Por Gabriel Zaffari.
Introdução: Após a crise de 2014, que fora agravado pelo ajuste fiscal de 2015, a classe trabalhadora se dividiu em duas opções sobre como recuperar a economia: i) a Auditoria Cidadã da Dívida; e ii) a Teoria Monetária Moderno (TMM). Esse artigo contribuiu a discussão no sentido de qualificar a compreensão sobre o dinheiro, crédito e dívida pública – colocando-se favorável a algumas propostas da TMM. E, de que, como o estado não necessita de tributação para financiar seus gastos, a classe trabalhadora pode usar a expansão da dívida como forma de construção do poder popular, assim como, aponta as limitações do uso dessas ferramentas, que são: a inflação, a restrição da balança de pagamentos e o controle do estado e da economia pela burguesia.
0. Introdução
Entre 2014 e 2015 a economia brasileira entrou numa profunda recessão. Os motivos da crise, segundo os ideólogos da burguesia à época, seriam os usuais: gastança, falta de controle das contas públicas e aumentos artificiais nos salários. O governo petista, ao invés de retomar uma política econômica favorável aos trabalhadores, optou pela solução liberal: a austeridade. O resultado dessa combinação de fatores foi que para a maioria dos trabalhadores, a renda, cuja expressão é a capacidade de compra real de mercadorias, caiu ou estagnou. Nunca foram recuperados os salários e tampouco o nível de emprego pré-crise.
As organizações da classe trabalhadora, por outro lado, advogam e advogaram soluções distintas ao problema da crise econômica. Em geral, a solução para a recuperação da crise não seria um ajuste fiscal, mas um rearranjo do gasto público, reduzindo a preferência por subsídios tributários, expandido crédito à agricultura familiar, e aumentando a preferência por programas de infraestrutura, obras públicas e desenvolvimento em ciência e tecnologia. Ou ainda, no limite, a tomada do poder a reestruturação do comando da economia para formas de livre associação, cooperativas e indústrias estatais sob comando operário. No entanto, o liberalismo econômico e as organizações burguesas argumentam que tais caminhos além de não solucionarem o problema, eram inviáveis devido ao alto nível de endividamento público ou de que o mercado privado seria mais adequado para garantir o crescimento econômico. Não só isso, mas se articularam para aprovar uma medida que congelasse os gastos públicos e dobraram a aposta do comando privado no desenvolvimento econômico.
Duas alternativas que surgiram a fim de resolver esse impasse: Auditoria Cidadã da Dívida e a Teoria Monetária Moderna. A primeira defende o fim do pagamento dos juros da dívida pública, sua revisão e auditoria. A segunda promulga o uso do déficit público continuado para atender as demandas dos trabalhadores. Para que se possa fazer uma avaliação das soluções em sua totalidade, deve-se apreender de forma profunda a natureza do dinheiro, da dívida, do financiamento público e da própria dinâmica do capital.
1. As Formas do Capital
Marx (2013, 2015, 2018) apresenta distintos níveis de abstração do seu objeto de pesquisa. O objeto é aproximado e reaproximado em diversos momentos para que se torne inteligível o seu processo de movimento na realidade. Ou seja, o Capital não é algo cujos determinantes de seu movimento possam ser definidos da forma usual. O seu movimento pode continuamente apresentar novos determinantes, inclusive, desmaterializando os que antes pareciam dar-lhe sua continuidade (LEDA PAULANI, 2010). São as diversas contradições internas do Capital que nos dão a chave para entender seu movimento. Uma das mais significativas contradições apresentadas no primeiro volume do Capital é que a riqueza deixa de ser justificada pela quantidade de trabalho e passa a ser justificada pela propriedade.
Isso pode aparentar uma negação da lei do valor, afinal, se todo valor é gerado pelo trabalho, alguém que trabalha muito, por definição, é rico. Porém, o valor é somente um momento daquilo que se denominará de capital. Vejamos como se dá essa metamorfose. Marx apresenta, no início do primeiro volume do Capital, do primeiro ao terceiro capítulo, uma versão abstrata da sociedade burguesa, em que ainda não há o assalariamento generalizado, nem há mais-valor. A preocupação é desenvolver um modelo lógico-histórico do modo de produção capitalista e encontrar a aparência da riqueza desta sociedade específica. Essa riqueza aparece como uma certa coleção de mercadorias. A investigação da mercadoria, leva aos conceitos de valor de uso e valor de troca. O primeiro se trata do uso social que tal mercadoria tem. Por exemplo, um casaco é usado para proteger-se do frio; um lápis para escrever; um papel para redigir um trabalho, ou ainda, servir de origami, ou quaisquer outras finalidades que essa sociedade dê a essa mercadoria. O segundo, por sua vez, expressa uma relação quantitativa no intercâmbio entre uma mercadoria e outra qualquer.
O que permite que ambas mercadorias sejam intercambiáveis é que elas possuem para além da manifestação fenomênica do valor de troca, uma propriedade que é o valor. O valor, num primeiro momento, é a propriedade social que as mercadorias possuem de permitirem a sua intercambialidade. Sua magnitude, que determina a relação quantitativa do valor de troca, é medida pelo tempo de trabalho social médio necessário para a produzir.
A partir disso, Marx, no segundo capítulo e terceiro capítulo, apresenta a circulação das mercadorias e o surgimento da forma-dinheiro. O dinheiro é uma mercadoria, em que seu valor de uso é representar o valor de troca de todas as outras mercadorias e por motivos históricos e práticos, o ouro e a prata foram os eleitos para tal função. A introdução do dinheiro apresenta uma novidade para os produtores de mercadoria. Se antes a produção destinada à troca era pensada em termos de outras mercadorias cujos valores de uso são necessários para o produtor, agora, com o dinheiro, existe uma infinita multiplicidade de mercadorias que podem ser compradas após vender-se a mercadoria. A relação entre produtores estava entrelaçada pelos valores de uso que cada um destes produzia, ou seja, um produtor de sapatos, sabia que da sua produção uma certa quantidade seria trocada diretamente por pão feito pelo padeiro.
A repetição sistemática desse processo e as complicações que são a renegociação das trocas levavam a uma estabilidade nas relações de troca. No entanto, com o dinheiro, não há necessidade dessa relação sistemática, o padeiro após vender seus pães, com o dinheiro em posse, pode ir a qualquer vendedor do mercado para comprar quaisquer mercadorias, pois os vendedores também procuram fazer o mesmo que o padeiro. Mas, se, por exemplo, os compradores decidirem ir a outro padeiro, agora, eles poderão fazê-lo facilmente. O padeiro que antes possuía uma rede de relações sociais que gozavam de certa estabilidade, como aquela que tinha com o sapateiro, se desmanchou devido à introdução do dinheiro. Com o dinheiro que possui, sua escolha básica é o quanto de insumos compra ou quanto de bens de consumo compra para sua própria subsistência – a quantidade de mercadorias que será comprada dependerá do poder de compra que possui, a qual, nesse nível de abstração depende do quanto de mercadorias consegue vender.
