Por Theo Dalla
Desde que as pesquisas indicaram que há possibilidade de Lula vencer no 1o turno, intensificou-se a campanha pelo “voto útil”, vendido como único meio possível de derrotar o fascismo bolsonarista. Nessa empreitada, uma das principais brigas é contra os demais partidos de esquerda que lançaram candidaturas próprias (PCB, UP e PSTU), acusados de enfraquecer a candidatura de Lula para defender um programa “utópico” e descabido para o momento. No entanto, os principais argumentos que justificam a urgência de centrar esforços na eleição de Lula neste domingo caem por terra quando confrontados com a realidade: prova-se, pelo contrário, que idealistas são estes que apostam todas suas fichas no efeito do resultado eleitoral.
A campanha é motivada pelo objetivo de enfraquecer o bolsonarismo, de modo a minar seus intentos golpistas e fazê-lo recuar quando perceber seu isolamento e falta de apoio popular, evidenciado por uma histórica vitória no primeiro turno, cujos precedentes datam de 1998. Este objetivo é absolutamente legítimo e deve ser cultivado. Porém, dentro da guerra em que nos encontramos (querendo ou não, conscientes ou não), antes de definir nosso movimento e especular quais efeitos implicará no inimigo, é preciso conhecer a lógica sob a qual opera este último.
Para facilitar o trabalho, vamos sistematizar os principais argumentos utilizados e, a partir deles, refletir sobre suas premissas, insuficiências e contradições, considerando o histórico de atuação dos bolsonaristas, seu discurso, a concepção política dos fascistas, seus objetivos e as condições que necessitam para realizá-los. Em ordem crescente, começaremos pelos argumentos mais fracos até os aparentemente mais fortes. Depois, a partir de uma perspectiva mais ampla, tomaremos todos em conjunto. São eles:
1) Atenua a possibilidade de golpe, devido ao impacto político de uma vitória no primeiro turno, que prova o apoio popular de Lula e pode abalar a base bolsonarista
É verdade que uma derrota acachapante, normalmente, tende a gerar um sentimento de dúvida sobre as próprias convicções, um questionamento sobre a justeza da posição tomada e, por consequência, leva a um recuo, um momento de “refluxo” do movimento, em que reina o pessimismo, a desesperança e a desmobilização. Um bom exemplo foi o que aconteceu em 2018, quando a eleição de Bolsonaro surpreendeu amplos setores da população, em especial aqueles que se identificam politicamente como de esquerda, cuja reação imediata foi se esconder e esperar, a despeito de algumas movimentações espontâneas nas ruas. Ainda assim, tão logo iniciou o governo Bolsonaro e sua ofensiva contra a classe trabalhadora (no início de 2019), partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais foram às ruas – claro que com oscilações, como é próprio dos movimentos de massas. Mas, nada contribui para a tese de que as tropas bolsonaristas agirão dessa forma.
Não é de hoje que Bolsonaro prepara sua base para lidar com a provável derrota eleitoral, seja no primeiro ou no segundo turno. Ora, toda sua construção política foi marcada por atritos com as instituições burguesas, em especial a Justiça, da qual sempre questionou a legitimidade, inclusive da Eleitoral, sobre a qual tem centrado fogo, tanto na véspera quanto durante o processo eleitoral. Tal postura é respaldada e muito bem absorvida por sua base, cuja convicção ideológica é cimentada diariamente por meio de canais de comunicação ativos e independentes controlados pelo clã Bolsonaro.
Muitos bolsonaristas creem na iminente vitória de seu presidente, o que é fundamentado por seu pensamento conspiracionista lunático, que lhe faz crer na manipulação das pesquisas e, portanto, na vantagem não divulgada de Bolsonaro em relação à Lula, reafirmada por pesquisas falsas recentemente disseminadas. Contudo, no sentido contrário da intuição, em vez da frustração desta “certeza da vitória” desmobilizar a base bolsonarista, a tendência é que sirva de combustível para sua inflamação. O que a esquerda não compreendeu (ou finge não compreender) é que o bolsonarismo opera sob uma lógica própria, que não obedece à razão: a derrota – de modo algum – contraria a convicção dos bolsonaristas, mas a confirma!
Nesse sentido, já costurada a narrativa da farsa eleitoral, uma vitória no primeiro turno pode, inclusive, ser mais facilmente deslegitimada, visto que – na lógica dos fascistas – isso representará uma prova ainda maior e evidente da manipulação dos votos! Ora, como poderia perder com tanta diferença o presidente que, segundo o “DataPovo” bolsonarista (a única pesquisa confiável), tem aprovação da maioria da população e cujo governo tanto melhorou a vida das pessoas?
