Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya
Na tarde do último domingo, 8 de janeiro, bolsonaristas motivados por um delírio protofascista promoveram um ataque ao STF. Vidraças foram quebradas, cadeiras foram arremessadas, imagens de presidentes anteriores foram ao chão, em resumo, a disposição espacial do STF sofreu uma devastação. A “Esquerda” reformista se prontificou a classificar tais atos como “terroristas”, o que foi prontamente abraçado pela mídia e disseminado euforicamente.
Há um equívoco na atribuição de “terrorista” a tais atos. Embora haja de fato um desejo golpista da parte dos bolsonaristas, é preciso assinalar a presença fantasmática duma ameaça engenhosamente produzida por uma economia política do medo neoliberal: as revoltas populares.
Para quem sofre de amnésia, este ano se completam 10 anos das manifestações populares de 2013. Manifestações estas que seguiram os levantes em curso noutras partes do mundo desde 2008. Na época desses acontecimentos, houve uma forte repressão policial, manifestantes sofreram lesões gravíssimas (muitos ossos quebrados e olhos incapacitados) e foram banhados em sangue, organizações revolucionárias foram associadas com formação de quadrilha e 23 militantes foram marcadamente condenados. Foi também neste período que Dilma Rousseff, então presidenta, propôs a Lei Antiterrorismo, uma medida contrarrevolucionária estatal que visava conter o avanço dos levantes populares. E é aqui onde se apoia a nossa cautela em atribuir a qualidade de “terrorista” aos atos realizados no último domingo.
Há nitidamente uma tentativa de golpe em curso, mas denominá-la “terrorista” e exigir que medidas sejam tomadas contra tais “atos terroristas” é um tiro no próprio pé quando o que mais se necessita é correr. Tais medidas significariam o retorno da Lei Antiterrorista, que como bem sabemos nós, da Esquerda revolucionária, terminaria se voltando contra organizações de Esquerda e manifestações populares que se realizem ao longo dos próximos meses e anos. Aproveita-se a estupidez bolsonarista para sugerir a implementação de medidas preventivas contra possíveis levantes populares. Não apenas o bolsonarismo, mas também o lulismo, são duas formas históricas de negação da capacidade política autônoma da classe trabalhadora, como bem pontua a UNIPA. A democracia que se pretende defender dum suposto “terrorismo” é a democracia burguesa. É ingênuo confiar nas instituições que compõem a democracia burguesa. Reivindicar a força dos aparelhos repressivos estatais é profundamente ingênuo, principalmente quando consideramos as gravações existentes dos atos do último domingo, onde a cumplicidade policial se deixa transparecer. Após o saque ao supermercado Intercontinental de Inhaúma, Zona Norte do RJ, em abril do ano passado, militantes petistas se prestaram a alegar que o saque foi incentivado por bolsonaristas como forma de evitar a eleição do Lula. “A quem interessa o saque ao Intercontinental?”, perguntou um deles em texto veiculado na internet. Em nenhum se levou em conta o fato de muitas pessoas não terem condições de sequer comprar uma margarina. É preciso voltar a atenção aos problemas concretos que afetam as condições de existência do proletariado.
Contudo, se é verdadeira a existência dum terrorismo, este é, sem sombra de dúvida, o terrorismo promovido pelo Estado. O catador de recicláveis Dierson Gomes da Silva foi executado pela PM no dia 5 deste mês na Cidade de Deus (RJ), após ter a madeira em sua mão “confundida” com um fuzil. Em 2010, Hélio Barreira Ribeiro teve uma furadeira em sua mão “confundida” com uma arma. Em 2014, Cláudia Silva Ferreira teve uma caneca em sua mão “confundida” com uma arma. Em 2015, os mototaxistas Thiago Guimarães Dingo e Jorge Lucas Martins Paes foram assassinados após um macaco hidráulico na garupa da moto ser “confundido” com uma arma. Em 2018, o jovem Luis Guilherme dos Santos foi executado após a sua mochila cair e o movimento que realizou com as mãos teria sido traduzido como “próprio de alguém que vai sacar uma arma”. No mesmo, um guarda-chuva foi “confundido” com um fuzil nas mãos de Rodrigo Alexandre da Silva. Em 2019, novamente uma furadeira é “confundida” com uma arma, mas agora nas mãos do DJ João Victor Dias Braga. Todos esses casos compartilham da localidade: foram todos realizados em favelas do Rio de Janeiro. Qualquer jogador de Counter-Strike jamais confundiria uma caneca ou um guarda-chuva com uma arma. Não é possível que alguém que tenha treinamento e opere com armas não consiga distinguir objetos. “Falta de preparo”, como alegam os defensores do aparelho repressivo estatal? Não parece ser o caso quando mudamos os sujeitos raciais e as classes sociais envolvidas: no ano passado, Roberto Jefferson (PTB) disparou com um fuzil contra a PF e Carla Zambelli (PL) empunhou e apontou uma arma publicamente contra uma pessoa inocente. Seguindo a lógica da “confusão” policial, as armas em suas mãos foram muito provavelmente “confundidas” com objetos corriqueiros.
Enquanto seguimos enquadrando determinados atos como “terroristas”, o terrorismo de Estado segue ileso. A obra de arte do Di Cavalcanti que foi depredada no último domingo é perfeitamente reparável, ao passo que as vidas abatidas pelo Estado cotidianamente não são. Não se trata de defender a destruição de obras de arte, como com certeza apontarão alguns apressados em emitir opinião em prol de likes nas redes sociais, mas de percebermos como prontamente nos mobilizamos em defesa da democracia burguesa e não damos a mínima para o que acontece diariamente em favelas. Há quem reivindique inclusive intervenção psiquiátrica forçada dos bolsonaristas, ignorando por completo a luta do movimento antimanicomial, da mesma forma que reivindicam o enquadramento dos atos do último domingo como terroristas, ignorando como isto pode se voltar contra nós. Temos sofrido uma profunda amnésia nos movimentos sociais. Uma amnésia referente à memória popular, às nossas lutas. O bolsonarismo, enquanto expressão da Extrema Direita, avançou graças à cumplicidade das instituições que compõem a democracia burguesa, as quais garantem uma vida longa e próspera aos torturadores da ditadura, mas reduz a expectativa de vida e precariza as condições de vida de pessoas negras, trans, proletárias, faveladas e indígenas. Uma das características da democracia burguesa é o autoritarismo, explicitamente presente nos seus aparelhos repressivos, na maneira como contém revoltas populares. O silêncio da parte de militantes e ativistas em relação ao terrorismo de Estado e a declarada defesa da democracia burguesa são sintomáticos de algo em curso. Algo que com certeza não gostaríamos de presenciar.
Contrariamente à defesa da democracia burguesa e da conciliação de classes, deveríamos reassumir e organizar as bases, fomentar e construir novas ferramentas de luta do proletariado e dos povos. Não queiramos que a história se repita.