Logo, deve disputar ainda mais para conseguir atender a possível clientela com os bolsos cheios de dinheiro, pois a decisão de compra destes, determinará o quanto ele ganhará em termos monetários. Para que não tenha prejuízos, a produção do padeiro dependerá de suas expectativas de quantos compradores irão bater à sua porta. De forma dinâmica, sua quantidade produzida está intimamente ligada à expectativa que esse tem de vendê-la. Se num certo dia, há muitos compradores de pão, o padeiro pode intuir que sua clientela aumentou e, no dia seguinte, aumentará sua produção. Porém, se no próximo dia tal expectativa for frustrada, o padeiro retorna no dia seguinte ao nível de produção anterior. Assim, da introdução do dinheiro nas relações mercantis, surge a possibilidade de travamentos momentâneos na circulação das mercadorias. Se um não compra do padeiro, porque quis entesourar dinheiro, o padeiro deixa de comprar do armazém que vende o trigo. O dono do armazém, por sua vez, reduz suas compras e o processo repete-se por todos os elos de trocas, resultando, portanto, na queda de valor produzida por esta sociedade num determinado período1. Ou conforme Marx “M-D. A primeira metamorfose da mercadoria ou venda. O salto que o valor da mercadoria realiza do corpo da mercadoria para o corpo do ouro, (…) é o salto mortale da mercadoria. Se esse salto dá errado, não é a mercadoria que se esborracha, mas seu possuidor” (MARX, 2013, p.180).
Com a introdução da moeda e da generalização das formas mercantis (M-D-M), surgem algumas das condições para possibilitar o assalariamento. Com os mercados cada vez mais generalizados, coisas que antes não eram passíveis de ser compradas, agora, passam a ser. Como o dinheiro é o elo para a riqueza, todos esses produtores individuais passam a o desejar. Se porventura, esse produtor não consegue vender suas mercadorias, o salto lógico de que pode vender sua própria força de trabalho torna-se possível. É claro que a possibilidade lógica não é condição suficiente para que esse processo ocorra, necessita-se que isso possua algum fundamento histórico, o qual Marx apresenta quando trata da “assim chamada acumulação primitiva de capital”. A condição histórica é a expropriação violenta do campesinato europeu, a destruição das relações sociais na América Latina, África e Ásia, instituindo à força o monopólio privado dos meios de produção. O assalariamento, por sua vez, é condição necessária para o surgimento da produção de mais valor, e, portanto, do próprio capitalismo. Com a mercadoria força de trabalho, cujo valor de uso é gerar valor para seu comprador, abre-se a possibilidade de apropriar-se de valor sem a necessidade de trabalhar. Basta ser proprietário de riqueza suficiente para adiantar tanto capital constante quanto capital variável.
Se antes a riqueza era justificada pelo trabalho exercido por cada trabalhador individual, agora, é o trabalho que está submetido a quem possui o poder de compra para obtê-lo e, portanto, a riqueza passa a ser justificada pela propriedade. Além disso, isso permite que o processo de circulação de mercadoria deixa de ser feito por produtores individuais e possibilite a existência dos capitais individuais. O valor começa a se transformar em capital, com o objetivo de criar mais valor e dar ao proprietário dessa riqueza cada vez mais riqueza, inclusive reproduzindo de forma sistemática tanto a classe trabalhadora quanto a classe capitalista.
Antes de avançar sobre os novos movimentos do capital, deve-se dar alguma atenção para o surgimento do dinheiro. Nos parágrafos listados acima, dá-se a impressão que o dinheiro se apresenta como um grande acordo fraterno e harmonioso entre os produtores individuais com o objetivos de expandir as capacidades de trocas e que a ingenuidade destes acaba levando, sem o conhecimento prévio, a tragédia da possibilidade do assalariamento e da exploração. Como dito no início, Marx faz diversas abstrações e aproximações do objeto para poder compreender o seu movimento. Na verdade, aqui se está mostrando que mesmo numa sociedade burguesa em que impera harmonia, igualdade e liberdade, sem quaisquer ruídos do mundo concreto, ou seja, uma representação ideal dos valores burgueses, estes permitem, por si só, o surgimento das condições para a exploração. Marx sabe que o surgimento do dinheiro não se deu assim. Em diversos momentos da exposição sobre o surgimento do dinheiro, Marx faz menção ao estado. Nessas passagens, fica claro que a superestrutura é fundamental para o surgimento do dinheiro. É por meio deste, pelo uso da coerção, que os produtores passam a aceitar e usar o dinheiro. É o estado que define quais as regras pro dinheiro, que faz cunhagem das moedas de ouro e prata e é o estado que decide em qual moeda se pagará os impostos e em qual moeda eles comprarão as mercadorias dos produtores privados Não só isso, mas o dinheiro não é uma exclusividade das sociedades burguesas, ela é presente em diversos outros modos de produção e, em todas essas sociedades, a sua introdução é feita pelo estado. A diferença reside no fato de que somente na sociedade burguesa em que o dinheiro se torna o elo para toda a riqueza e de toda a reprodução social.
1. 1 Movimentos subsequentes do capital.
Mostramos que o valor se transformou em capital e que a riqueza passa a ser justificada pela propriedade (de capital). Porém, até mesmo isto não fica estático. Podemos pensar o Capital como um ente fantasmagórico. Algo que busca continuamente pular de uma forma a outra num movimento incessante CARCANHOLO (2011). Não consegue pairar sobre um mesmo corpo e, por isso, é um fantasma. Num momento, ele é dinheiro, no outro ele é meios de produção e força de trabalho, para querer ser acrescido de vitalidade – que deriva do trabalho – e se manifestar em mercadorias prenhas de mais-valor. Seu movimento final é tornar-se dinheiro novamente. D – M – D’. Porém, o processo produtivo é um atraso para a valorização do Capital. Se pudesse, ele faria o movimento de D para D’ sem passar por M. De certa forma, ele tem buscado continuamente fazer isso, mas sem grandes sucessos, pois a única forma de D’ ser maior que D é se o valor acrescido for resultado da exploração da classe trabalhadora. Essa tentativa do Capital de se distanciar do processo de trabalho pode ser chamado de desmaterialização do valor. Nos destinamos nas próximas linhas a expor as formas com a qual capitais particulares podem se apropriar de mais valor sem os produzir.
