“A Rússia é um país imperialista?” – essa não é a pergunta certa a fazer

Por Zoltan Zigedy[1], via Morning Star, traduzido por Gabriel Lazzari

A brochura de V.I. Lênin “Imperialismo” [2] continua sendo a principal formulação do conceito de imperialismo para os marxistas. É o ponto de partida para qualquer discussão sobre a dinâmica global do capitalismo desde o final do século XIX até hoje.

Embora o capitalismo tenha dado voltas, reviravoltas e até mesmo feito desvios desde a época de Lênin, o destino permanece o mesmo – a exploração do trabalho visando ao lucro, onde quer que trabalhadores e recursos possam ser encontrados. A evolução, a concentração, o crescimento e o desenvolvimento desigual do capitalismo são as condições necessárias para o imperialismo. O imperialismo não respeita fronteiras sociais ou políticas. A brochura “Imperialismo” captura as características do capitalismo – monopolista – moderno.

No entanto, muitos aparentemente não conseguiram ler o subtítulo de Lênin: “Etapa superior do capitalismo”. Eles não conseguem entender que Lênin está escrevendo sobre, formulando, explicando um estágio particular do capitalismo, não características de estados individuais. Ele está descrevendo um período historicamente limitado, um período em que o capital em sua forma monopolista madura e financeiramente organizada passa a dominar o mundo inteiro por meio das conquistas feitas pelas “grandes potências”.

Nas palavras de Lênin: “(…) há que (…) dizer que o traço caraterístico do período que nos ocupa é a partilha definitiva do planeta, definitiva não no sentido de ser impossível reparti-lo de novo ‘pelo contrário, novas partilhas são possíveis e inevitáveis’, mas no sentido de que a política colonial dos países capitalistas já completou a conquista de todas as terras não ocupadas que havia no nosso planeta. (…) no futuro, só se poderão efetuar novas partilhas (…)”

Como exige o método de Marx, Lênin está abordando processos, tendências – neste caso, uma tendência do capital não apenas para dominar os Estados-nação, nem mesmo regiões, mas o mundo inteiro. É o completar ou redividir que define o imperialismo como uma era histórica, um processo que – através da competição – cria alianças e blocos em constante mudança. Em última análise, é a intensa competição levada além das fronteiras nacionais que pode acabar sendo resolvida com armas, por guerras.

Esses processos que Lênin associa ao imperialismo ocorrem de forma desigual e de diferentes formas. Após a Revolução Bolchevique, a dominação mundial do capitalismo monopolista foi interrompida pela existência da União Soviética. Seguiu-se uma cruzada anticomunista por parte das grandes potências capitalistas, mas o processo subjacente permaneceu o mesmo: entregar cada trabalhador e camponês aos braços do monopólio e do capital financeiro.

Mais uma vez, após a Segunda Guerra Mundial, o crescente poder e influência de uma comunidade socialista provou ser decisivo na libertação de quase tudo o que antes eram colônias das grandes potências. Novos países “independentes” surgiram na Ásia e na África. Mas a tendência subjacente identificada por Lênin se expressou novamente através de uma nova expressão do imperialismo: o neocolonialismo. O neocolonialismo manteve as velhas vantagens econômicas para as grandes potências dominantes, mas sem o ônus da ocupação e da administração.

“Esferas de influência”, um termo mais benigno cunhado no século XIX, capturou a tendência do capital em penetrar em todos os cantos do mundo, enquanto mascarava a subjugação implícita nas “colônias”. Assim nasceu uma “independência” dependente, cimentada mais pela necessidade econômica do que pela coerção nua e crua.

Com a queda da União Soviética, o andaime econômico mais viável para o desenvolvimento independente fora do sistema imperialista foi eliminado. Comentaristas ocidentais celebraram vigorosamente a perspectiva da penetração capitalista desimpedida em todos os países, sem exceção. Enormes mercados de trabalho entraram no sistema capitalista da Europa Oriental e da Ásia, reduzindo drasticamente os custos de bens, serviços e, mais importante, trabalho.

O capitalismo ganhou um segundo fôlego, desfrutando de crescimento e taxas de lucro mais altos e mais estáveis. Os capitalistas correram para abrir novos mercados, remover os impedimentos ao comércio, acelerar os investimentos estrangeiros, assegurar a reciprocidade de uma maneira nunca vista desde as primeiras décadas do imperialismo moderno. Efetivamente, as últimas décadas do século XX assemelharam-se àquele período anterior do imperialismo clássico para muitos marxistas.

Ironicamente, o triunfalismo capitalista serviu para enfatizar a atemporalidade da teoria do imperialismo de Lênin. Mais uma vez, a economia global foi dominada pela mobilização de grandes potências, em busca de vantagens econômicas (exploração) e esferas de influência.

