Por Eitor Ramiro
“Assim, é candente ressaltar a relevância das ciências jurídicas na composição de determinado regime político. Nesse sentido, é imprescindível investigar e assimilar as determinações sociais que produzem esses fenômenos, assim, identificando as contradições presentes em todo processo histórico. Dessa forma, é preciso ir além da aparência do objeto estudado e caminhar para sua essência, captando, assim, seu movimento real.”
O regime de exceção iniciado em 1964 promoveu, mais uma vez, a quebra da ordem democrática brasileira. Tratamos desse momento como Ditadura Militar, no entanto, esse conceito carrega um problema fundamental, pois trata o regime como fruto de mera disposição militarista. NETTO assegura que o correto seria tratar de uma Ditadura Civil-Militar, visto que o golpe de 1964 teve ampla adesão do capital, isto é, do setor empresarial e latifundiário. NETTO afirma, ainda:
[…] salientamos o vigoroso apoio do imperialismo (particularmente o norte-americano) à conspiração — afinal, os Estados Unidos estavam fomentando movimentos como o que levou ao 1o de abril em todas as latitudes, no processo da contrarrevolução preventiva em escala mundial. No entanto, e contra interpretações simplistas, é também preciso salientar que o golpe não começou em Washington: foi na dinâmica interna das lutas de classes no Brasil que se armou o seu cenário e se gestaram as condições do seu êxito em 1964.
Afinal, o combate ao “comunismo”, razão alegada pelos golpistas, não era e nunca foi apenas uma bandeira militarista, mas é, sobretudo, uma pauta do capital. Em sentido correlato, FERNANDES entendia que se tratava de uma “autocracia burguesa” e IANNI como uma “ditadura do grande capital”.
Em continuidade, ainda, NETTO assegura:
O golpe não foi puramente um golpe militar, à moda de tantas quarteladas latino-americanas (os pronunciamientos dos “gorilas”) — foi um golpe civil-militar e o regime dele derivado, com a instrumentalização das Forças Armadas pelo grande capital e pelo latifúndio, configurou a solução que, para a crise do capitalismo no Brasil à época, interessava aos maiores empresários e banqueiros, aos latifundiários e às empresas estrangeiras (e seus gestores, “gringos” e brasileiros).
Assim, é notório o problema em caracterizar a ditadura brasileira como meramente militar, ignorando a participação efetiva de outros setores sociais.
A ditadura, no entanto, não foi instaurada apenas por atos de força do setor militar ou pelo poderio econômico do capital, mas foi, também, através de atos normativos preconizados por juristas, institucionalizados ou não, que a ditadura brasileira nasceu e se consolidou como regime. No Brasil, a relação entre juristas e regimes autoritários não iniciou com a ditadura civil-militar de 1964. Pelo contrário, trata-se de uma constante em nossa larga história de momentos de antidemocráticos.
A figura de Alberto Torres, importante jurista e político brasileiro, é percebida como a gênese do pensamento autoritário brasileiro nas ciências jurídicas. No entanto, é preciso destacar que seu legado é disputado entre juristas de matriz autoritária, como Oliveira Viana e Miguel Reale, ou democrática, nesse sentido, trata-se, na verdade, de uma guerra de narrativas acerca do pensamento de Alberto Torres e não, necessariamente, sobre o que este tratava diretamente em sua obra. O integralismo, o estado novo e a ditadura civil-militar de 1964 são importantes exemplos do espraiamento do pensamento autoritário brasileiro e, em todos eles, houve a intensa participação de juristas.
Refletir acerca da íntima relação entre juristas e ditadura implica em destacar o papel do Supremo Tribunal Federal, órgão de cupúla do poder judiciário, que, atualmente, exerce tipicamente a guarda da Constituição, como assegura o art. 102 da CF/88. No entanto, traçar um perfil da Suprema Corte durante o período ditatorial guarda obstáculos, em especial, a pequena fortuna crítica acerca do tema. Como traz RECONDO:
O Supremo atual é visível, acompanhado pela imprensa e assistido ao vivo pela TV por qualquer cidadão. Há cinquenta anos a missão era inglória. Pouquíssimos tinham acesso às informações do tribunal, conseguiam acompanhar seu dia a dia e estavam capacitados para analisar como as forças internas se ajustavam.
