Por Jaqueline Tavares
Se “as ideias de uma época são as ideias de sua classe dominante”, porque ainda ficamos surpresos quando os dominados resolvem votam contra os próprios interesses? Como, diante desse auto flagelo político, a maioria de uma oposição desmobilizada há anos ainda ousa dizer que o povo merece seus carrascos?
Lula não ganhou no primeiro turno. Apesar de anos de crise e de mais de meio milhão de mortos durante a pandemia, Bolsonaro conseguiu ainda o apoio de 51 milhões de brasileiros. Diante dessa situação, a frustração dos apoiadores da maioria da esquerda e dos setores progressistas, desesperados, inconformados, contaminados por um sentimento de ódio, arrogância e surpresa não apenas diante do presidente genocida, mas de todos aqueles que o elegeram. Todos os 51 milhões.
Nas redes sociais podemos ver o estouro dessa indignação. Pessoas dizendo que vão sair do país, que o Brasil merece isso, que os eleitores são burros, que os estados que votaram na maioria em Bolsonaro deveriam se separar dos restante do país…Uma nova enxurrada do desprezo e desespero que vimos em 2018. De lá para cá, uma onda de novas desgraças aconteceu sob o governo Bolsonaro. E ainda assim, ele foi para o segundo turno.
Essa posição derrotista e anti povo já tem sido alvo de críticas por setores da oposição de esquerda. A ideia desse texto é avançar nessas críticas e tentar responder algumas perguntas fundamentais. O que podem ter pensando os eleitores que votaram em Bolsonaro? Nesse quatro anos, o que fez a essa oposição que está hoje tão indignada? O que viram e ouviram todos esses eleitores, de um lado e do outro? A quem interessa que o povo vote contra todos seus interesses? A quem interessa que trabalhador odeie outro trabalhador? Quais são as consequências desse ódio no interior da classe e, mais importante, o que temos que fazer para superar esse cenário macabro?
O que faz alguém votar no Bolsonaro?
Da onde vem compreensão (correta) que ele é um genocida fascista e que isso é algo ruim?
Essas perguntas podem parecer ter uma resposta óbvia, mas não têm, e entender a origem de cada uma dessas posições é fundamental se realmente quisermos superar o Bolsonarismo, para além de só lamentar sua existência, ou alimentar a vazia esperança de que ele vai desaparecer do dia para a noite pela derrota nas urnas.
O voto em Bolsonaro tem sido debatido de maneira equivocada, a partir de um esteriótipo e de uma simplificação. Sim, muitos dos eleitores do Bolsonaro são homens, brancos, de classe média ou da elite, sudestinos ou sulistas, estão contaminados com todos os preconceitos do bolsonarismo, e não sofrem de forma alguma com a perpetuação do racismo, da misoginia, da LGBTfobia e do elitismo. Mas muitos não são todos, e quando estamos falando de médias e pequenas porcentagens referentes a um total de milhões, esse número se multiplica, e quando consideramos as contradições da própria condição desses eleitores a resposta se torna ainda menos maniqueísta.
Primeiro, vamos considerar os preconceitos de Bolsonaro como razões centrais para odiá-lo e portanto não votar nele. Metade de população brasileira é composta de mulheres. Cerca de metade também de pessoas racializadas. Isso já seria suficiente para eliminar a tese de que vota em Bolsonaro somente aqueles que não são afetados pelo seus discursos de ódio, a não ser que consideremos que todo e cada um desses 51 milhões de votos não vem dessas duas grandes maiorias da nossa composição demográfica.
Segundo, tomemos o caráter de classe. Bolsonaro e seu Ministro Paulo Guedes conduziram uma política econômica neoliberal que beneficiou os mais ricos, que enriqueceu os bilionários e jogou mais e mais brasileiros na pobreza e na miséria. Ainda que exista uma questão de classe no voto em Bolsonaro também, é preciso observarmos que não há tantos milionários e bilionários no Brasil, e que mesmo a classe média (que não se entende como classe trabalhadora e é classe trabalhadora) e a pequena burguesia foram em alguma medida prejudicados pelas políticas de Bolsonaro, seja pelo fechamento de pequenos comércios, pela redução generalizada do poder de compra ou mesmo pela perda de amigos e entes queridos – afinal, a política genocida de Bolsonaro quanto à pandemia afetou sobretudo os mais pobres, mas não somente os mais pobres.