A primeira forma com a qual isso se apresenta é na introdução da categoria de mais valor extraordinário. Um capital individual muda a produtividade do trabalho que está sob seu comando. Isto é, para produzir uma mesma massa de mercadorias agora ele consome menos força de trabalho e menos capital constante. Assim, o dono deste capital vê uma oportunidade de aumentar sua fatia das vendas em relação aos seus competidores. Levando ao mercado uma mercadoria, cujo valor é menor que o valor de troca desta – pois seu valor de troca está determinado pelo tempo de trabalho médio coletivo que os outros capitais levam para produzir esta mesma classe de mercadoria. Porém, de onde surge esta massa de mais valor adicional que não deriva diretamente do processo produtivo individual?
Antes, para produzir 100 cadernos, necessitava-se de uma jornada de 8 horas de trabalho, sendo destas, 4 horas para recompor capital constante e capital variável e as outras 4 horas sendo o mais valor produzido. Agora, para produzir esses mesmos 100 cadernos, necessita-se de uma jornada de 6 horas de trabalho, sendo destas, 3 horas para recompor capital constante e capital variável e as outras 3 horas sendo o mais valor produzido. Nosso capitalista, no entanto, agora em 8 horas de trabalho, produzirá 133 cadernos. Porém, cada caderno apresenta um valor individual menor que o valor de troca do mercado. Enquanto os outros competidores precisam de 8 horas para produzirem 100 cadernos, o que faz com que a magnitude valor de cada caderno seja aproximadamente de 5 minutos de trabalho, o capitalista inovador precisa de 6 horas para produzir os mesmos 100 cadernos, o que faz com a magnitude de valor de cada caderno seja aproximadamente 3 minutos e meio. Porém, quando chegar ao mercado, o valor de troca será ainda 5 minutos, auferindo ao capitalista inovador para cada venda um valor acrescido de 1 minuto e meio.
Ou seja, ao final do processo todo, para além das 4 horas de mais valor produzidas em 8 horas de trabalho, ele receberá aproximadamente 2 horas adicionais de mais valor2. Logo, a propriedade sobre um método produtivo deu a este capitalista individual capacidade de se apropriar de mais valor do que produziu. Introduz-se, então, a transferência de valor de um capital a outro. A tendência é que a competição eventualmente perceba que está sendo jogada para trás e busque copiar essa inovação. Ainda assim, é possível que o capitalista inovador faça de tudo para que isso nunca ocorra – patenteando sua inovação e usando o estado para impedir que outros produtores copiem seu método produtivo. Tendo o monopólio sobre esta tecnologia.
No segundo volume e no terceiro volume, Marx (2014, 2018) fraciona o Capital em três partes, o Capital Industrial – produtor de mercadorias, o Capital Comercial – vendedor de mercadorias e o Capital Bancário – emprestador de capital. É no Capital Comercial que aparece a segunda forma de se apropriar de mais valor sem a produção deste. O capital comercial pode colocar entraves para venda, seja porque ele tem o monopólio sobre certos tipos de transações – podemos pensar nas empresas proprietárias de maquininhas de cartão que a cada transação de cartão de débito e crédito cobram uma tarifa ao vendedor – ou porque ele faz a contabilidade para os capitais industriais, ou ainda pelo monopólio de pontos de vendas. Todas essas mercadorias possuem preço, mas não possuem valor.
O capital bancário, por sua vez, apresenta ainda uma terceira forma de se apropriar de mais valor sem a produzir. O capital bancário vende empréstimos para outros capitais. Vende capital para capitais. O preço desta mercadoria é o juro. Esta mercadoria é uma informação contábil, um registro que dá ao portador da conta neste banco um saldo bancário no presente e que para tê-lo deverá pagar juros em prazos futuros MARX (2017).
Ou seja, para o Capital Industrial que produz mercadorias, primeiro toma-se o empréstimo, seja para aumentar o nível de investimento em capital constante ou variável, seja para pagar contas atrasadas, mas, independentemente do motivo da tomada do empréstimo, os pagamentos futuros serão frutos do processo de produção de mercadoria e do mais valor realizado na produção que será utilizada para pagar os juros.
Há uma terceira relação de produção que recebe mais valor3 sem a produzir – que não é exatamente capital. O pagamento do arrendamento da terra para proprietários da terra. Para a produção de mercadorias, um capitalista precisa pagar um aluguel para o dono da terra.
Por fim, com o desenvolvimento do mercado financeiro, existe a possibilidade de ser proprietário de Capital e receber mais valor, sem nem contribuir com adiantamentos futuros do Capital Industrial, sem sequer possuir qualquer mercadoria que seja necessária para expansão deste capital, como é o Capital Bancário, é o Capital Comercial e são os proprietários de terra. Basta ir ao mercado de ações e comprar um papel que lhe dê direito aos lucros que auferem deste Capital! Não só isso é possível, pelo recebimento de dividendos, mas é possível especular sobre a rentabilidade de mais valor do Capital Industrial e com o surgimento dos derivativos é possível ganhar dinheiro especulando sobre as expectativas que os proprietários de ações têm sobre a rentabilidade deste Capital Industrial.
Ou seja, é possível se apropriar – e todo dia corretoras e bancos o fazem – de quantidades significativas de dinheiro, sem sequer contribuir tempo, nem direção, nem capital para a produção de mais valor. Vejamos o quão desmaterializado está o valor. O patrimônio atual da grande burguesia inclusive, se assenta quase todos nesses papéis que dão garantias à riqueza. Ainda assim, mesmo nestas novas formas de capital, estes são capitais “fictícios”. Por que fictícios? Pois, o Capital está se enganando. Acha que pode se transformar em papel de propriedade e se valorizar somente como papel. Porém, todas essas transações de papéis e a riqueza que seus possuidores adquirem, em última instância, só surge no processo de exploração de trabalho. Fica claro que a apropriação e a produção se operam de formas distantes. Há uma relação causal: para que haja apropriação, deve existir exploração, ou ainda, a taxa de lucro é nada mais que a taxa de mais valor escamoteada. Aqui, portanto, fica finalmente exposto todo o percurso enunciando no início desta seção:
“A riqueza deixa de ser justificada pela quantidade de trabalho e passa a ser justificada pela propriedade” porém, podemos adicionar, que ainda assim, “essa propriedade só pode se apropriar de riqueza, enquanto existir a exploração dos trabalhadores, a produção e a venda de mercadorias. Ainda que o capital queira pular o processo produtivo, ele não o pode”.