De toda forma, ao observar a atuação da Corte durante o regime militar, percebe-se que o ocorrido não se tratou de uma situação atípica para o Supremo, visto que em diversos momentos da vida política brasileira, houveram tentativas de controlar, cersear e censurar ministros. Getúlio Vargas, ao aposentar de ofício 6 (seis) ministros durante seu governo, é um clássico exemplo de intervenção do Executivo no Judiciciário. Como disse Sepúlveda Pertence, ex-ministro do STF: “Chega ao golpe de 1964. E a partir daí, para quem vivia em Brasília, a sensação de que tudo acabara”.
Assim, explicitar o funcionamento do STF durante a ditadura civil-militar exige uma percepção dialética da história, isto é, assumindo as nuances, sutilezas e profundas contradições que marcaram a Corte durante o período. Os ministros utilizavam de estratégias para lidar com o regime, uma delas foi a de proferir decisões que poderiam restar cumpridas, isto é, não se “desperdiçaria” decisões. Essa foi uma forma que os ministros encontraram de não demonstrar fraqueza da Corte diante do regime autoritário, além de não desagradar o governo militar e provocar um possível fechamento do Supremo.
Ademais, é importante salientar que manter o STF em pleno funcionamento ajudava a corroborar a narrativa de que não existia golpe e regime autoritário. Porém, o Supremo não passou impune pelo crivo militar, o AI 2 promoveu, sumariamente, a alteração do número de membros da Corte, assim, passou de onze (11) para dezesseis (16) ministros. Nesse sentido, houve uma intervenção mascarada, afinal, não houve a exoneração de ministros considerados subversivos, como Victor Nunes Leal, mas sim a nomeação de novos ministros com maior alinhamento ao governo militar, para, dessa forma, atingir a maioria nos votos colegiados.
O STF ainda viria a passar por importantes ataques, com a destituição de ministros considerados inimigos do regime, além de ter um esvaziamento da competência da Corte. No entanto, permanecia em funcionamento para garantir a coerência pública do regime em relação a sua narrativa
A ditadura, entretanto, não capturou apenas as instituições, mas, também, importantes figuras do pensamento jurídico brasileiro, para, assim, participarem ativamente da configuração do novo arcabouço normativo necessário a garantir a hegemonia do governo militar na chegada ao poder. Figuras como Miguel Reale e Francisco Campos tiveram destaque e trabalharam proficuamente não apenas com o regime de 64, mas também com o governo Vargas.
Miguel Reale, importante jurista e filósofo do direito, foi um dos ideólogos oficiais do movimento Integralista, que tinha notório caráter fascista. Reale foi incorporado ao governo Vargas, após o seu exílio para a Itália por causa do regime do Estado Novo, atuando, assim, ativamente na administração pública. Ainda, conspirou contra o regime democrático nas décadas de 40 e 50, segundo suas próprias memórias. Na ditadura civil-militar de 1964 foi nomeado pelo presidente, Artur da Costa e Silva, com o objetivo de analisar a Constituição de 1967, para isso foi constituída uma comissão em que Reale era um dos líderes. Assim, como produto desse trabalho surgiu a Emenda Constitucional n° 1, que endureceu o regime militar, incorporando todos os AIs editados anteriormente.
Reale assumia que o processo que culminou na ditadura civil-militar era um progresso, visto que fugia dos modelos mundiais vigentes, o soviético e o dos estados liberais, percebia, assim, a necessidade de uma democracia incorporada às nossas condições materiais. O jurista elevou um dos presidentes do regime, Emílio Garrastazu Médici, ao papel de pensador social, justificando suas posições, suavizando-as e, assim, destacando o papel positivo das visões de Médici sobre a ditadura.
Francisco Campos, foi autor da Constituição de 1937 e do Ato Institucional n°1 e 2 da ditadura civil-militar de 1964, além de ter sido ministro do governo de Gétulio Vargas. Campos, conhecido como “Chico Ciência” por seu brilhantismo intelectual, ao redigir a Constituição de 37, conhecida como “polaca”, por causa de sua semelhança com a Consituição da Polônia, buscou os modelos de êxito de sua época e, naquele momento histórico, eram as constituições autoritárias, como as da Polônia e de Portugal. Por essas influências e por suas posições, Victor Nunes Leal, ex-ministro do STF, chegou a dizer que “quando a luz do gabinete de Francisco Campos acendia, a luz da democracia se apagava”.
