Por Alexandre Kojève, via Radical Philosophy, traduzido por Carolina Pena
É bem-sabido que o Partido Comunista de Toda a Rússia (Bolchevique) – o atual partido dirigente da USSR – está combatendo não somente uma frente econômica e política, como também uma cultural: está lutando contra a cultura burguesa em nome da cultura proletária. Isso em particular envolve a filosofia. Na visão do Partido, apenas uma filosofia materialista e marxista pode expressar a visão de mundo da nova classe dominante e nova cultura, e qualquer outra filosofia está submetida à destruição. É bem-sabido, também, que essa destruição está ocorrendo não apenas ou meramente por um combate ideológico, mas por recursos administrativos: o fechamento de departamentos universitários, o exílio de filósofos, o banimento de livros, e assim por diante.
Qual deve ser o relacionamento entre um filósofo não-materialista e não-marxista e tal aspecto das políticas do partido regente? Pode parecer que a resposta é entregue na própria pergunta, que o relacionamento pode somente ser negativo. Me parece, entretanto, que o caso aqui não é tão simples.
Claro, não deve haver qualquer tipo de dúvida de que as ‘políticas filosóficas’ do Partido tem um impacto danoso nos filósofos russos atualmente vivos. Elas têm privado aqueles que continuam na USSR de aprendizes e têm mutilado da sua cultura nativa os leitores forçados a viver além de suas fronteiras. Ambos sem dúvida ferem o trabalho filosófico. Se, entretanto, nos inclinarmos ligeiramente ao ceticismo em relação ao pathos anti-Bolshevik de um senhorio cuja propriedade foi expropriada, ou um ministro que perdeu seu gabinete, então não procede que, a fim de ser consistente, um sujeito deve estender seu ceticismo a qualquer aversão “filosófica” em relação aos eventos na Rússia daqueles que perderam seu papel como líderes ideológicos, sejam imaginários ou reais? Afinal, dificilmente alguém afirmará (ao menos abertamente) que a economia soviética é ruim apenas por negar a um número de pessoas seu status de propriedade, ou que as políticas do Partido não são mais adequadas porque vários políticos não tomam parte nelas. Não estamos, ainda, no mesmo nível quando afirmamos que suas ‘políticas’ filosóficas’ são certamente ruins, uma vez que impedem a atividade de uma quantidade de filósofos?
Me parece que, se alguém está avaliando as manifestações autênticas de um povo de 150 milhões (atualmente vivendo por entre um intenso período histórico), que isso não pode se basear nos interesses e pontos de vista de indivíduos em particular, independentemente de quão significativos ou valiosos estes possam ser. Deixe-nos aplicar esse princípio genérico também à filosofia. Tudo que atualmente se sucede na URSS é tão significante e novo que qualquer avaliação das políticas culturais ou ‘filosóficas’ não pode se basear em valores culturais preconcebidos ou sistemas filosóficos pré-formulados. Temos chances significativamente menores de erro se, dada a proibição de um dado sistema filosófico, afirmarmos não a falsidade desta proibição, mas, ao invés, a inutilidade deste sistema para o dado momento na vida cultural de um povo.
Se, entretanto, não se pode julgar do ponto de vista de figuras ou sistemas filosóficos individuais a luta da nova classe dominante por uma cultura, é possível, então, julgá-la baseando-se na ideia genérica de cultura e filosofia como tais. Ainda assim, formulando de tal modo, a questão das ‘políticas filosóficas’ do Partido pode ser analisada, ao que parece, não inteiramente negativamente. Aqui está o porquê.
Após Hegel, a filosofia atingiu um impasse. Não que, desde então, nada novo tenha sido fundado, ou que não mais apareçam grandes talentos filosóficos. Ambos tem ocorrido, evidentemente. Em direção ao final do século dezenove, o pensamento Ocidental efetivamente concluiu seu desenvolvimento: a filosofia encerrou o círculo formado por seus próprios conceitos e perdeu sua conexão imediata à realidade, transformando-se em uma escola filosófica de ‘escolasticismo’, no sentido popular e negativo da palavra. Se alguém considera conclusivo os principais resultados já conquistados pelo pensamento Ocidental, então não há nada negativo a ser visto sobre essa situação. Mas, se alguém pensa que a filosofia, em sua tentativa de analisar a realidade, deve sempre basear-se apenas no dado imediato e no material vivo, ao invés do material já sistematicamente formulado e morto, então a condição atual do pensamento Ocidental não pode ser considerada normal. Muitos pensadores admitem essa anormalidade, incluindo Heidegger, quem, nos termos mais duros, demanda uma saída do emolduramento dos sistemas já fundados, uma recusa aos conceitos já formulados que perderam qualquer sentido real, que mira em, mais uma vez, conquistar a habilidade de enxergar as coisas sem mediação. O caminho escolhido por ele induz através de uma análise da tradição histórica: por uma análise histórica dos conceitos filosóficos fundamentais, ele tenta descobrir as formas de ser expresso por eles. Ao lutar por esse objetivo, me parece que o sujeito pode tomar outro caminho. Ao lado da filosofia Ocidental, por exemplo, o sujeito pode estudar a filosofia oriental (isto é, indiana), que opera por conceitos completamente diferentes: comparando essas duas diferentes formas de descrever o mundo, o sujeito pode tentar penetrar uma realidade completamente diferente de qualquer forma de descrição.