Com os EUA, como a Grã-Bretanha em sua glória do século XIX, reivindicando o direito de determinar os termos da atividade econômica e do comércio mundial, previa-se um período de cooperação e paz. Nesta visão, os laços econômicos capitalistas e a dependência mútua serviriam para cimentar as relações sociais e políticas e garantir a estabilidade nas relações internacionais. Uma nova ordem mundial seria bem-vinda por todos e garantida pelos EUA.

Os poucos no Ocidente familiarizados com o revisionismo marxista do início do século XX observaram que essa ficção era notavelmente semelhante à teoria do “ultraimperialismo” de Karl Kautsky, uma teoria de que as grandes potências dividiriam o mundo e resolveriam a questão entre si sem atrito ou conflito. Lênin, muito antes, zombou dessa ideia. Quando escreveu “Imperialismo” em 1916, ele viu a catástrofe da Primeira Guerra Mundial como a refutação decisiva da ideia de imperialismo estável ou equilíbrio imperialista.

A maior parte da esquerda ocidental não comunista, alienada do leninismo e cega aos paralelos históricos, lutou para dar sentido à “nova” era pós-soviética, falhando em conectá-la ao imperialismo clássico descrito por Lênin e seus seguidores. Sem uma teoria, eles furtivamente cunharam o termo vazio de “globalização” para descrever a volta da vitória do capital monopolista.

As teorias pós-marxistas, pós-fordistas e pós-modernistas abundavam. Alguns “marxistas” acadêmicos pensaram que o final do século XX marcou o início de uma era de definhamento do estado-nação. Outros pensaram que estávamos vendo o surgimento de um supra-estado, um império, uma entidade totalizadora surgindo no mundo como um invasor alienígena.

A celebração do triunfalismo capitalista logo teve um fim abrupto com o retorno de guerras constantes e quase intermináveis e frequentes crises políticas e econômicas. Junto com a saída do imperialismo “benigno”, as fantasias teóricas de esquerda se desvaneceram. O comércio global encolheu após a crise de 2007-2009 e as tensões entre os países capitalistas cresceram sobre quem ganharia e quem carregaria o fardo de uma economia global lenta ou estagnada. As forças centrífugas na União Europeia dividem-na de norte a sul.

A Alemanha domina as políticas da União Europeia, impondo uma austeridade tamanho-único a diversos estados desigualmente desenvolvidos. A entrada impressionante da China na economia capitalista global e seu subsequente crescimento notável ameaçam a hegemonia dos EUA, criando competição e tensões intensificadas.

Os EUA têm procurado reprimir o desenvolvimento independente fora das hierarquias globais, usando substitutos, “guerra por outros meios”: sanções, boicotes e tarifas. E com resistência extremamente obstinada, os EUA engajam seu aparato de fomento a golpes ou liberam suas forças armadas para pastorear aqueles que ousam escapar do curral imperialista construído pelos EUA.

As “novas” grandes potências substituíram ou trocaram de lugar com a formação em atividade no tempo de Lênin. A União Europeia, apesar das diferenças de seus membros, elaborou uma agenda imperialista sob a administração da OTAN pelos EUA, como testemunha sua participação no desmantelamento da Iugoslávia e suas guerras no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria. A Arábia Saudita, infundida com petrodólares, procura impor sua influência sobre seus vizinhos, demonstrada mais recentemente por sua sangrenta guerra no Iêmen. Mesmo o minúsculo Israel participa da corrida imperialista ao anexar territórios de seus vizinhos e do povo palestino.

Onde há capitalismo, há uma busca por território, recursos, trabalho ou influência.

Como na época de Lênin, os países se encaixam nesse caldeirão caótico e instável de diferentes maneiras – às vezes como potências maiores, às vezes como potências menores ou vítimas. A competição — promoção ou proteção de interesses econômicos — é o que mexe esse caldeirão.

No Imperialismo, Lênin não identifica os países como “imperialistas”, sem qualificação. Fazê-lo violaria seu firme reconhecimento do desenvolvimento desigual.

No Capítulo VI, “A divisão do mundo entre as grandes potências”, ele simplesmente identifica aqueles países (os seis grandes!) que foram mais ativos entre 1876 e 1914 na aquisição de colônias.

Ele pode ser visto como estabelecendo uma hierarquia imperialista, mas isso também levar a enganos. Lênin, sempre atento à contingência histórica e às forças sociais em mutação, descreve com certa extensão a variedade dentro das “grandes potências”: “(…) a diferença continua a ser, no entanto, respeitável, e entre os seis países indicados encontramos, por um lado, países capitalistas jovens, que progrediram com uma rapidez extraordinária (a América, a Alemanha e o Japão); por outro lado, há países capitalistas velhos que, durante os últimos anos, progrediram muito mais lentamente do que os anteriores (a França e a Inglaterra); em terceiro lugar figura um país, o mais atrasado do ponto de vista econômico (a Rússia), no qual o imperialismo capitalista moderno se encontra envolvido, por assim dizer, numa rede particularmente densa de relações pré-capitalistas.”