Na ditadura civil-militar, Campos produziu o AI 1 e 2, que inauguraram o regime de exceção, além de ativamente colaborar com a Constituição de 1967. Os atos institucionais eram normas de natureza constitucional proferidas pelo governo militar de 1964 e 1969. O AI 1, este que, de fato, foi o ponto de início do regime, em seu preambulo dizia:
A revolução, investida no exercício do Poder Constituinte, não procuraria legitimar-se através do Congresso, mas, ao contrário, o Congresso é que receberia através daquele ato sua legitimação. Além de conceder ao comando revolucionário as prerrogativas de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem ‘atentado’ contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública.
O AI 2 teve como norte principal a extinção dos partidos políticos. E a Constituição de 1967 ou AI 4, teve como papel fundamental consolidar a ditadura civil-brasileira. Assim, percebe-se o papel central de Campos nos momentos autoritários do país, promovendo a estabilidade e a garantia jurídica para grupos antidemocráticos.
A ditadura-civil militar foi, objetivamente, uma ruptura na ordem jurídica brasileira, no entanto, ocorreu uma tentativa em transformar o golpe em revolução, como assegura LIMA:
Para construir essa narrativa, a ditadura contou com o prestimoso trabalho de juristas empolgados com a ruptura institucional iniciada em 1964. Seu esforço intelectual, no sentido de apontar uma ligação entre legalidade e revolução, serviu para dar legitimidade ao movimento civil-militar de 1964, já que a palavra golpe, utilizada por seus opositores, poderia prejudicar a imagem do novo regime perante a chamada opinião pública.
Nesse sentido, havia, por parte do governo militar, uma “preocupação” em constituir aparências de legalidade, isto é, para eles, era fundamental produzir uma narrativa de que não existia ditadura, mas sim uma transição, esta que iria fortalecer a democracia. Juristas renomados como Alfredo Buzaid, importante processualista brasileiro, foi um dos que ajudaram a consolidar a ideia de revolução de 64, afirmando que a “revolução” faria da política uma verdadeira ciência e, que, iria institucionalizá-la como ética.
Nesse sentido, temos, como exemplo, o já mencionado AI 2, que instituiu o bipartidarismo, assim, RICHTER e FARIAS trazem: “o Governo Ditatorial não atuou para criar um regime de partido único […] ou tampouco apartidário (qual o Estado Novo). Na tentativa de ludibriar a opinião pública com a aparência de pleno funcionamento das instituições democráticas […]”. Dessa forma, seguiu sendo produzido um discurso positivo com a ditadura, ligado a vários mitos, não apenas jurídicos e políticos, mas também econômicos (como o “milagre” no crescimento do PIB).
Portanto, percebe-se o intenso e profícuo papel exercido pelos juristas brasileiros que atuaram durante o regime civil-militar. Assim, é candente ressaltar a relevância das ciências jurídicas na composição de determinado regime político. Nesse sentido, é imprescindível investigar e assimilar as determinações sociais que produzem esses fenômenos, assim, identificando as contradições presentes em todo processo histórico. Dessa forma, é preciso ir além da aparência do objeto estudado e caminhar para sua essência, captando, assim, seu movimento real.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm. Acesso em: 11 jun. 2022.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Mantem a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964, e dá outras providências. 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm. Acesso em: 11 jun. 2022.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 11 jun. 2022.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979.
GALLO, C. A. Felipe Recondo. Tanques e togas: o STF durante a ditadura. Tempo Social, [S. l.], v. 31, n. 2, p. 295-302, 2019. DOI: 10.11606/0103-2070.ts.2019.149079. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/149079. Acesso em: 23 jun. 2022.
IANNI, Otávio. A Ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
LIMA, Danilo Pereira. Legalidade e autoritarismo: o papel dos juristas na consolidação da Ditadura Militar de 1964. 2018. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2018. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7172. Acesso em: 12 jun. 2022.
NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura brasileira: (1964-1985). 1° ed. – São Paulo: Cortez, 2014.
RICHTER, Daniela; FARIAS, Thieser da Silva. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: vol. 11, n° 3, setembro-dezembro, 2019, p. 381-405.