Por Robin D. G. Kelley via Boston Review. Traduzido por Anna De Ruijter
A ameaça do fascismo cresceu diante dos nossos olhos. Black Marxism nos ajuda a combatê-la com maior clareza, com uma concepção mais abrangente da tarefa diante de nós e com ainda mais perguntas.
O texto a seguir é uma adaptação do prefácio de Robin D. G. Kelley para a terceira edição de Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition lançada em 2021. Nele, Kelley traça as principais contribuições dessa obra que, apesar de sua imensurável importância e impacto em diversos campos de estudo, segue pouco conhecida e pouco debatida. No Brasil, a invisibilidade da obra é agravada pela falta de traduções no português. O intuito com essa tradução é contribuir, mesmo que em pequena escala, a difundir o pensamento de Cedric Robinson a partir de outros autores também merecedores de atenção, enquanto esperamos pela tradução de sua obra no português. Quem sabe, ao discutirmos cada vez mais o legado de Black Marxism, nosso mercado editorial não se convença de que já passou da hora de sua tradução e que, infelizmente, tal atraso reflete um problema muito maior.
A inspiração de trazer uma nova edição do clássico de Cedric Robinson, Marxismo Negro: A construção da Tradição Radical Negra[1], veio das aproximadas 26 milhões de pessoas que tomaram as ruas durante a primavera e o verão de 2020 para protestar os assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor, Ahmaud Arbery, e muitos outros que perderam suas vidas para a polícia. Durante esse período, o mundo testemunhou a Tradição Radical Negra em movimento, liderando o que foi, provavelmente, a mais dinâmica rebelião em massa contra a violência estatal sancionada e o capitalismo racial que nós vimos na América do Norte desde os anos 1960 – talvez desde os anos 1860. Os ativistas mais ousados demandaram a abolição da polícia e das prisões, e a transferência dos recursos que financiam a polícia e as prisões para moradia, sistema de saúde universal, trabalhos com salário mínimo, renda básica universal, energia verde e para um sistema de justiça reparativo. Esses novos abolicionistas não estão interessados em tornar o capitalismo mais justo, mais seguro e menos racista – eles sabem que isso é impossível. Eles querem pôr um fim ao “capitalismo racial”.
A reação do Estado a esses protestos também nos trouxe ao precipício do fascismo. Os protestos organizados nas ruas e em lugares públicos, em campi, dentro de prisões, em câmaras e tribunais e estações policiais, diagnosticaram a ascensão de um estado policial nos Estados Unidos. Nos últimos anos, o Movimento pelas Vidas Negras[2] e as dezenas de organizações aliadas alertaram o país para o fato de que estávamos fadados a um estado fascista se não acabássemos com a violência sancionada pelo Estado e com o encarceramento em massa de pessoas negras e pardas[3]. Estes avisos foram realizados antes da eleição de Trump. Na medida em que os protestos diminuíram e o COVID-19 entrou numa segunda e mais fatal onda, a ameaça fascista cresceu bem diante de nossos olhos. Nós vimos milícias brancas armadas atirarem em manifestantes; Trump e seus assistentes tentarem se manter no poder apesar de terem perdido as eleições; o governo federal desenvolver uma força armada para suprimir dissidentes, realizar batidas policiais e deportar trabalhadores ilegais e intimidar o público; e, mais recentemente, a violenta insurreição no Capitólio dos EUA de membros da extrema direita, racistas, neo-nazis e gangues fascistas variadas cujos participantes incluíam policiais fora de serviço, militares ativos e veteranos. A ameaça do fascismo não é mais retórica, uma designação oca. Ela é real.
A encruzilhada em que a revolta Negra e o fascismo se encontram é precisamente o espaço em que os principais interlocutores de Cedric vão achar a Tradição Radical Negra. O Marxismo Negro é, em parte, sobre uma antiga geração de antifascistas negros, escrito no alvorecer de uma ordem de direita, neoliberal global, que um teórico político chamou de era do “fascismo amigável”.
O que Robinson quis dizer com a Tradição Radical Negra, e por que é algo relevante agora? Contrariamente à crença popular, Black Marxism foi principalmente sobre a revolta Negra, não capitalismo racial. Robinson reprova Marx e Engels por subestimarem a força material da ideologia racial na consciência proletária, e por confundirem a classe trabalhadora inglesa com os trabalhadores do mundo todo. Em seu prefácio para a edição de 2000 de Marxismo Negro, Cedric escreveu, “O internacionalismo marxista não era global; o seu materialismo se expôs como um explanador insuficiente das forças sociais e culturais; e seu determinismo econômico muito frequentemente comprometeu politicamente lutas por liberdade para além ou fora da metrópole”. Trata-se de uma baita de uma observação. Muitos contra-argumentariam apontando para os escritos de Marx sobre a Índia, os Estados Unidos, Rússia, escravidão, colonialismo, imperialismo e campesinato. Outros argumentariam que o próprio Marx alegou apenas compreender o desenvolvimento capitalista na Europa Ocidental. Mas, porque nem Marx, nem Engels, consideraram as colônias e as suas plantations centrais aos processos do capitalismo moderno, as lutas de classe dentro do regime de escravidão ou as rebeliões campesinas dentro da ordem colonial foram ignoradas ou descartadas como sendo subdesenvolvidas ou periféricas – especialmente uma vez que elas não se pareciam em nada com o humanismo radical secular de 1848 e 1789.