2. A Evolução do Dinheiro Moderno
O dinheiro – que é uma das formas do capital – também se desmaterializa com o desenvolvimento do Capital. Como já colocado antes, o dinheiro começa como dinheiro-ouro e que sua implementação está relacionada a coerção do estado. Porém, investigaremos, agora, de forma mais profunda a questão do dinheiro.
Resumirei o argumento de Leda Paulani (2011) sobre o movimento do dinheiro na lógica-histórica do Capital. Em primeiro lugar, o dinheiro permite que o valor se autonomize do valor de uso. Pois, não é mais necessário que a coincidência de valores de uso das mercadorias trocadas. Agora, todas as trocas passaram a ser medidas por um valor de troca (preço) e o ouro terá como valor de uso ser dinheiro. Esse valor de uso é puramente formal, fruto do desenvolvimento social dos mercados.
O dinheiro, como Leda bem descreve, possui em Marx três determinações: i) de ser medida de valor (e o padrão dos preços); ii) de ser meio de troca e iii) de ser meio de pagamento (e de fonte de entesouramento). Para poder ser medida de valor – e padrão dos preços – o dinheiro teve que ter algum tipo de submissão ao processo normal da produção de mercadorias, sendo fruto de um processo de trabalho. Porém, para que possa ser de forma mais ampla meio de troca, sua segunda determinação, o dinheiro estar preso ao ouro acaba se mostrando um obstáculo.
Todavia, da própria circulação do dinheiro-ouro surge uma das suas figuras: a moeda. A moeda, num primeiro momento, se apresenta como um título de ouro. Diz o quanto é. Porém, da própria natureza das transações, o próprio ouro contido na sua manufatura acaba se desgastando. Ou seja, seu título e sua substância se afastam e sua função de expressar preço pode se desvincular completamente de seu material constituinte. Logo, abre-se a possibilidade do dinheiro tornar-se mero título de papel.
Esse movimento “lógico” se expressa no processo histórico real do capitalismo, em grande parte, por intermédio do estado. Como lembrado nos trechos anteriores, é o estado que definirá como se dará a transação entre dinheiro e mercadorias. Ditará por meio de leis, regulação e coerção de que formas essas transações podem ocorrer. É com este dinheiro regulado pelo Estado que ele faz tanto a tributação quanto o seu gasto.
Tomemos a Inglaterra como exemplo hipotético. Reitero que é hipotético, o processo real do desenvolvimento das leis bancárias, tributárias e de financiamento do estado da Inglaterra não cabe discutir nesta pequena nota. Imaginemos que num primeiro momento, o governo define que a libra deva ser uma moeda que deve pesar tantas gramas de ouro. Este é o dinheiro. O estado inglês cobra impostos nesta moeda e compra serviços e bens dos capitais com esta moeda. É com esta moeda que se compra navios, pólvora, armas, servidores públicos, exército e etc. Todo o dinheiro que o governo possui advém do lucro auferido da produção de mercadorias.
Para que possa realizar esses gastos, ela deve ter arrecadado o tanto quanto gastou num determinado período ou ter algum valor em estoque num cofre nacional. Porém, em situações específicas, como esforços de guerra, ou devido a crises econômicas, o estado inglês acaba gastando mais do que arrecada. A solução, portanto, é emitir um título de dívida pública. Este título é uma promessa de pagamento equivalente ao seu valor acrescido de juros pagos num prazo futuro. Se o estado gastar 1000 libras e não tem mais fontes, ele emite um título de dívida com o valor de 1000 libras e diz que depois de 5 anos, o comprador deste título, que deverá pagar com libras, receberá o montante pago e acrescido de 100 libras de juros.
Imaginemos que nosso comprador seja um capitalista industrial e com o mais valor realizado de sua indústria possa comprar o título emitido. Nos períodos subsequentes, imaginemos que o governo faça todos os devidos pagamentos e não precise expandir sua dívida. Todos os pagadores de impostos, sejam eles trabalhadores ou capitalistas, transferem parte da sua renda para este proprietário. Este proprietário apropriou-se de valor e mais valor sem os produzir. A dívida pública se apresenta então como mais uma forma de capital fictício, similar às ações e os derivativos.
Com a evolução do dinheiro, ele passa a ser um papel. Libras impressas. Porém, estas libras ainda dizem equivaler uma certa quantidade de ouro. De forma geral, somente em situações de extrema crise que os portadores do dinheiro desejarão trocar libras de papel em ouro. Essa troca pode ser realizada em bancos privados. Numa situação limite em que os bancos privados, devido a um pânico financeiro, não possuem mais ouro em seus cofres, o estado acaba virando o emprestador de ouro de última instância. Aqui, começa, portanto, a surgirem os bancos públicos e os bancos centrais, que centralizam essas garantias e servem também como formas de flexibilizar o gasto e a arrecadação do estado.
Esse sistema de dinheiro papel conversível, isto é, podendo ser trocado por ouro, é o marco monetário contemporâneo aos escritos de Marx. No seu tempo, algumas nações, por períodos breves, podiam suspender a conversibilidade da moeda temporariamente.
No século XX, algumas nações imperialistas, por exemplo, suspenderam a conversibilidade devido às duas grandes guerras. Durante esse período, o fim da conversibilidade não gerou qualquer grande solavanco econômico a estas nações imperialistas, mesmo assim, após as duas guerras, estipulou-se um novo arranjo financeiro internacional, que se consagrou como o Acordo de Bretton-Woods. Neste acordo, definiu-se que os EUA fosse a única economia mundial que necessitava de conversibilidade do dólar americano para o ouro. Os outros países, dessa forma, deveriam ter como reserva principal o dólar.
Essa configuração durou pouco e, na década de 1970, o governo estadunidense declarou que o dólar seria inconversível. Agora, o dólar americano representa o dólar americano. Pode-se trocar o dólar por quaisquer mercadorias existentes, porém, seu título de valor não mais é relacionado a qualquer grama de ouro. Isso muda de forma considerável a forma com a qual os bancos privados dão empréstimos, como se relacionam com os bancos centrais e como o governo gasta (VERNENGO, 2021; LEDA PAULANI, MÜLLER, 2010).
