Aki Kaurismaki e a desolação humana em “A Trilogia do Proletariado”

Por Erlândia Ribeiro[1]

Este ensaio tem como objetivo verificar como a desolação humana é apresentada pelo cineasta finlandês Aki Kaurismaki em sua trilogia do proletariado. A partir da análise dos filmes “Sombras no paraíso” (1986), “Ariel” (1988) e “A garota da fábrica de fósforos” (1990) examinaremos como Kaurismaki traz em suas narrativas fílmicas retratos atuais de uma sociedade em decadência, com o sistema capitalista vigente.


Desolação humana sob a égide do capitalismo

Iniciamos nossa discussão apontando o questionamento do escritor Mark Fisher – baseado na máxima de Fredric Jameson e Slavoj Zizek – em sua obra Realismo capitalista (2020): “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?”. Nesse espírito de reflexão é que evocamos a obra de Kaurismaki para ser discutida, a partir do momento em que percebemos através das obras fílmicas do diretor, principalmente de sua trilogia do proletariado, que o sistema capitalista além de ser sombrio é também extremamente desolador frente as subjetividades humanas.

Utilizamos aqui a compreensão da palavra “desolação” conforme o que Hannah Arendt explicita em sua obra Origens do totalitarismo (1991, p. 225): “o que chamamos de isolamento na esfera política denomina-se desolação na esfera das relações humanas”. Arendt analisa que o que torna a desolação intolerável é a perda do eu, que só pode ser confirmado “em sua identidade pela presença confiável e digna de fé de meus iguais” (p. 226). Sendo assim, dentro da lógica capitalista em que vida e trabalho são inseparáveis, se torna difícil estabelecer uma delimitação clara e segura do sujeito nas condições de seu ofício. Fisher aponta:

O capital te acompanha até nos sonhos. O tempo para de ser linear, torna-se caótico, fragmentado em divisões puntiformes. Na medida em que a produção e a distribuição são reestruturadas, também é reestruturado o sistema nervoso. Para funcionar com eficiência como um componente do modo de produção just-in-time [por demanda], é necessário desenvolver uma capacidade de responder a eventos imprevisíveis, é preciso aprender a viver em condições de total instabilidade, de precariedade, para usar um neologismo horroroso. Períodos de trabalho alternam-se com dias de desemprego. De repente, você se vê preso em uma série de empregos de curto prazo, impossibilitado de planejar o futuro (FISHER, 2020, p. 63).

Essa reflexão de Fisher traz à tona a angústia infiltrada no processo do capital, tal cenário caótico impossibilita que as relações humanas sejam vividas em harmonia. Nos filmes de Kaurismaki, esse contexto se alonga a partir do momento em que as personagens aparecem endurecidas, pelo processo do trabalho ou da falta dele, gerando desconsolo e enrijecimento. Ainda sobre esse tema, Slavoj Zizek afirma:

Um dos exemplos mais marcantes dessa dança insana é, na esfera econômica, a estranha coexistência do pleno emprego com a ameaça do desemprego: quanto mais intensamente trabalham os que estão empregados, mais generalizada é a ameaça de desemprego. Assim, a situação atual nos compele a mudar a ênfase de nossa leitura de O capital, de Marx, do tema geral da reprodução capitalista para, como diz Fredric Jameson, “a centralidade estrutural fundamental do desemprego no texto do próprio O capital”: o desemprego é estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo em si. Naquele que é possivelmente o ponto extremo da “unidade dos opostos” na esfera econômica, é o próprio sucesso do capitalismo (aumento da produtividade etc.) que produz desemprego (tornando inúteis mais e mais trabalhadores): o que devia ser uma bênção (menor necessidade de trabalho duro) torna-se uma maldição. Dessa maneira, o mercado mundial é, com respeito a sua dinâmica imanente, “um espaço em que todos já foram trabalhadores produtivos e em que o trabalho começou por toda parte a ser precificado fora do sistema”. Isso significa que, no contínuo processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados adquiriu uma nova qualidade além da clássica noção de “exército de reserva de mão de obra” (ZIZEK, 2015, p. 18).

Aqui percebemos que a dinâmica do capitalismo vai além do emprego que sufoca o trabalhador em suas jornadas exploratórias e desumanas, temos também a instabilidade do outro lado, de não ter um emprego, o que revela uma exclusão determinante entre os sujeitos. Além da própria força desse sistema em chegar ao inconsciente coletivo, apontando o capitalismo como único modelo possível. Nesse momento, passamos a refletir como a trilogia do proletariado do cineasta Aki Kaurismaki aponta críticas contundentes a essa realidade social.

Análise e reflexão: pessimismo e frieza na obra fílmica de Kaurismaki

– Afinal o que quer de mim?

– Quem, eu?

– Sim, tu.

– Mais vinho?

– Responda-me!

– Não sei nada sobre ninguém! Eu sou o Nikander. Ex-açougueiro, agora um condutor de caminhões de lixo! Tenho um estômago fraco e os dentes também! (Sombras no paraíso, 1986).