O ponto de Cedric é que Marx e Engels ignoraram a significância da revolta no resto do mundo, especificamente as empenhadas por povos não ocidentais, que compõem a vasta maioria da força de trabalho não livre e não industrial do mundo. Trabalhadores não livres na África, nas Américas, na Ásia, e nas ilhas do mar estavam produzindo a maior parte da mais-valia para um sistema-mundo do capitalismo racial, mas a fonte ideológica de suas revoltas não era o modo de produção. Africanos sequestrados e arrastados para esse sistema foram arrancados de “superestruturas” com crenças, morais, cosmologias, metafísicas e tradições intelectuais radicalmente diferentes. Robinson observa,
Marx não percebeu inteiramente que os carregamentos de trabalhadores também continham culturas africanas, misturas críticas e misturas de linguagem e pensamento, de cosmologia e metafísica, de hábitos, crenças e moral. Estes eram os verdadeiros termos de sua humanidade. Estes carregamentos, portanto, não consistiram em isolados intelectuais ou de espaços em branco sem cultura – homens, mulheres e crianças separados de seu universo. O trabalho africano trouxe o passado consigo, um passado que o produziu e estabeleceu nele os primeiros elementos de consciência e compreensão.
Com essa observação, Robinson revela a história secreta da tradição radical Negra, que ele descreve como “uma consciência revolucionária que procede de toda a experiência histórica do povo preto”. A Tradição Radical Negra desafia os esforços do capitalismo racial em reencenar a vida social africana e de gerar novas categorias da experiência humana despidas das consciências históricas que são embutidas na cultura. Robinson traça as raízes do pensamento radical Negro a uma epistemologia compartilhada entre diferentes povos africanos. Argumentando que as primeiras ondas das revoltas do Novo Mundo africano foram guiadas não por uma crítica cujas raízes estavam em concepções ocidentais de liberdade, mas por uma total rejeição da escravidão e do racismo como eram experienciados. Por trás dessas revoltas não estavam homens carismáticos, mas, comumente, mulheres. Na verdade, a formações horizontais lideradas por mulheres e a comunidade queer, que estão atualmente na linha de frente da resistência da violência estatal e do capitalismo racial, estão mais sintonizadas com a Tradição Radical Negra do que com as organizações por direitos civis.
Africanos escolheram a fuga e o quilombismo porque não estavam interessados em transformar a sociedade ocidental, mas em encontrar um caminho de volta para “casa”, mesmo que isso significasse a morte. Mesmo assim, o advento do colonialismo formal e a incorporação do trabalho negro em uma estrutura social inteiramente governada produziram a “burguesia nativa”, os intelectuais negros cujas posições dentro das estruturas política, educacional e burocráticas da ordem colonial e racial dominantes lhes conferiram maior acesso à vida e pensamento europeu. Seu papel contraditório enquanto descendentes de escravizados, vítimas da dominação racial, e ferramentas do império, compeliu alguns desses homens e mulheres a se rebelarem, assim produzindo a intelligentsia Negra radical. Essa intelligentsia ocupa a última seção do Marxismo Negro. Robinson revela como W. E. B. Du Bois, C. L. R. James e Richard Wright, ao confrontarem os movimentos de massa Negros, revisaram o Marxismo Ocidental ou romperam com ele de vez. A maneira com que eles chegaram à Tradição Radical Negra foi mais um ato de reconhecimento do que de invenção; eles descobriram uma teoria do radicalismo Negro a partir do que encontraram nos movimentos de massa Negros.
A seção final também tem sido uma fonte de confusão e mal interpretação. Marxismo Negro não é um livro sobre “marxistas negros” ou sobre a maneira com que os intelectuais negros “melhoraram” o Marxismo ao se atentarem para raça. Isto é um mal entendido fundamental que tem levado mesmo os leitores mais simpatizantes a tratarem a Tradição Radical Negra como uma lista de nossos intelectuais radicais negros favoritos. Não seria Frantz Fanon parte da Tradição Radical Negra? E Claudia Jones? Por que não Walter Rodney? Onde estão os Marxistas africanos? Claramente Cedric teria concordado que essas e outras figuras seriam produtos da – e teriam contribuído com – a Tradição Radical Negra. Como ele humildemente encerrou seu prefácio para a edição de 2000, “Não foi nunca meu propósito esgotar o assunto, apenas sugerir que estava lá”.
