Por Gabriel Miranda, autor de Em defesa da dialética
Já era artista o índio muito antes de Tarzan…
(Samba do sociólogo louco – Novos Baianos)
O Brasil foi concebido antes mesmo de ser. Como filho parido da modernidade colonial, já nasceu com funções concretas e simbólicas delineadas de maneira exógena. No primeiro plano, desempenhava o papel de subsidiar o desenvolvimento do capitalismo na Europa, sobretudo por meio do trabalho escravo e da exportação de commodities. Já no que diz respeito ao seu estatuto simbólico, a terra Brasilis constituía o Novo Mundo, a terra prometida, o paraíso do colonizador onde ele próprio era Deus.
Desse modo, formado não por e tampouco para si, o Brasil se erige como um país assentado na violência de uma formação social fundada pelo e para o Outro: europeu, branco, colonizador, cristão, homem e proprietário. Nesse sentido, não é forçoso admitir que a história do país se confunde com a violência. Mas não se trata de uma violência qualquer. Como em outros contextos coloniais, trata-se de uma violência multiforme, expressa tanto nos corpos quanto nas subjetividades dos sujeitos. E, além disso, trata-se de uma violência que é distribuída de maneira desigual, na qual os colonizados são submetidos de forma sistemática ao poder das armas, da bíblia e dos vírus dos invasores.
Ainda assim, como é comum na historiografia, a narrativa que prevalece é aquela construída pelos “vencedores”, ou seja, pela classe social detentora de poder político e econômico. Conforme pontuaram Marx e Engels, “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (Marx & Engels, 2007, p. 47). Deriva desse aspecto o fato de que foi construída, em várias linguagens – seja nas Artes Visuais, na Literatura ou Ciências Sociais –, a noção de um Brasil pacífico e isento de conflitos, no qual a violência colonial foi apagada quase que por completo, sendo, inclusive, ressignificada com ares românticos em alguns contextos, seja pelo mito da miscigenação ou por outras maneiras de romantização das relações entre colonizador e colonizado. Desse modo, o que circula e conforma o imaginário social da nação é, por vezes, uma narrativa fictícia sobre o nosso país. Trata-se de um Brasil inventado.
Ora, acreditar que a história se constitui apenas como um regime discursivo não parece uma perspectiva adequada para pensar e atuar sobre o real, conforme discutido no capítulo “Em defesa da ontologia, em defesa da dialética”. Contudo, do mesmo modo, é ingênuo partir do pressuposto de que as “histórias oficiais” estão apartadas das relações de poder presentes nos contextos em que foram escritas e reproduzidas como saberes hegemônicos. Nesse sentido, a proposta deste breve ensaio-manifesto consiste em desmentir o mito, propalado há muito tempo pelas elites nacionais que tanto se beneficiaram do colonialismo passado e presente, de que o Brasil é e sempre foi um país harmônico e isento de conflitos. É tarefa urgente implodir as narrativas habituais, que são embebidas pelo olhar das elites, e analisar o país pela lente dos oprimidos, da classe trabalhadora.
Se, por um lado, São Paulo se projetou e se vendeu como vanguarda da modernidade e, conforme pontuou Dural Muniz de Albuquerque Júnior (2021), as narrativas hegemônicas a respeito do Nordeste não passam de invenções, muito daquilo que é sabido e difundido a respeito do Brasil é, também, uma invenção. Tal processo de ficcionalização coincide com os contatos iniciais dos colonizadores com o território brasileiro, tendo em vista que os primeiros relatos sobre a população autóctone eram descrições de europeus. Por isso, nessas descrições, o etnocentrismo é um traço marcante, expresso tanto nas narrativas dos viajantes (Gandavo, 2008) como nas primeiras ilustrações realizadas pelos artistas europeus, que mesclavam em seu processo criativo os referidos relatos e uma boa dose de imaginação, tal como registra a gravura de Joachim Du Viert e Pierre-Jean Mariette exposta ao final deste ensaio.
A tela “Primeira missa no Brasil”, pintada por Victor Meirelles entre 1859 e 1861 a partir dos relatos de Pero Vaz de Caminha acerca da primeira celebração católica realizada no território que hoje corresponde ao Brasil, pode ser considerada, no campo das Artes Visuais, uma das grandes representantes de um mito fundador do Brasil assentado em uma ficcionalização da relação entre colonizador e colonizado. Na obra, portugueses e indígenas são retratados acompanhando uma liturgia católica de maneira harmoniosa, levando a crer que o processo de introdução do catolicismo ocorreu pacificamente.