Podemos observar, portanto, que o voto em Bolsonaro tem não apenas um sentido de ódio, de falta de empatia, de descaso, mas também de auto ódio, de falta de consciência da própria posição e de enganos acerca da verdadeira origens dos problemas e dos sofrimentos que passamos por conta das escolhas políticas que fazemos e que fazem por nós.
Cabe perguntar da onde vem esses enganos, ou seja, o que faz alguém votar em Bolsonaro. Essa não é uma discussão nova, e se coloca desde a última eleição do presidente, o crescimento anterior de sua popularidade, e diria até antes. O que alimenta o racismo, a misoginia, o elitismo, a LGBTfobia e os traços fascistas das opiniões políticas de milhões de brasileiros e brasileiras?
Podemos citar algumas origens históricas. A escravidão, a tradição patriarcal, a condição de país de Terceiro Mundo (onde a classe trabalhadora, em sua maioria racializada, é ainda mais desumanizada que em outros lugares), o conservadorismo heteronormativo (ao menos em discurso) sobre os comportamentos sexuais, a intolerância religiosa. As razões são muitas e antigas.
Podemos pensar também algumas tendências mais recentes. O anti-petismo fomentando pela grande mídia – e o consequente discurso anticorrupção genérico derivado desse. A sofisticada indústria das Fake News, com conivência ou mesmo apoio de grandes plataformas digitais e redes sociais. O crescimento do agronegócio e seu papel tanto como financiador do bolsonarismo, como propagador do reacionarismo a partir de um retrato romantizado de si próprio, e sua força expansiva, destruidora da natureza e inimiga dos povos originários. A expansão e a consolidação de igrejas neopentecostais de posição extremamente reacionária, que se aproveita da ausência do Estado e mesmo dos movimentos sociais nas periferias para se colocar como o único refúgio possível para os fieis – disputando e ganhando sua consciência nesse processo. O recuo da maioria da esquerda – nominalmente, do PT, do PCdoB e de setores do PSOL – tanto em termos de programa, quanto de grau de mobilização pela base. O crescimento de tendências individualistas, pós modernas, anti comunistas e avessas à militância coletiva na esquerda. O fomento, dentro desse campo, de posições moralistas, arrogantes, derrotistas. A desmobilização. A redução do trabalho de base. O recuo da disputa ideológica. O consolo com as migalhas. O medo e a chantagem política. O idealismo e messianismo.
Esses fatores e outros além que fomentaram a ascensão do bolsonarismo não foram superados desde a última eleição. Na verdade, mal foram combatidos. Foi depositada uma certa esperança que o desgaste gerado sobre Bolsonaro (cuja popularidade realmente chegou a cair em certos momentos, principalmente no período de maior mobilização das ruas e nos pontos mais críticos da pandemia) seria suficiente para que ele caísse sozinho, quando a história nos mostra que o fascismo nunca cai por vontade própria, mas é derrubado, e não através do voto.
Essa expectativa sobre o desgaste natural de Bolsonaro, ainda que não completamente vazia, cai no engano de entender que, na consciência de diferentes setores da classe trabalhadora, a relação entre os nossos sofrimentos e a causa política deles é clara. Pelo contrário, são consequência de um processo de aprendizado e conscientização, que só ocorre diante do exemplo pela mobilização e pela disputa ideológica.
Por vezes parece que todos nós nascemos com as posições políticas e as visões de mundo que temos hoje, mas como chegamos a elas? Seríamos os mesmos se não tivéssemos passado pelo que passamos, visto o que vimos, ouvido o que ouvimos? Saberíamos o que sabemos se não houvesse outros trabalhadores dispostos a construir os movimentos populares, os partidos, a debater, a convencer? Os memes e piadas debochados sobre chá revelação de classe dão a entender que aqueles que zombam já nasceram conscientes, e nos fazem esquecer nossa própria trajetória, nossos enganos, como se eles não tivessem tido também seus “chás revelação” – e claro, como se com certeza eles não precisassem de um.