Para tratar de cada item, usaremos o caso brasileiro como exemplo. Imaginemos que a economia brasileira possua somente um banco. Este banco presta somente dois serviços, de emprestar dinheiro e de abrir contas correntes. Uma fração do total de depósitos em conta corrente fica preso junto ao banco central – chamado de reservas compulsórias. A outra fração são empréstimos. Se uma unidade produtiva capitalista quer expandir sua produção – isto é comprar capital constante – e não possui fundos de valor para tanto, ele pede ao banco privado um empréstimo. Imaginemos que esse banco conceda a unidade produtiva todo o valor pedido, pois o considera um bom pagador e, portanto, o capitalista industrial pagará as parcelas futuras.
Com o dinheiro do empréstimo, ele compra essas mercadorias de uma outra unidade produtiva produtora de bens de capital. Essa última, por sua vez, usa esse dinheiro para pagar aos acionistas e salários aos trabalhadores. No final das contas, como só há um único banco, todos os valores recebidos pelos acionistas e trabalhadores acabarão depositados nas contas correntes do mesmo banco. Assim, a igualdade entre depósitos e empréstimos é mantida. Essa lógica pode ser expandida para qualquer número de bancos, empresas, capitalistas e trabalhadores (porém, não cabe nesta nota desenvolver toda a exposição deste fenômeno econômico).
Leitor, neste momento, talvez esteja pensando “mas se não se precisa de fundo de valor para dar empréstimos, porque eu não posso fazê-lo? Por que não posso criar o meu próprio banco?”. O problema reside no fato de que para um banco operar, ele passa por diversas requisições legais e financeiras. Para se tornar um banqueiro, deve-se ter uma quantidade considerável de riqueza prévia, pois toda estrutura operativa precisa ser comprada e estruturada. Vemos, novamente, que ainda que no capitalismo financista a expansão do crédito se faça do puro ar (ex-nihilo) ainda possui uma relação com a produção e apropriação de valor.
Outra pergunta comum é: “mas porque os bancos não simplesmente saem emprestando dinheiro para todo mundo?”. Ainda que o nível de empréstimos possa ser criado ex-nihilo, a fonte de riqueza dos bancos se dá no pagamento de juros. Somente no pagamento de juros é que se transfere mais valor (e valor no caso dos trabalhadores) para os bancos privados. Ou seja, a quantidade de crédito – e a taxa de juro – dependerá do quão bom pagador é quem toma o empréstimo. Geralmente, aqueles capitalistas que vendem muitas mercadorias e possuem diversos títulos de propriedade, conseguem empréstimos a taxas baixas e montantes elevados. Incessantemente a maldição da produção sempre está na cola do capital; aqui, mais uma vez! Inclusive, uma das formas que assegura a dominação da burguesia sobre os meios de produção é que os grandes capitais possuem uma facilidade muito maior de se apropriar de crédito do que trabalhadores e pequenos burgueses (KALECKI, 1983).
3. Bancos centrais e Dívida pública
Agora, lidaremos com a relação entre os bancos privados e o banco central. O banco central define que uma certa quantidade de depósitos fiquem numa conta no banco central. O que já apontamos anteriormente, chamados de reservas compulsórias. Esses depósitos são aumentados para reduzir a liquidez da economia, pois reduz o montante de crédito disponível, ou são diminuídos para aumentar a liquidez, ou seja, aumentando o montante de crédito disponível. Além disso, somente o banco central emite papel-moeda. Reais físicos. Notas bancárias. Os bancos centrais emitirão o tanto de papel-moeda demandado pelos capitalistas e trabalhadores, cujo intermediário serão os bancos privados. Os capitalistas e trabalhadores, por sua vez, dada a taxa de juros, escolherão o quanto de papel-moeda e títulos públicos terão em seus ativos financeiros. Se altera-se a taxa de juros, então muda-se a composição de demanda e, assim, altera-se a emissão de papel-moeda (LAVOIE, 2014).
Por fim, trataremos do BCB, o Banco Central Brasileiro. Por intermédio deste, que se controla tanto a liquidez geral da economia por dois mecanismos: pela taxa de juros básica da economia (SELIC) e as reservas compulsórias que já descrevemos no parágrafo anterior. A SELIC é uma meta com a qual o BCB procura atingir no mercado de títulos de dívida pública de curto prazo. De forma resumida, o preço de um título de dívida é inversamente proporcional à taxa de juros. Para que se estabilize a taxa de juros, o BCB deve comprar ou vender títulos públicos para que os preços convirjam de forma a resultar na taxa de juros da meta.
Todo dia, o BCB realiza essa operação, comprando e vendendo títulos para instituições financeiras. Como o BCB tem uma capacidade de poder de compra muito maior que qualquer instituição privada – justamente porque é o governo que possui o monopólio sobre a emissão de dinheiro – ele consegue definir o juros para o nível que desejar. Essa taxa de juros acaba tendo uma relevância ímpar nas economias. Como o governo emite o dinheiro com o qual se paga a dívida expandida, o risco de calote por motivos de restrição financeira são inexistentes. Assim, esse capital fictício acaba se tornando uma referência de rentabilidade generalizada para os capitais. É por meio desta taxa, que se compara, usualmente, a rentabilidade de outros capitais fictícios, assim como a rentabilidade que capitais produtores de mercadoria auferem aos seus proprietários. As taxas de juros longas, que não teremos tempo hábil para aprofundar, as quais incidem sobre prazos maiores (de 5, 10, 20, 50 anos) e, que o BCB tem capacidade de regular, também apresentam impacto importante na distribuição entre salários e lucros.
Para todos os países que abandonaram o padrão-ouro – isto é, passam a ter dinheiro inconversível – o governo não precisa de forma alguma ter em suas mãos qualquer fundo de valor ou até mesmo renda corrente para financiar o déficit público expresso no dinheiro nacional. A forma de pensar isto é simples. Diferentemente de uma unidade produtiva capitalista que quando gasta mais do que recebe de receita, ele é obrigado a procurar algum tipo de empréstimo, o governo, não necessita tomar empréstimos, pois ele emite o dinheiro com o qual paga todas suas obrigações e que todos aceitam este dinheiro, pois, é com este, que se pagam todas as mercadorias produzidas no país. Abre-se, portanto, uma possibilidade formal de o governo abandonar a emissão de dívida pública. Porém, não o faz tanto por motivos jurídico-políticos quanto por questões de política monetária.