Na literatura, também abundam exemplos representantes da construção de um Brasil alicerçado no mito do paraíso. Tal empreendimento pode ser observado no poema “Porque me ufano de meu país”, de Afonso Celso, nos sonetos parnasianos [1] de Olavo Bilac ou mesmo nos versos da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Se é correto que devemos reconhecer o contexto no qual se produziram tais versos – na Canção do Exílio, por exemplo, há uma empreitada do poeta para exaltar o seu país que acabara de declarar independência formal de Portugal –, é mister reconhecer que eles expressam uma “meia-verdade” a respeito do Brasil, contribuindo para escamotear os conflitos e contradições que o constituem.
Na sociologia brasileira, principalmente no cânone acadêmico, há alguns exemplos que igualmente reforçam essa narrativa do não-conflito, sendo as contribuições de Gilberto Freyre as que mais se destacam, dada a posição do autor como um dos “legítimos intérpretes do Brasil”. Ora, há que se reconhecer que, por um lado, a obra Casa Grande e Senzala, publicada originalmente em 1933 – ano em que Adolf Hitler chega ao poder na Alemanha –, possui um caráter progressista quando comparada ao conjunto das demais produções intelectuais do seu tempo histórico. Tal importância decorre principalmente do reconhecimento do papel das populações indígenas e africanas na construção da cultura nacional em um contexto marcado pela “demonização” desses grupos étnico-raciais.
Todavia, a obra de Gilberto Freyre constitui um dos mais exemplares expoentes de uma narrativa apaziguadora dos conflitos sociais e das relações de opressão que compuseram a formação histórica do Brasil, na qual as populações indígenas e negras foram submetidas a processos distintos de violência física e subjetiva, como escravização, genocídios, imposição de uma língua e religião europeias etc. Se na obra de Freyre (2013) tais circunstâncias são apaziguadas, é possível encontrar registros delas em diversos clássicos do pensamento social brasileiro, como Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Clóvis Moura e Heleieth Saffioti.
Ao buscar romper com o ideário que afirma ser a miscigenação um problema, Freyre (2013) reconhece a riqueza oriunda das culturas indígenas e africanas, mas omite o modo violento como o contato destas com os portugueses ocorreu, contribuindo, assim, para a construção discursiva de uma harmonia social que, no concreto das relações sociais brasileiras, nunca ocorreu. Ainda quando latente, o conflito sempre foi um elemento central da realidade social brasileira.
Portanto, embora haja um esforço para determinar um mito fundador do Brasil ancorado na ideia de miscigenação e harmonia social, a história do tempo passado e presente mostra um país em que a violência física e simbólica se encontra inscrita no corpo e na alma do povo brasileiro. E o que permite tal afirmação é o histórico permanente de dizimação de populações indígenas, a escravização da população negra, a fome, a atuação da polícia nas periferias urbanas, a população em situação de rua, as mortes que poderiam ser evitadas se a saúde não fosse uma mercadoria de alto valor, as habitações precárias das favelas, o silenciamento das manifestações culturais não-brancas, as prisões superlotadas, a superexploração da classe trabalhadora que é submetida a salários que não pagam sequer o necessário etc.
Em síntese, a pobreza é violenta. Afinal, resulta em privações que causam danos físicos e psicológicos. Para quem é pobre, a violência aparece antes mesmo da chegada ao mundo. Ainda no útero de suas mães, crianças enfrentam as violações às quais suas progenitoras sofrem: seja pela ausência de um acompanhamento médico adequado, pela falta de nutrientes ocasionada pela alimentação precária e, até mesmo, pela violência obstétrica. Diante desse cenário, nunca é demais insistir que a existência de pobreza e miséria não é um dado natural e inevitável. Pelo menos não em um estágio da humanidade em que o desenvolvimento técnico-científico permite suprir as necessidades básicas de todos os seres humanos. A despeito desse dado e de o Brasil ser, de acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC), o segundo maior exportador de alimentos do mundo, a sua população enfrenta, nos últimos anos, um cenário de retorno da fome e da insegurança alimentar. [2]
Superar a violência que nos constitui como nação e marca o nosso corpo demanda, como primeiro passo, retirar o véu que dá ares de naturalidade às manifestações dos conflitos que formatam o capitalismo dependente brasileiro. Para isso, uma tarefa essencial consiste em recontar a história do Brasil a partir do ponto -1, por outras lentes que não aquelas borradas pelo eurocentrismo. Dessa maneira, compreendendo o passado, é possível situar adequadamente os desafios a serem enfrentados no presente para a construção do futuro.
Com desenho de Joachim du Viert e impressão de Pierre-Jean Mariette, a gravura acima, datada do século XVII, representa o modo etnocêntrico com o qual o europeu se relacionava com os povos originários do Brasil.
Notas:
[1]
“Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/ Criança, jamais verás um país como este!/ Olha que céu, que mar, que floresta!/ A natureza, aqui perpetuamente em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos”.
[2] De acordo com o relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, 59% dos domicílios brasileiros entrevistados entre novembro e dezembro de 2020 se encontravam em situação de insegurança alimentar (Galindo et al., 2022).