2) Reduz o tempo de mobilização e propaganda do Bolsonaro, que terá menos instrumentos para “reorganizar sua base” para uma escalada golpista
Este argumento parte de duas premissas equivocadas: a) que os fascistas estão desorganizados e desmobilizados; b) que os recursos da campanha eleitoral (tempo de televisão, entrevistas, debates, etc.) são os principais meios de difusão e articulação do bolsonarismo. Ambos demonstram uma incompreensão de como se consolidou e funciona tal movimento.
Chega a ser difícil de identificar no que se baseia o primeiro item. Na contramão do que pressupõe, diariamente vemos notícias de fascistas em bando ou individualmente que se utilizam da violência contra pessoas de esquerda. “É guerra!”, gritou um homem que agrediu uma mulher grávida que fazia campanha para uma candidatura do PT. O soldado-civil de Bolsonaro não só está mobilizado e disposto ao combate assim que for convocado, embebido da justeza do motivo que lhe leva a luta, como não controla seus impulsos bárbaros e se antecipa – por espontânea vontade – ao chamado do capitão.
Porém, analisar somente estes atentados é demasiado limitado quando queremos observar a força de um movimento amplo. Mais importante que isso são as demonstrações de força de massas do bolsonarismo, isto é, a sua capacidade de mobilizar milhões de pessoas.
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são 156.454.011 brasileiros aptos a votar. De acordo com as últimas pesquisas, as intenções de voto em Bolsonaro giram em torno dos 35%, ou seja, 54.758.903 de pessoas. Evidente que todas estas pessoas não são o núcleo duro de militantes do presidente, mas é uma parcela significativa da população que, pelo menos, apoia Bolsonaro (o que não pode ser desconsiderado ao pensar na reação da população diante de uma tentativa de golpe). No entanto, ainda mais importante é a parcela da população que responde aos chamados do fascista e/ou se organiza coletiva e espontaneamente em sua defesa.
Nos últimos dias 7 de setembro, Bolsonaro convocou seus apoiadores para manifestações em todo país. Se é verdade que, aparentemente, o número de presentes diminuiu de 2021 para 2022 (não se tem nenhuma confirmação disso), também é verdade que mobilizou dezenas de milhares a mais do que fez a esquerda e com a diferença de os primeiros gozarem de uma unidade ideológica incomparavelmente maior. Da mesma forma, se é possível dizer que, proporcionalmente ao dinheiro investido em divulgação e logística, os eventos fracassaram, significa que, comparativamente, o fracasso dos fascistas é, pelo menos, dez vezes maior que a mobilização efetiva (e não potencial) da esquerda atualmente.
É importante demarcar que está se comparando a mobilização efetiva e não a potencial. Algumas pessoas tendem a comparar a partir de condições equivalentes: se fosse o mesmo investimento para mobilizar a esquerda, não levaria mais pessoas às ruas? Por mais otimista que seja a resposta, num contexto de guerra, pouco importam as forças em potencial, mas sim, as que podem ser efetiva e imediatamente mobilizadas.
Outra expressão relevante da disposição e organização das tropas fascistas é sua adesão espontânea e militante à campanha de Bolsonaro e seus principais aliados ao longo do país, além das passeatas, motociatas, clubes de tiro, academias de luta, associações empresariais e outros eventos e grupos onde se concentram, preparam e mobilizam cotidianamente.
Por fim, a premissa b) ignora que toda construção e consolidação de Bolsonaro aconteceu fora dos períodos eleitorais, por canais de comunicação próprios e independentes, nos quais tem absoluta liberdade e notável alcance para atingir sua base e, por meio dos quais articula e orienta sua base constantemente para responder ataques ou promovê-los. É importante relembrar, inclusive, que Bolsonaro abriu mão de sua participação nos debates eleitorais em 2018. Tais meios, por mais que possam lhe render algum saldo positivo eventualmente, não lhe são essenciais para liderar sua base. Pelo contrário, o fascista se assegurou de garantir não só meios, como formas próprias de se direcionar ao seu público.
Além disso, o mais óbvio é que Bolsonaro continua presidente até o final de 2022. Ou seja, sua relevância política e os holofotes para ele direcionados não sumirão ao perder a eleição. O tempo de televisão que lhe é garantido pela lei eleitoral faz pouca ou nenhuma diferença para uma figura cujos pronunciamentos – no tempo e espaço que deseja – são transmitidos por todo território nacional. Isso para não falar nas grandes emissoras de rádio e televisão que o apoiam abertamente e deixam seu espaço à disposição.
Em síntese, a extensão do pleito eleitoral não dá qualquer tipo de vantagem a Bolsonaro no que diz respeito a organização e mobilização de suas bases: sua vantagem nesse âmbito já está consolidada desde antes das eleições.