Este não é o local para elaborar um método ou produzir uma avaliação comparativa entre esses dois meios de destruir os antolhos na tradição filosófica. É importante para mim, nesse momento, meramente notar que, ao lado deles, existe outro remédio concebível, mais radical: precisamente a ignorância completa do filósofo desta tradição [Ocidental]. Apesar de os meios talvez serem radicais, dificilmente são aplicáveis ao indivíduo. Uma vida humana é aparentemente curta demais para que, começando verdadeiramente pelo início, alguém possa criar qualquer coisa valiosa não apenas para si mesmo, como também para seus contemporâneos. Ainda assim, a situação muda completamente se, por um sujeito filosófico nos referirmos não a uma personalidade concreta, mas sim um povo inteiro. Nações geralmente não estão com pressa, e um povo depravado de tradição filosófica tem, sem qualquer dúvida, uma chance melhor de desenvolver um entendimento radicalmente novo e genuinamente filosófico do mundo que um povo vivendo em um mundo já formulado ideologicamente.
Após tudo que foi dito, deve ser claro porque, como filósofo, o sujeito pode de qualquer maneira acomodar ‘políticas filosóficas’ que induzem à proibição completa do estudo da filosofia.
A justificativa de tais políticas, entretanto, não ainda equivalem à justificativa das políticas do Partido. Até porque nem toda filosofia é proibida na URSS: a filosofia materialista-marxista é não somente permitida, mas propaganda pelas autoridades. Me parece, entretanto, que tal forma de interferência administrativa pode ser justificada ao ponto de vista da filosofia. Verdadeiramente, não importa o quão trivial e elementar a permissão de um sistema ‘unido e singular’ em um país possa parecer, é precisamente por conta de sua singularidade que é incapaz de interferir com o surgimento da filosofia real. Aqueles cujo sistema não lhes satisfazem – e apenas uma pessoa insatisfeita poderia tentar encontrar algo verdadeiramente novo – ainda serão incapazes de sucumbir à tentação disponível em excesso no Ocidente filosoficamente ‘livre’: ou trocar um sistema ‘destetado’ por outro tão quão ossificado, ou desfrutar de um jogo vazio, formalista e eclético com conceitos que não dizem nada. Além disso, a filosofia oficial da USSR não é tão elementar assim. Um sujeito pode obviamente não ser marxista, porém afirmar que uma doutrina que encontra centenas de milhares de seguidores em todo o mundo é nada a não ser absurdo é, de qualquer maneira, correr um risco.
Hegelianismo, mesmo em seu avatar marxista, é sem dúvidas nem trivial, nem elementar: o estudo do próprio Hegel é inclusive permitido na URSS, e a tradução das suas obras reunidas está sendo até mesmo preparada. De fato, será mais difícil escapar do grande filósofo alemão do que do Sistema da Natureza de Baron d’Holbach, o qual por alguma razão se considera uma ciência proletária: quase todos estão discutivelmente presos a Hegel, mesmo que se excedam em liberar-se do marxismo através dele. Aqueles que derrotam e superam Hegel, entretanto, não irão mais, graças às políticas do Partido, conseguir encontrar conforto em qualquer filosofia preparada, mas irão, sim, ser eles mesmos forçados a analisar e formular o que veem. Tendo em suas costas Marx e Hegel, eles irão, ademais, não estar inteiramente desarmados. Exposição, portanto, a um sistema ‘único e singular’ exigirá deles uma nova abordagem para a realidade vivida.
Logo, não apenas as políticas filosóficas idealizadas, como até mesmo as factuais do Partido podem ser justificadas por um filósofo. Um filósofo que, de nenhuma maneira, deseja confirmações de um entendimento marxista-hegeliano do mundo em perpetuidade pode, por enquanto, ficar em paz com as políticas filosóficas dos Bolcheviques. Ele simplesmente adotaria a observação de Hegel sobre a ‘astúcia da Razão’, que às vezes força pessoas, não por medo, mas por consciência, a trabalhar duro em benefício de algo que ele de nenhuma forma deseja.
Tudo dito sobre a políticas ‘filosóficas’ também é aplicável mais amplamente às políticas culturais. O Partido luta contra a cultura burguesa em nome da cultura proletária. A muitos, a palavra ‘proletariado’ não lhes cai bem. Isso é, no final das contas, apenas uma palavra. A essência da matéria não muda, e a essência consiste no fato de que a batalha está travada contra algo antigo, pré-existente, em nome de algo novo, que ainda há de ser criado. Qualquer um que acolha o surgimento de uma cultura e filosofia verdadeiramente novas – seja porque não serão nem orientais, nem ocidentais, mas euroasiáticas, ou simplesmente porque estas serão novas e em contraste vívido com as culturas já cristalizadas e mortas do Oeste e o Leste – deverá também aceitar tudo o que contribui para esse aparecimento. Me parece, por enquanto, que as políticas do Partido direcionadas contra a cultura burguesa (isto é, em última análise, ocidental) é, na realidade, uma preparação para uma nova cultura do futuro.
Pós-escrito. Em suma, várias palavras sobre filosofia estrangeira. Suas circunstâncias, penso eu, não são nem de perto tão pouco esperançosas quanto talvez pareçam ser do alto. Talvez prepare, também, a construção de uma nova cultura, ou ao menos participará dela. Isso é, entretanto, apenas sob uma condição indispensável: deve escutar atentamente a tudo que ocorre na Rússia. Se não quer perecer, deve ser – como agora é comum dizer – consoante com os tempos.