Quando o governo gasta, o BCB junto ao Tesouro Nacional (entidade que por motivos jurídicos é o “caixa” do governo) credita a conta bancária do vendedor de alguma mercadoria que o governo comprou. Seja ela força de trabalho, como no caso dos servidores públicos, seja bens de capital, para construir hospitais, estradas, universidades etc. Assim, o governo criou dinheiro na economia. De forma contrária, o pagamento de impostos é a destruição de dinheiro na economia. Se após o pagamento de todos os impostos e de todas as compras do governo, o governo comprar mais do que o montante arrecadado, ele é obrigado pela força da lei a emitir um título da dívida pública. Esse título é leiloado entre o Tesouro Nacional e os compradores primários. Esses compradores são determinados por regras jurídicas e eles, atualmente, são os bancos privados e dois bancos públicos, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. Os bancos, então, com o dinheiro dos juros, ganhos pelos empréstimos dados a trabalhadores e capitalistas, podem comprar títulos públicos, que dará a esses bancos após um período pré-determinado o valor do título acrescido de juros pagos pelo governo. Aqui, portanto, os bancos se apropriam, mais uma vez, de riqueza sem a produzir.
Suponhamos que o governo tenha um déficit de R$ 100 e emite um título que pagará 10% de juros após o vencimento de um ano. Depois de um ano, portanto, o seu comprador receberá R$ 100, acrescido de R$ 10 de juros. Porém, neste mesmo ano, o governo ficou no zero a zero, nem superávit, nem déficit. Como há o compromisso do pagamento do título emitido no passado, o governo será obrigado a emitir um novo título no valor R$ 110, com uma taxa de 10% de juros e com o mesmo vencimento. Essa operação é denominada de rolagem da dívida. Alguém pode se perguntar “porque alguém compraria um título de um governo que “rola” a sua dívida, que empurra suas obrigações com a barriga?”. Observemos que somente o governo pode gastar/emitir o tanto que precisar, pois é o único que pode pagar com essa moeda sem restrição financeira qualquer. O título público acaba se tornando o ativo de menor risco da economia, tanto no contexto brasileiro, quanto no contexto mundial. Há uma impossibilidade de faltar dinheiro tanto para compradores de dívida pública quanto para o governo gastar.
Por fim, do ponto de vista da produção de valor e mais valor, o que está ocorrendo? Mesmo que não seja uma transferência direta de recursos dos pagadores de impostos para os proprietários dos títulos de dívida pública, algo próximo a isso ocorre de forma implícita. Como apontado anteriormente, a produção e a apropriação de valor tem a tendência de continuamente se afastar. No final do período todo, a distribuição do poder de compra, ou do dinheiro em mãos, tem uma relação qualitativa com a massa de valor produzida. Toda a riqueza comprada, cujo poder de compra deriva do poder do estado capitalista, é fruto de um processo de produção e, portanto, de exploração.
A questão é que o Estado Capitalista possui agora um mecanismo que pode dar de forma livre o poder de compra para quem desejar. A questão é que raramente o nível de gastos será tão elevado quanto a produção de valor. Isso ocorre, pois, o nível de gastos do governo induz ao crescimento da acumulação capitalista que, por sua vez, aumenta a massa de mais valor produzida, pois o capitalista empregará tanto mais maquinário, quanto mais força de trabalho4.
A oferta que os capitalistas trazem à sociedade é sempre maior do que aquilo que eles mesmos demandam. Sempre há a produção de excedente e a realização desse excedente – de mais valor – induz a esse capitalista continuamente a acumular mais e mais.
Aqui, portanto, fica finalizada a exposição do processo que denominamos de desmaterialização do valor.
4. dos Limites dos Gastos Públicos (e do Pleno Emprego)
“Se o governo não tem restrição para gastar, por que ele não dá dinheiro para todo mundo?”. Após a apresentação da seção acima, esta é a pergunta que mais comumente aparece. Afinal, quais são os limites para o gasto do governo? Podemos tratar, agora, de três limites:
I) Dos limites da inflação:
Com a introdução do crédito, o montante de apropriação possível, se difere da produção corrente. Os descompassos entre apropriabilidade e a produção são o fundamento e a origem da inflação, i.e, da desvalorização da moeda (FARIA, 1988). No entanto, como já mencionado acima, a expansão do crédito e da moeda induzem os capitalistas a investirem, intensificar a jornada de trabalho e aumentar as rotações de seu capital.
A magnitude da inflação, todavia, é determinado pelo conflito distributivo. Para exemplificar como isso se dá, suponhamos um governo que continuamente gasta cada vez mais, ano a ano, gasta mais do que no ano anterior. Devido a variação no nível de consumo, os capitalistas aumentarão seu investimento em capital constante e capital variável, contratando mais maquinário e mais força de trabalho. A continuidade desse processo, levará a um aumento no nível de emprego. Esse aumento, por sua vez, leva a uma maior capacidade de negociação salarial da classe trabalhadora, que pedirá salários crescentes. No entanto, a classe capitalista quer manter a sua taxa de lucro, passando o aumento dos salários para os preços das mercadorias. Como o crescimento é incessante, no próximo período, os trabalhadores querem repassar o custo de vida aumentado para um aumento nos salários. Novamente, então, os capitalistas repassarão esse aumento aos preços. Para um elevado nível de emprego, próximo ao pleno emprego de toda a força de trabalho, esse processo de inflação cresce de forma acelerada. Tendo-se, então, uma espiral inflacionária. Em situações extremas, o dinheiro nacional deixa de ser meio troca, as trocas passam a ser feitas em moedas estrangeiras, ou o pior, trocas por escambo. (SUMMA; SERRANO, 2018)
II) Dos limites da restrição externa5: como no exemplo anterior, se o governo continuamente aumenta o nível de gastos, isso leva ao crescimento da acumulação capitalista. Como nem tudo é produzido dentro do país, isto faz com o que o nível importações cresça mais do que o nível de exportações. Se continuamente sai mais dólar que entra, de alguma fonte deve vir o dólar para financiar essa diferença (BHERING, SERRANO, FREITAS, 2014). Num primeiro momento, é pelas reservas internacionais, que o BCB administra, porém, se esta acaba, o governo é obrigado a tomar empréstimos com instituições estrangeiras – FMI, bancos privados estrangeiros , potências imperialistas etc. -, aumentando a sua dívida externa. Para redução da dívida externa há dois caminhos, o primeiro envolve exportar mais do que importar e a forma mais comum é o governo reduzir continuamente o nível de gastos, aumentar a tributação e reduzir a liquidez para que a acumulação capitalista caía e o nível de importações reduza como consequência da queda do nível de acumulação. A segunda envolve o calote, que somente em governos populares acaba sendo bem sucedida. Mesmo assim, pode levar a consequências não desejadas, como o embargo de importação de certos insumos essenciais.