3) Atenua a possibilidade de golpe, porque para questionar o primeiro turno se faz necessário questionar todo processo eleitoral, inclusive, a eleição de deputados e senadores bolsonaristas
Este parece o argumento mais forte e coerente para defender o “voto útil” para eleger Lula no 1o turno, mas bastam alguns questionamentos para evidenciar suas fragilidades: qual a importância do apoio dos parlamentares recém eleitos? O que acontece com eles no caso de um golpe? Quem é o eixo central que sustenta a legitimidade destes parlamentares? Quem lidera as massas reacionárias? Pensemos uma a uma.
Primeiro ponto. É evidente que boa parte dos que hoje seguem uma carreira política tem intenções e objetivos particulares, sendo um dos principais seu enriquecimento e estabilidade financeira providos pelo cargo que ocupa. Isso, evidentemente, pesa muito no momento de tomar uma decisão política que pode questionar sua própria legitimidade. Porém, na prática, o limite de sua atuação neste cenário é: a) no caso de apoiar o golpe, se lançar às ruas como agitador das massas reacionárias; b) no caso de não apoiar, declarar sua posição publicamente (o que tende a ter um efeito quase nulo); c) ficar “neutro” e esperar o desdobramento dos acontecimentos, pronto para se adaptar à nova situação (como faz a maioria dos parlamentares hoje). Em suma, os recém-eleitos não têm qualquer outro poder se não o de falar como se posicionam na situação, o que, na maioria dos casos, tem um efeito quase nulo – e esta será sua condição até tomarem posse em 2023.
Além disso, para fazer este cálculo não se deve considerar todos futuros parlamentares eleitos, mas somente aqueles que têm alguma possibilidade de adentrar numa aventura golpista – ou seja, os bolsonaristas e outros mercenários de centro. Isso porque os que não têm qualquer possibilidade de se inclinar ao golpismo já se declararam contrários ao golpe e legitimam absolutamente o processo eleitoral, o que não tem qualquer efeito sobre os gestos golpistas de Bolsonaro.
Em termos gerais, são condições indispensáveis para acontecer um golpe: a) o apoio de setores importantes da classe dominante (não toda ela, mas uma parte disposta a encabeçar este movimento); b) a participação do comando das forças armadas; c) a mobilização de um expressivo contingente da população; d) o apoio ou neutralidade dos países imperialistas; e) a incapacidade de resposta do movimento operário e popular. Diante destas, a posição de parlamentares que sequer assumiram seus cargos (e mesmo dos vigentes) e das instituições burguesas tem pouca ou nenhuma inferência.
Os defensores do “voto útil” parecem sobrevalorizar a importância dos parlamentares, talvez porque estão mal acostumados com golpes institucionais, sem derramamento de sangue, em que a deposição de uma presidente eleita depende de um acordo entre cavalheiros. Isso é só mais uma prova de que nada entenderam sobre o modus operandi dos fascistas brasileiros. De nada vale um ministro do Superior Tribunal Federal ou um presidente da Câmara de Deputados quando se coloca “um cabo e um soldado” para fechar o STF e o Congresso. Um golpe, neste caso, é um ato de violência, de imposição da força sobre os “acordos e pactos sociais” (como gostam de falar os democratas burgueses): é subversão da ordem!
Ora, então, o que os bolsonaristas recém-eleitos têm a perder? Para responder isto, vamos ao segundo ponto.
Questionar a legitimidade do processo eleitoral (mesmo o seu próprio), ir às ruas em protesto e participar das mobilizações golpistas que possam surgir não implicam – necessariamente – em abrir mão do cargo para o qual foi eleito. Claro, o sujeito pode vir a ser preso, mas isso somente acontecerá no caso da tentativa golpista falhar miseravelmente e o eleito ter tido alguma proeminência nos atos, de modo que seja alvo de retaliação (o que pode nem se efetivar devido à possibilidade de exílio). Isso se houver algum tipo de retaliação e o eleito não puder assumir seu cargo normalmente.
Outro ponto é que um golpe não significa – necessariamente – dissolução do parlamento. Sequer em 1964 foi assim! Considerando que a maioria dos parlamentares pouco se importam se vivem um regime democrático ou não, mas apenas dançam de acordo com a música e obedecem a quem melhor lhes paga, por que motivo viriam a se insurgir contra um possível golpe, se podem se adaptar a ele?
