A mãe preta e seu bebê

Por Pierre Monteiro Lessa

“O bebê negro, está claro, não é menos desejado que o bebê branco, para sua mãe que, inconscientemente, deseja o filho. Mas a criança do projeto e do desejo da mãe certamente não está representada no pequeno corpo negro, que o olhar materno, inconscientemente, tende a negar. A mãe negra deseja o bebê branco, como deseja, para si, a brancura”.  (Isildinha Batista Nogueira, 1998, p.92.

Essa me parece uma leitura apressada do processo de constituição do sujeito em Lacan, que aplicada ao individuo negro, traz muitos equívocos. Ao nascer o corpo do bebe é cortado, marcado, inscrito por significantes (seio, a voz, o toque, o olhar) que a priori nada significam. Estes significantes chegam ao bebê em sua relação com a mãe, ou qualquer um que faça a função materna. Só a posteriori os significantes e as palavras que marcaram  e constituíram o corpo do bebê serão significados à medida que este ingressa na linguagem, ou seja, na cultura.


Ainda que uma mãe em alguma camada de sua subjetividade, “deseje” imaginariamente o bebê branco e a brancura, há um ato primeiro em sua relação com o nascido, que não passa pelo sentido racista que a cultura atribui ao ser negro. Aquele corpo negro, seu seio, amparo, cuidado, voz e olhar da mãe preta, antes que o nascido possa fazer qualquer atribuição de sentido que é sempre a posteriori, já está marcado pelos significantes condensados no corpo da mulher negra ou de quem ocupe essa função.

 Em uma entrevista a psicóloga Maria Lucia Silva faz o seguinte comentário: “eu sempre me soube preta, mas me saber preta não me impediu de desejar ser branca”. Ela continua e faz o seguinte acréscimo, “na verdade eu desejava ser aceita, valorizada e acolhida”. Na entrevista que Silva faz este comentário, fica evidente que se saber preta desde sempre, não se refere a um inatismo biológico. Trata-se de ter nascido em uma família conciliada com a tradição negra e no interior desta, ter sido amada, desejada, valorizada e acolhida. O desejar ser branca vem em momento posterior a sua constituição, ou seja, no encontro com o “mundo branco” exterior a família.

 Aqui há um ponto que o debate sobre a questão de gênero no interior da psicanálise pode contribuir muito no debate racial.

É verdade que desde Freud havia uma leitura menos problematizada do complexo de Édipo. Ou seja, o menino deseja a mãe, se identifica com o pai e constitui assim sua forma de estar no mundo.

Lacan retoma o complexo de Édipo em elaborações mais  finas de Freud e  mostra um fator decisivo neste processo. Ou seja, que não se trata no complexo de Édipo da mãe e do pai imaginarizado na cultura burguesa onde o elemento mais valorizado é o portador do pênis. O que importa para Lacan é a função “paterna” como terceiro elemento que faz furo na relação dual complementar entre a mãe e o bebê.

Neste sentido, pouco importa se o que faz furo, ou seja, o que interrompe a “fusão” mãe-bebê é um pai hetero, um pai trans ou uma outra mulher que se relaciona com a mãe, ou ainda o trabalho, um livro, um telefonema. A função “paterna”, ou o nome do pai como escreveu Lacan, é um significante vazio, o falo que não se reduz e/ou confunde com o pênis. Diferente do pênis que imaginariamente complementaria a falta numa relação, o falo, como significante ou função serve de empuxo que faz com que a mãe deseje outra coisa e não apenas o bebê. No processo de constituição do sujeito, nos ensina Lacan, com a entrada em cena deste terceiro elemento, ou seja, o falo (a linguagem, a lei) o bebê  se identifica, não exatamente com a mãe concreta, mas com o a função desejante da mãe que quer algo que não o bebê. Em outras palavras o bebê deseja o desejo da mãe que deseja outra coisa (uma outra mulher, um homem, um trabalho, outra criança…).

Mesmo se concordássemos com Isildinha ao firmar que a mãe deseja um bebê branco, não se poderia colocar ai, na constituição do sujeito um suposto corte originário do racismo. Mesmo admitindo que a mãe, desejasse outro bebê que não o seu, ainda assim, dentro da teoria da constituição do sujeito em Lacan, poderíamos afirmar que o bebe negro estaria se constituindo “normalmente”. Há que se lembrar de que o nascido ainda não está capturado pelo sentido imaginário que atribui valor superior ao branco. O Que marca decisivamente o bebê, no que a mãe deseja outra coisa que não ele, é que este “aprende” a desejar ao se identificar com o desejo de desejo da mãe.

Se no campo dos estudos de gênero faz-se confusão entre o pênis imaginário e o falo simbólico na confusão valorativa que a cultura hetero normativa faz entre o portador do pênis e a função simbólica do falo, vital para vida humana. No interior dos estudos da racialidade, costuma-se repetir essa confusão  colando a brancura (pênis imaginário) no lugar da valorização, reconhecimento e aceitação que nos fala Silva. Ou seja, estes atributos simbólicos de valor devem ser lidos como função do falo, como um significante vazio que pode ser ocupado por qualquer pessoa.

A minha hipótese é de que  os efeitos do racismo não começam a incidir na criança no momento de sua constituição. Do ponto de vista estrutural pela força do corpo da mãe preta, como significante a marcar o corpo do bebê negro, esse processo se dá “normalmente”. É só posteriormente, quando seu aparelho psíquico esta constituído, ao ingressar na cultura, pela via dos sentidos valorativos estabelecidos, que pouco a pouco a criança negra vai percebendo não uma ausência de valor do ser negro, mas um conflito entre a potência imanente de seu corpo e o que é socialmente valorizado.

Essa é uma hipótese a se aprofundar. Um dos argumentos, ainda que obvio, passa pelo seguinte. Se o encontro com o branco e a sociedade racista tivesse o condão de destruir a subjetividade e o valor libidinal do corpo negro, como explicaríamos que após 500 anos de violência física e simbólica, ainda preservamos traços ancestrais de valorização, potência e espontaneidade do corpo negro, seja individual ou coletivo? Penso que há elementos exteriores ao intrapsicológico  que explicam parte dessa herança. Neste sentido, as tradições africanas, mantidas e reelaboradas na tradição dos terreiros é uma pista importante.

Mas há elementos que transcendem essa experiência. Por exemplo, a uma marca cultural distinta entre comunidades evangélicas negras dos norte-americanos. Na musicalidade, na arte… Também no Brasil, sobretudo até os anos 1970, antes do fenômeno das igrejas neopentecostais como a IURD, entre os pentecostais brasileiros, seus cânticos e espiritualidade eram profundamente marcadas por traços da cultura negra.

Em síntese eu diria, o que o negro deseja não é a brancura que assim como o pênis imaginário é associado a seu portador (europeu, branco, hetero, cristão e capitalista). O que o negro deseja é o falo simbólico, é a valorização, o reconhecimento e poder. Não se trata de buscar equivalência epidérmica com o branco, mas ocupar uma função social e, portanto um lugar de reconhecimento, valorização e poder.

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