III) Dos limites políticos6: o contínuo aumento de gastos que leva ao pleno emprego é a antessala para a instabilidade social. Se todos estão empregados, o medo de desemprego é reduzido. Se a classe trabalhadora tem um nível de consciência elevado, pode-se instaurar diversas insurgências e o fortalecimento de centrais sindicais. Os capitalistas fazem, então, uma ampla campanha para reduzir o nível de gastos, gerar o desemprego e disciplinar a classe trabalhadora (KALECKI, 1944). O fazem, tanto para evitar a capacidade de insurgência e rebelião, quanto para evitar as situações descritas nos limites I) e II). Um exemplo recente de tal movimentação foi a virada de política econômica dos governos petistas que em 2015 iniciaram um choque fiscal e monetário (isto é, queda do nível de gastos, aumento da tributação, redução da liquidez, etc.), que continua até hoje, devido ao teto de gastos.
Da limitação I), caso não houvesse conflito distributivo entre salários e lucros, ou seja, a produção não fosse capitalista, o problema do pleno emprego inflacionário não se mostraria mais verdadeiro. A limitação II) é comum a todos os países capitalistas e socialistas, enquanto o capitalismo for dominante globalmente. O crescimento econômico é limitado por um determinado equilíbrio entre exportações e importações. A solução para que isso seja mitigado é reduzir o nível de dependência tecnológica que um país tem com o outro. No contexto brasileiro, continuamente aumentamos nosso grau de dependência, pois cada vez menos insumos essenciais complexos são produzidos em território nacional. Nossa burguesia, não apresenta nenhum interesse em acabar com esta dependência, afinal, movimentações de reconversão de composição industrial são altamente custosas. A limitação III) obviamente acabaria com o fim da dominância do capital sobre o Brasil.
5. das Soluções da Classe Trabalhadora: a Auditoria Cidadã da Dívida ou Teoria Monetária Moderna?
“Que fazer?” Chegamos, então, à situação final. Afinal, o que fazer com a questão da dívida pública? Do exposto acima, temos de forma clara que o pagamento de juros por parte do governo via emissão de títulos da dívida pública apresenta uma transferência de valor e mais valor para os capitais rentistas, ou para ser mais rigoroso, para aquelas capitalistas cujo patrimônio esteja assentado em dívida pública. Por outro lado, esse efeito pode ser mitigado ao passo que o gasto seja direcionado para demandas e anseios da classe trabalhadora.
Se se supor uma taxa de juros dada, então haverá uma combinação entre a composição dos gastos e seu nível que distribuirão o excedente social de volta aos trabalhadores. O fluxo de renda do estado para os trabalhadores pode ser maior do que o fluxo de pagamento dos juros aos burgueses, desde que os gastos sociais sejam maiores que os gastos com juros; ou que a burguesia não seja o principal recebedor desses juros7
No contexto atual, o nível de gastos está engessado, pois, os representantes da burguesia – que não compreendem as finanças do estado – querem estabilizar o nível da dívida pública. Porém, ainda mais na situação atual, como então pagar auxílio emergencial, postos de emprego, universidades e tratamento médico para os adoecidos pela pandemia? Afinal, se a classe trabalhadora está em frangalhos e não há como garantir esses direitos básicos ou qualquer nível de emprego, a construção do poder popular torna-se mais difícil. Militar torna-se mais penoso num contexto de desalento completo. Há menos tempo para construir o poder alternativo, se todo o tempo é gasto para sobreviver.
A primeira solução vigente no debate é a da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD). Essa organização suprapartidária tem a seguinte argumentação: parte do gasto do governo está continuamente atrelado a uma transferência de valor e mais valor para capitais rentistas. Para evitar essa transferência de renda, deve-se empenhar num processo de auditoria da dívida pública, com o objetivo de reduzir o seu montante e, portanto, reduzir a transferência de valor e mais valor para os detentores dos títulos públicos. Com isso, o orçamento da união apresentaria um maior espaço para gastos sociais. Aqui, temos que a dívida pública representa um entrave para a construção do poder popular.
De fato, a rolagem da dívida pública e o pagamento de juros podem transferir valor para instituições financeiras privadas e o cancelamento da dívida pode reduzir essa transferência. No entanto, isso levaria a um descontrole do nível de liquidez da economia e da capacidade do governo determinar a taxa de juros básica (a SELIC). Esta, por sua vez, é importante para definir a taxa de câmbio e seu controle é importante para evitarmos os limites I) e II) apontados na seção anterior. Maiores taxas de juros internas, aumentam a demanda de reais por portadores de dólares que especulam sobre os títulos públicos; menores taxas de juros internas reduzem a demanda de reais por portadores de dólares. Se a taxa de juros cair muito, caí a demanda por reais e o real se desvaloriza em relação ao dólar. Com isso, o custo dos bens importados sobe, como quase todos os bens-salários são importados, o aumento do câmbio leva a uma queda no nível geral da qualidade de vida se não acompanhado de outras políticas econômicas para mitigar estes efeitos negativos.
Para que seja factível essa proposição da ACD se necessitaria da estatização de todo o sistema financeiro e, possivelmente, de algum tipo de controle de capitais, para impedir fluxos especulativos que impactem na taxa de câmbio. Ainda que a estatização dos bancos e algum tipo de controle de capitais possam ser interessantes, esta não é uma das únicas formas de reduzir essa transferência de mais valor ao rentismo e tampouco para permitir que o governo consiga colocar em seu ‘orçamento’ mais gastos sociais. Como visto até agora, o orçamento é um limitador jurídico e político e não econômico do gasto do governo.
A outra proposição em voga é da Teoria Monetária Moderna (TMM), cuja influência nas organizações revolucionárias cresce. A origem teórica dessas proposições encontra-se tanto em marxistas quanto na escola pós-keynesiana de pensamento econômico. A argumentação geral é de que deve-se usar a expansão da dívida pública para garantir o pagamento de direitos básicos e para aumentar o nível de emprego. Em suas formulações, não importa se o rolamento da dívida pública transferir valor e mais valor para bancos privados. Pois, em última instância, o programa de gastos continuado garantirá esses variados direitos e poderá assegurar o pleno emprego. Aqui, então, temos que a dívida pública é um caminho para a construção do poder popular.
Podemos adicionar que a segunda proposta não precisa ser operada em conjunto com a estatização ampla do sistema financeiro, nem, em princípio, qualquer controle de fluxo de capitais para estabilizar a taxa de câmbio. Sendo portanto, uma proposta que exige menos mobilização da classe trabalhadora, porém, a mediação realizada pode apresentar um rebaixamento das exigências da classe trabalhadora, não só isso, mas pode fortalecer capitais parasitários.