As relações feitas entre a realidade política que vivemos e o impacto dessa sobre nossa vida toma muitos sentidos equivocados, contraditórios e incompletos. A crise não é garantia em si de um levante dos oprimidos quanto esses opressores, se junto a essa piora não vier, por parte dos setores mais avançados da classe, tanto um processo de educação e propaganda política do porquê desse sofrimento, quanto uma movimentação no sentido de organizar a insatisfação para pressionar por melhoras e buscar soluções pelos próprios braços dos trabalhadores.
Em outras palavras, não basta que o trabalhador observe a pandemia, a crise econômica, a piora das condições de vida para entendê-las como resultado da exploração dos mais pobres pelos mais ricos, para compreender sua relação com o agronegócio, o empresariado, a indústria da fé, o presidente e quais políticas ele segue ou deixar de seguir.
Sei que o leitor pode essa pensando agora “Mas Meu Deus, ele é o presidente! Como não podem saber que ele é a origem dos problemas!”
Pode, e pode muito, uma vez que a grande mídia martelou ao longo de anos a fio que o PT destruiu o país, e que o estrago de agora é consequência do petismo.
Pode, uma vez que entender como funcionam as políticas econômicas e que o neoliberalismo vai contra os interesses do trabalhador é consequência de um processo de aprendizado – ninguém nasce sabendo que a austeridade fiscal é uma mentira e que a economia do Estado não funciona como a de uma família, como prega a lavagem cerebral promovida pelos capitalistas em todos os meios de comunicação possíveis.
Pode, porque enquanto essa oposição permanece arrogante, impaciente e desmobilizada, o reacionarismo religioso se aproveita dessa ausência para penetrar nas comunidades e dizer para a Dona Fulana que com o Bolsonaro está melhor, e que se o Lula for eleito ele vai fechar todas as Igrejas. Ouvi essas palavra da boca de uma senhora negra em uma favela durante uma panfletagem pelos atos Fora Bolsonaro ano passado, em plena pandemia, com arroz a R$30 o saco. Argumentei, mas nossa conversa foi um momento pontual, enquanto todo domingo o pastor que propaga essa mentiras oferece para essa senhora o único local de conforto e comunhão que ela provavelmente terá. Gostaria de ver os tão sábios e moralmente superiores demagogos da internet chegarem para Dona Fulana e falar que ela merece comer mal, merece morar mal, merece que sua filha não entre na faculdade pública e que, se a polícia racista apoiada Bolsonaro assim decidir, seu filho merece morrer.
As palavras podem parecer duras, mas apenas levam a arrogância e ódio pelos 51 milhões de brasileiros que votaram 22 à concretude, composta por uma variedade de perfils de eleitores, desde a mais pura lavagem cerebral reacionária e religiosa pelo terror e o desamparo, até os neonazistas mais convictos.
Essa crítica moralista ao bolsonarismo e as contradições que ela geram ficam escancaradas quando vemos o que se tornou muito do debate sobre o caráter fascista de Bolsonaro. Conforme fascista virou um xingamento vazio, fomos nos tornando incapazes de perceber seu sentido político, e as diferenças entre essas posições. Por um lado, fomentando ódio às camadas da população que estão há anos ouvindo toda essa propaganda reacionária, abandonadas a própria sorte pelos setores que deveriam representá-la e levadas a votar contra os próprios interesses. Por outro lado, subestimando o peso, a violência e a seriedade com a qual temos enfrentar o fascismo. Bolsonaro é fascista. O fascismo matou milhões. Portanto devemos esperar a eleição, ter medo de sair na rua para enfrentá-lo e torcer para ficar tudo bem. Afinal, foi assim que Mussolini foi pendurado de ponta cabeça: pelo esvaziamento das ruas, o ódio à classe trabalhadora, o voto na urna e Geraldo Alckmin de vice.
E então a desmobilização e a ausência da disputa de consciência da classe trabalhadora, da paciência, da agitação, da propaganda, da organização da classe, do trabalhos nos bairros, nas universidades, nas comunidades, nos sindicatos, nos coletivos, pela condução de uma política que defenda os interesses populares, com independência de classe, tudo isso vem cobrar seu preço.