– Sou divorciada.

– Não deixes que isso te aflija.

– Tenho um filho, também.

– Melhor ainda. Poupamos tempo, em constituir uma família. (Ariel, 1988).

Quando a pessoa dá tudo e só recebe decepções,

o baú das lembranças é cada vez mais difícil de carregar.

Agora já não brilha a flor do meu amor… (A garota da fábrica de fósforos, 1990).

 Kaurismaki utiliza do pessimismo e da frieza, em sua trilogia do proletariado, enquanto marcas substanciais para compreender como a égide do capitalismo impossibilita relações humanas equilibradas. Ao longo dos filmes somos levados a conhecer a realidade de personagens “comuns” que estão submetidos a uma vida de forte opressão. A frieza acoplada aos protagonistas provoca um duplo movimento em nós espectadores: de estranheza e de ternura ao mesmo tempo. Se por um lado buscamos assistir como se relacionam e como solucionam os problemas apresentados em tela, por outro verificamos que a dureza encarada por eles no cotidiano se mostra um fardo pesado demais, o que acaba por gerar uma reação de rigidez em cada situação vivida.

Em “Sombras no paraíso” (1986), Kaurismaki nos apresenta a dois personagens principais, Llona que é caixa de supermercado e Nikander, motorista do caminhão de lixo. Apesar de suas funções, os dois tentam – nas poucas horas de descanso – se divertir e encontrar refúgio indo em bares e escutando música. Mas é perceptível o quanto o trabalho age como uma sombra que encobre até os momentos de prazer, transformando a vivência dessas personagens em frieza absoluta. É bastante claro ao longo do filme como os papéis desempenhados no campo profissional desmerecem quem eles são fora dessa realidade, como se não pudessem frequentar “bons” lugares, ouvir “boa” música, se divertir, etc. Os preconceitos narrados ao longo do filme permitem analisarmos que a vida dos dois protagonistas somente importa através do trabalho, e que essa perspectiva apenas é modificada quando os dois estão juntos, buscando outras possibilidades para suas existências, caminhando em direção ao lado sensível do humano que ainda resta neles.

Em “Ariel” (1988), somos conduzidos para a história de Taisto, que nos minutos iniciais do filme perde seu pai – suicídio –. O protagonista decide sair da pequena cidade em que vivia até então e ir para a capital ganhar a vida, nesse processo passa por momentos complexos, em que a brutalidade e o individualismo surgem como os novos pilares de sua jornada. O desemprego e a realidade prisional são dois argumentos bastante trabalhados no filme, como possível solução para os temas abordados, Kaurismaki aponta o romance em tela como forma de redenção e esperança, através da fuga de Taisto com uma mulher e seu filhinho. Os três juntos embarcam em uma nova jornada em busca de outros caminhos, longe da cidade grande, evidenciando que os processos de infelicidade das personagens, são motivados também por esse progresso não pensado das cidades/capitais, que não conseguem garantir oportunidades para todos.

Por fim, o último filme da trilogia “A garota da fábrica de fósforos” (1990), traz Iris como personagem principal. A protagonista trabalha em uma fábrica de fósforos e mora com sua mãe e seu padrasto, vive uma relação bastante caótica e tão exploradora quanto a de seu emprego. Iris busca fora de casa encontrar abrigo, mas termina por esbarrar em outras situações difíceis. O cenário do trabalho de Iris é igualmente desolador, em uma fábrica majoritariamente com colegas mulheres é perceptível que as histórias que permeiam a protagonista são tão duras quanto a dela mesma. Esse cenário é modificado após um “golpe” que a personagem leva, seu plano de vingança é um dos mais originais e “baratos” possíveis – veneno de rato –, demonstrando mais uma vez, a preocupação do diretor em manter um roteiro estrategicamente pensado enquanto crítica social.

Com tudo isso, podemos pensar a obra fílmica de Kaurismaki como uma forte crítica ao sistema capitalista vigente, que apaga o humano em detrimento do lucro. As personagens sinalizam o desencanto do mundo e ao mesmo tempo tentam mudar seus destinos, os planos de fuga ou planos de vingança, metaforizados ou não, promovem o sentimento de esperança, trazendo em perspectiva que mesmo os “perdedores/proletariados” podem subverter as normas vigentes e ultrapassar o muro irredutível de uma vida em decadência. De alguma forma tais personagens conseguem “fissurar” o capitalismo, ao travarem uma luta pessoal, porém política, destoando do que era o esperado para o seu meio e estabelecendo outras possibilidades reais de vida.


Referências:

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Cia das Letras, São Paulo, 1991.

FISHER, Mark. Realismo capitalista. Tradução Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato, Maikel da Silveira. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

ZIZEK, Slavoj. Problema no paraíso. Do fim da história ao fim do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.


 Notas

[1] Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Letras – UFES, e-mail: erlandiaribeiro95@gmail.com

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