Lênin não deixa dúvidas de que um país (a Rússia czarista) pode ser um grande jogador na disputa imperialista por colônias (ou esferas de influência) enquanto permanece um país capitalista menos robusto com resquícios ou prenúncios de outras formações econômicas (não capitalistas) ou recursos. Em outras palavras, seu lugar no sistema imperialista não é estritamente determinado por seu lugar na hierarquia capitalista – eles podem ser uma jovem estrela capitalista brilhante ou uma velha estrela decadente agarrada a um passado brilhante, enquanto ainda desempenha um papel decisivo no jogos do império.

Seria errado, como alguns argumentaram, tomar mecanicamente as “cinco características essenciais” de Lênin encontradas no Capítulo VII como um critério para admissão em algum tipo de clube imperialista. Não poderia estar mais claro que o Imperialismo como Etapa Especial do Capitalismo não é sobre o status de países individuais no sistema imperialista, mas sobre o imperialismo como um todo.

A concentração de capital, a fusão do capital financeiro com o capital industrial, a exportação de capital, os monopólios internacionais e a divisão territorial do mundo (esferas de interesse) são características do estágio imperialista do capitalismo, e não necessariamente de qualquer país individual no projeto imperial. Os países — pequenos ou grandes, desenvolvidos ou atrasados, abastados ou empobrecidos — desempenham diferentes papéis em diferentes momentos da marcha do imperialismo.

Quer seja a Rússia czarista (uma mistura de relações capitalistas emergentes em áreas urbanas e relações feudais apenas fracamente encerradas em áreas rurais) ou a Rússia de Vladimir Putin (uma economia capitalista industrial atrofiada, mas com enormes recursos essenciais), a capacidade de participar de atividades de grandes potências, ampliar ou proteger esferas de interesse, enfrentar outras grandes potências é uma realidade inquestionável. Esconder esta realidade – esta participação ativa no conflito com outros países capitalistas – por trás da fachada de que a Rússia não cumpre as “cinco características essenciais” que caracterizam a era imperialista é puro sofisma.

Lênin é claro. Além das “grandes potências” há uma série de países cuja “participação” no sistema imperialista é complexa. A dialética do desenvolvimento desigual não produz tipos ideais. Lênin fala de atores menores no sistema imperialista que têm diversas relações com o imperialismo. Alguns têm suas próprias colônias, mas “(…) conserva(m) as suas colônias unicamente graças ao fato de existirem interesses opostos, fricções, etc., entre as grandes potências(…)”. Eles correm o risco de perder suas colônias para uma nova “distribuição” colonial para as grandes potências.

Ele também reconhece “semicolônias” como a Pérsia, a China e a Turquia que eram, em seu tempo, nominalmente independentes, mas profundamente exploradas pelas grandes potências. Ele se refere a eles como “exemplo das formas de transição que encontramos em todas as esferas da natureza e da sociedade”; eles estão em “um estágio intermediário”. Hoje, todos os três fizeram a transição para atores maiores no firmamento capitalista.

Em sua discussão sobre Argentina e Portugal, Lênin antecipa o conceito marxista de neocolonialismo de meados do século XX, discutindo como os países independentes podem ser vinculados ao nexo imperialista como dependentes financeiramente ou como um protetorado.

Assim, Lênin mostra, com grandes nuances, que o imperialismo é um sistema global dinâmico, em constante movimento, e que os países participam do sistema de várias maneiras. Os imperativos do capital monopolista obrigam todos os países capitalistas a buscar vantagem na competição por recursos, mercados e mão de obra. Nesta luta, há aqueles que se tornam os maiores poderes e dominam os outros através do exercício do seu poder. Os poderes menores perdem para os mais poderosos, mas podem aspirar a desafiar, no entanto, ou exercer seu poder sobre os menos poderosos. O sistema tende a envolver todas as economias em relações de dominação e dependência. A competição gera agressão e guerra.

Lênin observa ironicamente a tendência reformista pequeno-burguesa de separar o imperialismo do capitalismo, de negar “(…) os vínculos indissolúveis existentes entre o imperialismo e os trustes, e por conseguinte entre o imperialismo e os fundamentos do capitalismo (…)”. Sem reconhecer o capitalismo como fonte do imperialismo e da guerra, o anti-imperialismo permanece “um ‘desejo piedoso’”.

Pode ser útil resumir essa discussão mostrando como uma leitura mais atenta do imperialismo pode lançar luz sobre o imperialismo do século XXI. O imperialismo do século XXI compartilha mais características com o imperialismo da época de Lênin do que diferenças.