Uma das consequências de se abster da disputa política esperando que essa seja resolvida em votação é que não votem em você – principalmente quando o adversário está melhor armado e mais preparado, infiltrado, conspirando, matando e pagando para se manter no poder. A maior arma da classe trabalhadora, desprovida de riqueza, é sua organização. O que as maiores forças de esquerda têm feito nas últimas décadas é recuar na disputa ideológica e organizar a classe no sentido da conciliação com seus carrascos. Ai perdermos, ficamos surpresos e que não tem jeito mesmo, em um ciclo infinito de desmobilização política, idealismo eleitoral e frustração reacionária.
Esse próprio ciclo, bem com as posições extremamente problemáticas do campo progressista que tanto tem sido criticadas nesse texto precisam ser entendidas como um fenômeno político. Afinal, se é um erro o progressista de bem entender a posição do pobre de direita como uma burrice ou um erro de caráter, também seria um erro considerar a desmobilização, idealismo e a postura anti popular desses trabalhadores progressistas um problema individual. Ela tem causas e beneficiários.
A causa é o próprio refluxo do movimento popular, e o recuo político dos setores majoritários do chamado campo democrático popular. O esgarçamento das condições de vida promovida pelo neoliberalismo. O peso histórico da queda da maioria das experiências socialistas e o anticomunismo de esquerda que não se entende como anticomunista, que se manifesta no ódio pela organização política – sobretudo na forma partido -, na recusa à disputa ideológica, na rejeição do enfrentamento de classe e na aceitação, sem um pingo de crítica, de leituras de mundo completamente liberais e irracionais (como o próprio idealismo aqui combatido).
Quanto aqueles que se beneficiam, temos os falsos beneficiários e os verdadeiros. Os falsos são aqueles que têm tentado crescer sobre esse sequestro político, a própria esquerda moderada e centro esquerda, que se recusa a ver qualquer caminho para a melhora da condição de vida do povo trabalhador a não a ser a eleição dos seus candidatos, em um eterno ciclo de defesa do menos pior que nunca melhora, se especializando cada vez mais na sua posição de gestão da miséria.
Mas esses companheiros da esquerda, por mais equivocados que estejam, mal intencionados ou ingênuos, não tem a verdadeira vitória. Em primeiro lugar, porque essa estratégia tem se mostrado cada vez mais falha – mesmo para os propósitos limitados que esse campo se coloca a cumprir. Em segundo lugar, porque quem verdadeiramente ganha, tanto com a derrota eleitoral da esquerda, quanto com o aumento da exploração da classe trabalhadora, é a burguesia, são os ricos, o topo da pirâmide. Não existe tão beneficiado com a melancolia, o auto ódio, a fragmentação, a desmobilização e a desorganização da classe trabalhadora do que aqueles que a exploram.
Chegamos, então, a um ultimato. Ou Bolsonaro ganha, e todos os problemas que ele traz se aprofundam. Ou ele perde, mas o Bolsonarismo permanece – nas ruas, nos quartéis, nos senados e câmaras, já dominados pela esmagadora vitória da direita no legislativo. Seja como for, o problema pode se amenizar, mas não vai ser resolvido tão cedo.
Nós resta então, duas, opções. Entender como dotados de falhas de caráter, de naturezas imutáveis, como seres monstruosos e burros incuráveis aqueles que votaram no Bolsonaro, apresentando como solução para a oposição o auto exílio, o eterno lamento ou o genocídio de 51 milhões de pessoas – se levarmos a sério o argumento de que votou nele é horrível e merece morrer. Ou entender o fascismo como um fenômeno político, resultado da brutalidade capitalista e da omissão da esquerda, terrível, assustador, aterrador – mas concreto, mundano, reversível, mortal.
Desistir, abnegar-se e sentir-se bem. Ou mobilizar-se, organizar-se, e juntar-se, lado a lado, com seus irmãos trabalhadores, de carne e osso, recheados de contradições, entendendo os limites da sua consciência e lutando para elevá-la, colocando-o contra os verdadeiros inimigos. Aqueles que nos exploram e oprimem, e que ensinam os trabalhadores a odiar uns aos outros. O dia que deixarmos isso claro para todos nós, acabou para eles.