Além disso, a deslegitimação do processo eleitoral é apenas um pretexto para os fascistas agitarem pelo golpe. Se a lógica da deslegitimação não obedece à razão, não há qualquer dificuldade em deslegitimar somente o pleito para presidência, afinal, é aí que está a disputa central. Neste caso, a situação dos parlamentares recém-eleitos fica ainda mais fácil, pois, sequer entram no “dilema” de colocar sua legitimidade em cheque ao assumir o discurso golpista.
À luz do exposto acima, não embarcar na aventura golpista parece ser menos vantajoso para os bolsonaristas eleitos, pois correm o risco de perder o apoio de sua base ao serem taxados de traidores. Por outro lado, caso apoie a tentativa de golpe e esta for exitosa, sairá moralizado e fortalecido politicamente; se não for exitosa (e no caso de não ser preso, o que dificilmente será), também sairá moralizado, com a diferença de que será um parlamentar da oposição no Congresso. Desse ponto, podemos ir aos últimos dois e finalizar a resposta ao argumento 3).
O eixo central que sustenta a legitimidade política destes parlamentares é o mesmo que lidera as massas que os elegerão: Jair Messias Bolsonaro. Não importa quantos parlamentares de extrema-direita se elegerem neste pleito, é ele quem tem o poder de convocar as massas reacionárias às ruas; é ele quem constrói ou destrói a reputação de todos que nele se apoiam para conquistar votos. Não será um fascistoide como Nicolas Ferreira ou qualquer outro parlamentar recém-eleito que, por ocasião de se opor à narrativa de fraude eleitoral, a enfraquecerá. Muito pelo contrário, é a sua própria força política que tende a sofrer o maior impacto de seu posicionamento.
4) “Acaba o pesadelo e gera menos desgaste de ‘energia vital’”
Este argumento ficou por último porque, na visão deste autor, é o mais coerente que já apareceu nos debates. Ele assume sem vergonha alguma que não se trata de definir qual a melhor posição política, qual movimento colocará a classe trabalhadora em melhor condições de responder aos ataques golpistas e qual projeto político melhor direciona o movimento popular na luta contra o fascismo, mas sim, de aliviar sua própria angústia de espírito, aterrorizado pela aberração que é o capitalismo quando despido de sua roupagem humanista, a qual desesperadamente implora por colocar o mais rápido possível (no 1o turno, se possível!).
Aqui, se delineia com nitidez que, apesar do discurso e da origem operária, o Partido dos Trabalhadores, seu projeto e prática são – essencialmente – assentados ideologicamente na pequena-burguesia, uma classe cujos objetivos, em tempos normais, não são o fim da exploração do trabalho e a construção de um Estado Proletário, mas sim, a manutenção do sistema capitalista, seja ele mais ou menos humanizado.
Por isso, cada vez que aparecem casos de violência de apoiadores do presidente contra militantes petistas, em vez de alertar para o risco de apostar tudo nas eleições e a necessidade de organizar um movimento massivo e anticapitalista para enfrentar a covardia dos fascistas e derrotá-los definitivamente, reforça-se a urgência da vitória de Lula neste domingo, a crença nas instituições e no “poder do voto”. Como dito noutro escrito, no fim, aqueles que tentam ser bombeiros da luta de classes acabam por combater o fogo com gasolina.
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O objetivo deste texto não é convencer o leitor a votar em uma ou outra candidatura, ainda que seu autor seja apoiador e incentive o voto na candidata Sofia Manzano, mas apenas demonstrar as insuficiências e contradições dos argumentos utilizados por quem defende desesperadamente votar em Lula no 1o turno.
Este voto, na verdade, nada tem de útil quando o objetivo é derrotar os fascistas e vencer o golpismo. Isso não só pelo que foi exposto anteriormente, mas também porque, mesmo que tudo o que foi dito esteja equivocado e os argumentos petistas corretos, a mera eleição de Lula no primeiro turno somente atrasaria o golpismo dos fascistas, mas não o eliminaria. Nada é proposto para efetivamente eliminar o fascismo do Brasil – até porque isso só é possível levando a luta comunista às últimas consequências.
No primeiro turno, mais vale apoiar e construir as campanhas radicais dos partidos comunistas, que não vendem ilusões democráticas – menos ainda ilusões na conciliação dos interesses entre explorados e exploradores –, e propõem um programa que representa intimamente os interesses da classe trabalhadora, que aponta para a possibilidade e necessidade de superação do capitalismo e construção de uma sociedade socialista, afinal, no contexto latino-americano de capitalismo dependente, o rumo da História continua sob o dilema muito bem sintetizado por Theotonio dos Santos: socialismo ou fascismo.
* Theo Dalla é militante do Partido Comunista Brasileiro e da União da Juventude Comunista desde 2016, estuda jornalismo na UFRGS e já atuou no movimento sindical e estudantil.