lhe concedo tudo, exceto o poder”, declara o tsarismo. “Tudo é ilusório, exceto o poder”, responde o povo revolucionário.
O verdadeiro significado da aparente insensatez em que caíram os assuntos russos está no desejo do tsarismo de enganar o povo e evitar a revolução fazendo um acordo com a burguesia. O tsar está fazendo promessas cada vez maiores à burguesia, na esperança de que as classes proprietárias, ao homem, finalmente se voltem para a “lei e a ordem”. No entanto, embora essa “lei e ordem” seja exemplificada nos excessos de Trepov e suas Centenas Negras, o apelo do tsar provavelmente continuará sendo uma voz clamando no deserto. O tsar precisa de Witte e Trepov em igual medida – Witte para atrair alguns, e Trepov para intimidar outros; Witte para promessas, e Trepov para a ação; Witte para a burguesia, e Trepov para o proletariado. Diante de nossos olhos está se desenrolando novamente, só que desta vez em um nível muito mais alto de desenvolvimento, uma cena igual à testemunhada no início das greves de Moscou – os liberais estão negociando, enquanto os trabalhadores estão lutando.
Trepov tem uma excelente compreensão de seu papel e seu real significado. Ele pode ter sido um pouco precipitado demais para o diplomático Witte, mas tem medo de ser deixado para trás pelo rápido desenvolvimento da revolução. Ele foi até obrigado a se apressar, pois percebe que as forças à sua disposição estão diminuindo.
Simultaneamente com seu Manifesto sobre a Constituição, a autocracia começou a tomar medidas para impedir uma constituição. As Centenas Negras começaram a trabalhar de uma maneira que a Rússia nunca viu antes. Relatos de massacres, pogroms e atos de brutalidade sem precedentes estão chegando de todas as partes do país. O terror branco é galopante. Onde quer que possa, a polícia está incitando e organizando a escória da sociedade capitalista para pilhagem e violência, enchendo a escória da população urbana com álcool, encenando pogroms antijudaicos, exortando à violência contra “estudantes” e rebeldes e ajudando a “dar uma lição” aos membros do Zemstvo. A contrarrevolução está funcionando a todo vapor. Trepov provou ser digno de seu sal. Metralhadoras estão abrindo fogo (Odessa), olhos estão sendo apagados (Kiev), pessoas estão sendo arremessadas dos andares superiores para as ruas abaixo, casas estão sendo assaltadas e depois saqueadas, incêndios são iniciados e ninguém tem a permissão de expulsá-los, e aqueles que se atrevem a oferecer resistência Às Centenas Negras estão sendo abatidos. Da Polônia à Sibéria, das margens do Golfo da Finlândia ao Mar Negro – o quadro é o mesmo.
Mas simultaneamente a esta onda de brutalidade dos Centenas Negras, esta orgia encenada pela autocracia, estas últimas convulsões do monstro tsarista, novas investidas estão sendo lançadas pelo proletariado, que, como sempre, só parece acalmar-se depois de cada insurreição do movimento. Na verdade, está apenas reunindo suas forças e se preparando para negociar um golpe decisivo. Por razões já mencionadas, as atrocidades policiais na Rússia adquiriram um caráter bastante diferente do passado. Paralelamente às explosões de vingança cossaca e à vingança de Trepov, o poder do tsar está desintegrando rapidamente. Isso pode ser visto nas provinciais, na Finlândia e em São Petersburgo; é evidente nos lugares onde as pessoas são as mais oprimidas e as menos desenvolvidas politicamente, nas áreas marginais com população não russa, assim como na capital, que promete se tornar o cenário do maior drama da revolução.
De fato, compare as duas mensagens telegráficas a seguir, que citamos de um jornal liberal burguês de Viena[4]: “Tver. As instalações do Zamstvo foram atacadas por uma multidão na presença do governador Sleptsov. Após um cerco, a multidão incendiou o prédio. Os bombeiros se recusaram a extinguir as chamas, enquanto as tropas ficaram paradas sem tomar nenhuma medida para conter os rufiões”. (É claro que não podemos garantir a precisão absoluta deste relato em particular, mas é um fato inegável que coisas semelhantes, e outras cem vezes piores, estão sendo perpetradas por todos os lados). “Kazan. A polícia foi desarmada pelo povo. Armas retiradas da polícia foram distribuídas entre a população. Uma milícia popular foi criada. A ordem perfeita prevalece”.
A comparação desses dois relatos não é instrutiva? Em um caso há vingança, atrocidades e pogroms; no outro, a autoridade do tsar foi derrubada e uma revolta vitoriosa foi organizada.
A Finlândia apresenta um quadro semelhante, apenas numa escala muito maior. O vice-rei do tsar foi expulso e os senadores lacaios removidos pelo povo. Os gendarmes russos estão sendo expulsos e estão tentando fazer represálias (um telegrama de Haparanda, datado de 4 de novembro, N. S.) por danos às comunicações ferroviárias. Nesses casos, são enviados destacamentos armados da milícia popular para prender os gendarmes desordeiros. Uma reunião de cidadãos de Tornio decidiu organizar a importação de armas e literatura gratuita. Milhares e centenas de milhares na cidade e no campo estão se alistando na milícia finlandesa. A guarnição russa de uma fortaleza forte (Sveaborg) teria expressado simpatia pelos insurgentes e entregado a fortaleza à milícia popular. A Finlândia está regozijando-se. O tsar está fazendo concessões. Ele está disposto a convocar a Dieta, revogou o manifesto ilegal de 15 de fevereiro de 1899 e aceitou a “renúncia” dos senadores depostos pelo povo. Enquanto isso, Novoye Vremya está aconselhando o governo a bloquear todos os portos finlandeses e esmagar a revolta pela força armada. De acordo com relatos da imprensa estrangeira, numerosas tropas russas foram alojadas em Helsingfors (não se pode determinar até que ponto se pode contar com elas para esmagar a revolta). Há relatos de que navios de guerra russos entraram no porto interno de Helsingfors.