A Tradição Radical Negra não é uma lista de grandes hits. Cedric foi claro sobre o fato de que os intelectuais Negros ao centro deste trabalho não eram a Tradição Radical Negra, e nem estavam localizados fora dela – através da práxis eles a descobriram. Ou, melhor, eles foram tomados por ela. E, até onde Cedric estava preocupado, às vezes os intelectuais negros sobre quem escreveu ficaram aquém. O Marxismo foi para eles o caminho rumo à descoberta, mas apreender a Tradição Radical Negra exigia um rompimento com o materialismo histórico de Marx e Engels.
O Marxismo Negro não é nem marxista, nem antimarxista. Trata-se de uma crítica dialética do Marxismo que se volta à longa história da revolta Negra – e aos intelectuais negros que se voltaram à história da revolta Negra – para construir uma teoria da revolução e interpretação da história do mundo moderno totalmente original.
Quando a impressa Zed Press localizada em Londres publicou Marxismo Negro em 1983, poucos podiam ter previsto o impacto que teria na teoria política, na economia política, na análise histórica, nos estudos raciais, nos estudos marxistas e no nosso entendimento mais amplo sobre a ascensão do mundo moderno. Pois Marxismo Negro apareceu com pouca algazarra. Por muitos anos foi tratado como uma curiosidade, grossamente mal entendido ou simplesmente ignorado. Dado seu atual “renascimento”, alguns podem argumentar que Marxismo Negro estava à frente de seu tempo. Ou, parafraseando o sociólogo George Lipsitz ao citar o ativista Ivory Perry, talvez Cedric estava no tempo certo mas o resto de nós é que estávamos atrasados? De fato, como determinamos onde nos encontramos depende de nossa concepção sobre o tempo.
Cedric desafiou o materialismo histórico de Marx, em parte, por sua concepção de tempo e temporalidade. De The Terms of Order até An Anthropology of Marxism, Cedric consistentemente criticou o marxismo por sua fidelidade à uma visão estática da história e do tempo como linear ou teleológico, e rejeitou a crença de que as revoltas ocorrem em certos estágios ou somente quando as condições objetivas estão “maduras”. Mesmo assim, havia algo em Cedric – talvez a noção de fé de seu avô – que o relacionava com certos elementos utópicos do Marxismo, notavelmente o comprometimento com o tempo escatológico, ou ideia do “fim dos tempos” enraizada em antigas noções cristãs de profecia. Qualquer um que tenha lido o Manifesto Comunista ou cantado A Internationale irá reconhecer a promessa da vitória proletária e de um futuro socialista. Por um lado, Robinson considerava a ausência de “uma promessa de um certo futuro” uma característica única do radicalismo Negro. “Somente quando aquele radicalismo está fantasiado ou se encontra envolto em um Cristianismo Negro”, ele explica em uma aula de 2012, “é que há uma certeza. Se não, trata-se de um tipo de resistência que não promete triunfo ou vitória no fim, apenas libertação. Nenhum embrulho bonito ao final, somente o fato que você seria livre…apenas a promessa da libertação, apenas a promessa da libertação!”
“Apenas a promessa da libertação” captura a essência da revolta Negra e introduz uma temporalidade completamente diferente: o tempo blues.[4] O tempo blues é flexível e improvisado; está simultaneamente no momento, no passado, no futuro e no espaço atemporal da imaginação. Como o geógrafo Clyde Woods nos ensinou, o blues não é um lamento mas uma maneira clara de conhecer e revelar o mundo que reconhece a tragédia e o humor na vida cotidiana, como também a capacidade das pessoas de sobreviverem, pensarem e resistirem face à adversidade. O tempo blues se assemelha ao que o teórico anarquista Uri Gordon chama de “temporalidade generativa”, uma temporalidade que trata o futuro como indeterminado e cheio de contingências. Ao pensarmos na Tradição Radical Negra como generativa ao invés de prefigurativa, não somente o futuro é incerto, mas o caminho está constantemente mudando, ao lado de novas relações sociais que requerem novas visões e expõem novas contradições e desafios.
O que nós estamos testemunhando agora, em todo o país e ao redor do mundo, é uma luta para se interromper os processos históricos que nos levam à catástrofe. Estas lutas não estão condenadas, nem estão garantidas. Graças, em grande medida, a esse livro, nós lutamos com maior lucidez, com uma concepção mais expansiva da tarefa diante de nós e com ainda mais questões. Cedric nos lembrava constantemente de que as forças que nós enfrentamos não são tão fortes quanto pensamos. Elas são mantidas em pé por armas, tanques e ficções. Elas podem ser desmanteladas, apesar de ser mais fácil falar do que fazer. Enquanto isso, devemos estar preparados para lutar por nossas vidas coletivas.
Notas
[1] Título original: Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition.
[2] Movement for Black Lives no original.
[3] No original: Black and brown people. Optei por traduzir o termo ‘brown’ por pardos, apesar da problemática envolvendo o termo no Brasil. Ter em mente que estamos se referindo ao povo negro.
[4] No original: Blues time.