No entanto, como já descrito, basta que o fluxo de gastos sociais seja maior que os juros, ou ainda, uma solução não trivial pode resolver esse dilema: permitir que o BCB possa comprar títulos do tesouro, ou que os bancos públicos possam o fazer. Assim, a dívida pública é rolada pelo próprio governo, impossibilitando a transferência de mais valor para os bancos privados e as transferências de valor e mais valor estarão determinadas pela distribuição dos gastos e da tributação. Por exemplo, se o nível de gastos for o suficiente que evite as limitações I) e II), um aumento de gasto no SUS e um aumento nas alíquotas no imposto de renda, representa uma transferência de apropriação de riqueza da classe capitalista para a classe trabalhadora.
Por fim, aquelas necessidades impostas para que as operações da ACD não resultem em desastres econômicos não são mais necessárias, se tornam possíveis opções da classe trabalhadora em sua trajetória até a tomada do poder do estado. Se estatizar todo o sistema financeiro não for possível num primeiro momento, então que se use os bancos públicos para expansão da dívida, se não for isto também possível, que as políticas econômicas sejam radicais, construam moradia popular, educação verdadeiramente universal, alimentação a baixo custo e, assim por diante.
Ou seja, a teoria monetária moderna apresenta uma coleção de ferramentas e esquemas analíticos que ampliam nossa criatividade para a ação política. A dívida pública não é entrave para a construção do poder popular e tampouco é um caminho para sua construção. O que de fato é um entrave é a noção liberal e insuficiente de imaginar que o estado possui amarras financeiras estritas e que deve seguir o receituário tradicionalmente neoliberal. As contribuições da teoria monetária moderna permite a classe trabalhadora combater o discurso da burguesia de que “não há dinheiro”, o “cofre acabou”, “não há espaço fiscal”.
Usar as finanças públicas para atender as demandas sociais urgentes e para fortalecer seu poder, financiando formas de trabalho e de poder alternativas. A burguesia quando se dá conta desta realidade sobre o mecanismo financeiro, no limite, somente o faz de forma oportunista, conforme vimos recentemente no período eleitoral, em que as “regras fiscais” foram sumariamente abandonadas para tentar reeleger Bolsonaro e seu grupo fascista. Usualmente, o que se vê é austeridade nos programas sociais e expansão fiscal para acumulação do lucro e do rentismo. Quando a questão é salvar empresas, bancos e o sistema financeiro, como um passe de mágica, o discurso do “dinheiro acabou” some e o Estado expande sua dívida pública para salvar o capital privado. No entanto, o dinheiro não acabou. O que pode acabar é a exploração e o comando burguês do excedente produtivo.
REFERÊNCIAS
BHERING, G.; SERRANO, F.; FREITAS, F. “Thirlwall’s law, external debt sustainability, and the balance-of-payments-constrained level and growth rates of output,” Review of Keynesian Economics, vol. 7, n.4, p. 486-497, out. 2019.
CARCANHOLO, R. Capital: Essência e Aparência, capítulo 1. São Paulo: Expressão Popular, 2011
KALECKI, M. Teoria da Dinâmica Econômica. São Paulo: Abril, 1983. (Os Economistas)
KALECKI, M. Three ways to full employment. The economics of full employment, v. 6, p. 39, 1944.
LAVOIE, M. Post-Keynesian economics: new foundations. Northampton: Edward Elgar Publishing, 2014
MARX, K. O Capital, Vol I: crítica da economia política. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro II: O processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política, Livro III: O processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017
PAULANI, L. A Autonomização das Formas Verdadeiramente Sociais na Teoria de Marx: Comentários sobre o Dinheiro no Capitalismo Contemporâneo. Revista EconomiA, Brasília, v.12, n.1, jan/abr, 2011.
PAULANI, L.; MULLER, L., A. P. Símbolo e Signo: O Dinheiro no Capitalismo Contemporâneo. Estudos Econômicos, São Paulo, v.40, n.3, p. 793-817, out/dez, 2010
VERNEGO, M. The Consolidation of Dollar Hegemony After the Collapse of Bretton Woods: Bringing Power Back in. Review of Political Economy, vol. 33, n.4, p. 529-551, 2021
Notas:
1 Tal fenômeno é descrito como o paradoxo da poupança pelos economistas pós-keynesianos.
2 Para calcular este adicional, basta multiplicar a quantidade total de cadernos produzidos pelo tempo de trabalho individual de trabalho de caderno, adicionando este último pela diferença entre o valor e o valor de troca e transformando o resultado final em horas. ((133 x (5 + 1,5)/60)).
3 Fausto (1983) denomina a relação entre proprietários de terra e o capital como uma contra relação de produção. Pois, os proprietários de terra são para Marx um obstáculo para a produção de mercadorias. Ainda que os capitais não industriais sejam parasitas estes só podem parasitar o capital industrial, pois possuem alguma mercadoria útil para a reprodução do capital como um todo.
4 Num próximo trabalho, será explicitado que esta proposição lançada não é estritamente verdade em todas as ocasiões. A teoria marxista da acumulação não apresenta um consenso imediato sobre esses temas. De forma geral, assume-se que no curto prazo (isto é, antes dos capitais terem se mobilizado plenamente) tudo o que fora descrito é verdadeiro, enquanto no longo prazo, nem sempre isso seja verdade.
5 Somente os EUA não possui, de forma alguma, qualquer tipo de restrição externa. Pois, todos os países que exportam para os EUA demandam dólar. Assim, os EUA podem continuamente crescer a taxas muito mais elevadas que garantiriam um equilíbrio das importações e exportações. Outros países que apresentam moedas relevantes para o comércio internacional, como é o Euro, possuem uma restrição externa reduzida. Essa redução da restrição externa está vinculada tanto a capacidades militares, quanto a capacidades econômicas – geralmente, misturando as duas coisas.
6 A ditadura militar conseguiu durante quase todos seus 21 anos de terrível existência manter um elevado nível de emprego. Isso se dá pelo fato de que a opressão sobre a classe trabalhadora era suficiente para evitar conflitos distributivos que levassem a aumentos na inflação. Além disso, a ditadura tentou reduzir de forma burguesa o grau de dependência, permitindo taxas de crescimento que não levassem ao endividamento externo. Porém, tais planos econômicos foram duramente frustrados, tanto por motivos conjunturais quanto por problemas estruturais de um projeto burguês de nacionalização da produção.
7 Se a Caixa Econômica Federal, por exemplo, for a principal detentora de títulos, na prática, significa que a burguesia não receberá a maior parte dos juros.
Gabriel Zaffari é Militante da UJC-RS e Mestrando em Economia na Università degli Studi Roma Tre e na Sorbonne Université.