São Petersburgo. Aqui Trepov está se vingando da alegria do povo revolucionário (pelas concessões arrancadas do tsar). Atrocidades estão sendo perpetradas pelos cossacos e os massacres estão aumentando. A polícia está organizando abertamente as Centenas Negras. Os trabalhadores pretendiam realizar uma gigantesca manifestação no domingo, 5 de novembro (23 de outubro), para homenagear publicamente seus heróis, seus companheiros tombados na luta pela liberdade. Por sua vez, o governo preparou um gigantesco banho de sangue. Estava preparando para São Petersburgo algo semelhante ao que já havia ocorrido em menor escala em Moscou (o massacre no funeral de Bauman, o líder operário). Trepov queria tirar vantagem da situação antes que suas forças fossem enfraquecidas pelo envio de parte delas para a Finlândia, e enquanto os trabalhadores se preparavam para se manifestar, não para lutar.
Os trabalhadores de São Petersburgo perceberam o esquema do inimigo e a manifestação foi cancelada. O comitê de trabalhadores decidiu que a batalha final não deveria ocorrer no momento em que Trepov se dignasse escolher. O comitê estava certo em pensar que uma série de razões (incluindo a revolta na Finlândia) tornaram o adiamento da luta desvantajoso para Trepov e vantajoso para nós. Enquanto isso, o armamento do povo prosseguiu rapidamente, e a propaganda no exército teve um sucesso notável. Cento e cinquenta classificações do 14º e do 18º Depósitos Navais foram presos e, durante a última semana e meia, noventa e dois relatórios foram apresentados sobre a simpatia pelos revolucionários mostrada pelos oficiais. Folhetos pedindo aos soldados que passem para o lado do povo estão sendo distribuídos até mesmo entre as patrulhas que “guardam” São Petersburgo. A liberdade de imprensa, prometida dentro dos limites prescritos por Trepov, está sendo ampliada em maior grau pelo poderoso braço do proletariado revolucionário. De acordo com mensagens da imprensa estrangeira, apenas os jornais de São Petersburgo saíram no sábado, 22 de outubro (4 de novembro), que aceitaram a exigência dos trabalhadores de ignorar a censura. Dois jornais de língua alemã de São Petersburgo que desejavam permanecer “leais” (ou seja, servis) não puderam sair. A partir do momento em que o sindicato dos grevistas de São Petersburgo, mas não Trepov, começou a determinar os limites da legalidade, os jornais “legais” começaram a falar em tons extremamente ousados. “A greve foi apenas suspensa”, diz um telegrama ao Neue Freie Presse de 23 de outubro (5 de novembro). “A greve, é relatado, será retomada quando chegar a hora de um golpe final na velha ordem. As concessões já não causam a menor impressão no proletariado. A situação é altamente perigosa. As ideias revolucionárias estão ganhando cada vez mais força nas massas. A classe trabalhadora sente que é dona da situação. Aqueles que têm medo do desastre iminente estão começando a deixar a cidade [São Petersburgo]”.
O desenlace está próximo. A vitória da revolta popular não está longe agora. Os slogans da social-democracia revolucionária estão sendo postos em prática com uma rapidez inesperada. Que Trepov continue correndo de um lado para o outro entre a Finlândia revolucionária e a revolucionária São Petersburgo, entre as áreas marginais revolucionárias e as províncias revolucionárias. Deixe-o tentar escolher um único lugar seguro para operações militares desimpedidas. Que o Manifesto do tsar circule mais amplamente; que as notícias dos eventos nos centros revolucionários se tornam mais difundidas – isso nos conquistará novos apoiadores e trará novas vacilações e desintegração nas fileiras cada vez menores de adeptos do tsar.
A greve política de toda a Rússia cumpriu com excelência suas tarefas ao promover a insurreição, infligindo terríveis feriadas ao tsarismo e frustrando a repugnante comédia da repugnante Duma do Estado. O ensaio geral acabou. As indicações são de que estamos agora às vésperas do drama em si. Witte está chafurdando em uma enxurrada de palavras, enquanto Trepov está chafurdando em rios de sangue. O tsar está com falta de promessas que ainda pode fazer, enquanto Trepov está com falta de forças das Centenas Negras que ele poderia enviar para a batalha final. As fileiras do exército da revolução estão aumentando o tempo todo. Suas forças estão sendo reforçadas em combates individuais, e a bandeira vermelha está subindo cada vez mais alto sobre a nova Rússia.
Notas
[1] LÊNIN, Vladmir Ilitch Ulianov. Lenin Collected Works. Moscou: Progress Publishers, 1972, v. 9, pp. 394-395.
[2] Ibidem, p. 428.
[3] Lênin está se referindo ao Izvestia Sovieta Rabochikh Deputatov (Boletim do Soviete de Deputados Operários) – órgão oficial do Soviete de Deputados Operários de São Petersburgo, publicado de 17 de outubro (30) até 14 de dezembro (27) de 1905. Foi composto e impresso pelos trabalhadores das gráficas de vários jornais burgueses. Ao todo, apareceram dez edições, sendo a décima primeira confiscada pela polícia enquanto estava sendo impressa.
[4] A referência é ao Neue Freire Presse, um jornal liberal-burguês, publicado em Viena a partir de 1864.