O imperialismo constitui um sistema de competição global por recursos, mercados e força de trabalho que coloca os países capitalistas uns contra os outros para estabelecer esferas de interesse e um melhor campo de operação para seus monopólios.

A luta instigada pelos EUA pelo domínio da Ucrânia envolve monopólios no setor de energia e na indústria de armas, bem como uma tentativa de assegurar e expandir as esferas de interesse existentes. Enquanto os EUA são a grande potência mais poderosa e o instigador, a Rússia é uma aspirante a grande potência atraída para invadir um país “transitório” – a Ucrânia. Com sucessivos governos corruptos, a Ucrânia tem, desde a sua independência, ambicionado ser protetorado de uma grande potência, de quem fizer o melhor negócio. Em jogo estão os interesses das várias classes dominantes.

A discussão popular entre a esquerda ocidental sobre se a Rússia é um país imperialista ou um país anti-imperialista que se opõe ao imperialismo dos EUA e da União Europeia é um debate estéril e escolástico. De uma perspectiva leninista, a Rússia de hoje, como a Rússia czarista, é um país capitalista nascente que disputa uma posição como força líder na disputa por mercados e esferas de interesse.

O envolvimento da Rússia em desafio ao imperialismo dos EUA – na Síria, Cuba, Venezuela, etc – é apenas isso: desafio a um rival. É notável que rivais poderosos estejam ameaçando agressivamente as ambições da Rússia, mas pouco afetando os interesses da classe trabalhadora russa, ucraniana, americana ou europeia.

De fato, o “progresso” da guerra na Ucrânia – como predizia uma perspectiva leninista – afetou dramaticamente e negativamente o destino dos trabalhadores em todo o mundo. Milhões de vidas foram interrompidas, prejudicadas ou encerradas.

O fim da União Soviética libertou a mão do imperialismo, produzindo um mundo substancialmente congruente com o imperialismo do início do século XX. Alguns dos atores mudaram ou assumiram papéis diferentes, mas a lógica do imperialismo de grande potência está intacta. Aqueles de nós que defendem o papel histórico da União Soviética devem dissipar qualquer apego romântico remanescente à Rússia de hoje. Participa do sistema global do imperialismo como uma grande potência.

Como adverte Lênin, a tentativa de separar o imperialismo de suas raízes capitalistas destina o anti-imperialismo à ineficácia – “reformismo pequeno-burguês”. O anti-imperialismo moralista, que Lênin chama de “o último dos moicanos da democracia burguesa”, desmorona no pacifismo – uma postura boa para a alma, mas impotente contra os esquemas das grandes potências.

A celebração da esquerda de hoje de um mundo capitalista “multipolar” projetado é mais uma tentativa de separar as rivalidades das grandes potências de suas raízes nos interesses capitalistas – especificamente, monopolistas. A multipolaridade era uma característica do imperialismo no prelúdio da Primeira Guerra Mundial.

De fato, a tentativa de impor a multipolaridade a um mundo sobrecarregado com a dominação do império britânico foi um fator crítico que levou à Primeira Guerra Mundial.

A retirada do leninismo é essencialmente uma retirada do socialismo. Fé desesperada e infundada (a) na eficácia da multipolaridade, (b) na esperança de encontrar um ponto de encontro anti-imperialista de princípios em torno de um ex-estado socialista eviscerado e devastado agora propriedade de mega-bilionários, (c) na transformação milagrosa dos existentes partidos burgueses ocidentais dirigidos pelo dinheiro e liderados pela elite, e (d) na crença de que a esquerda fragmentada, autoabsorvida, multi-interesse, multi-identidade pode magicamente se fundir em uma força para mudanças radicais são todos produtos de uma perda de confiança no projeto socialista.

As lições de história e os professores mais brilhantes da história são os melhores guias para o futuro que queremos. Plus ça change, plus c’est la même chose. [3]


Notas:

[1] Zoltan Zigedy é o pseudônimo de Greg Godels, escritor e analista político e cultural. Já contribuiu com a publicação comunista dos EUA “The Daily/Weekly World” e atualmente escreve na “Marxism-Leninism Today” (https://mltoday.com/). O presente artigo foi publicado na “Morning Star” (https://www.morningstaronline.co.uk/), jornal ligado historicamente ao Partido Comunista da Grã-Bretanha. O original pode ser lido em https://morningstaronline.co.uk/article/f/russia-imperialist-country-thats-not-right-question-ask.

[2] Traduções dos trechos do “Imperialismo” feitas a partir da edição LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo. Campinas, SP: FE/UNICAMP, 2011.

[3] “Quanto mais as coisas mudam, mas elas são a mesma coisa”, em francês.

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