Por Kemal Okuyan, Secretário Geral do Partido Comunista da Turquia, traduzido por Carlos Motta
Por hábito, costumamos usar a expressão “movimento comunista internacional”. No entanto, hoje não podemos falar de um fenômeno que mereça ser rotulado como movimento comunista internacional.
Existem comunistas em quase todos os países do mundo; partidos ou formações com o nome de comunistas são ativos em muitos países. Alguns deles são bastante influentes em seus países, alguns estão no poder. Podemos até dizer que os partidos comunistas são muito mais abrangentes hoje do que em 1919, quando a Internacional Comunista foi fundada, e nos poucos anos que se seguiram.
Mas ainda não podemos falar de um movimento.
Porque um movimento, apesar de todas as suas contradições internas, tem uma trajetória. É claro que os partidos comunistas hoje não têm a trajetória comum que esperaríamos de um movimento.
Então precisamos responder à pergunta: é possível que os comunistas de hoje se transformem em um movimento internacional?
O “Partido Comunista” pode ser definido por sua vontade e determinação para conduzir a humanidade a uma sociedade livre de classes e exploração. Mesmo conservando a originalidade e a riqueza dos seus elementos, uma soma que não se caracterize por essa vontade e essa determinação em todo o seu tecido não pode transformar-se num “movimento comunista internacional”.
Isso não deve ser interpretado como uma crítica ou polêmica, mas como uma avaliação objetiva da situação.
A luta pela democracia ou pela paz, e estar na vanguarda dessa luta, não pode substituir a missão histórica dos partidos comunistas. Da mesma forma, embora a luta contra o imperialismo norte-americano seja uma tarefa indispensável para os partidos comunistas, não é uma característica distintiva para eles.
Podemos nos beneficiar do testemunho da história para entender melhor o que queremos dizer.
Sabemos que entre 1933 e 1945, o movimento comunista internacional concentrou-se predominantemente na luta contra o fascismo, enquanto outras missões e objetivos foram relegados a segundo plano. Mas ainda usamos o termo “movimento comunista internacional” para aquele período. Ao explicar isso com a existência da URSS, o que não devemos esquecer é que, mesmo nesse período, a URSS manteve a perspectiva central de “uma luta por um mundo livre de classes e exploração”, e apesar de alguns erros, eles mantiveram seus esforços em nome de aproveitar as oportunidades que surgiam para dar um salto adiante no processo revolucionário mundial.
Se a Internacional Comunista pudesse ser reduzida exclusivamente à política da Frente Popular, poderíamos muito bem dizer que, no contexto histórico, o movimento comunista internacional estava em declínio a partir da década de 1930.
Deve ficar claro que ess abordagem não tem nada a ver com minimizar a luta contra o fascismo ou outras tarefas semelhantes. É apenas para nos lembrar que a definição do “movimento comunista internacional” requer uma trajetória comum alinhada com a missão histórica do comunismo.
Na verdade, o que precisamos focar é como chegar a um momento em que essa missão histórica volte a se destacar, tornando-se um centro de gravidade que influencia e molda cada um dos partidos comunistas com caminhos e agendas diferentes.
É óbvio que para o comunismo atingir tamanho grau de influência e gravidade no cenário internacional, certamente há a questão das condições objetivas. No entanto, seria um grave erro atribuir o salto do movimento comunista a alguma conjuntura favorável que se apresentará em algum momento desconhecido, especialmente em nossos tempos em que o capitalismo enfrenta um impasse econômico, político e ideológico intransponível em todos os países. Nas condições em que o domínio do capital está cambaleando de crise em crise e é incapaz de oferecer esperanças à humanidade, nem mesmo as falsas esperanças, deveria ser evidente que os comunistas precisam priorizar a análise do fator subjetivo, em vez de reclamar das condições objetivas.
Precisamos fazer debates ousados.
O processo revolucionário mundial passou a ter as referências teóricas e políticas necessárias para as difíceis lutas que se avizinhavam nas décadas seguintes à escrita do Manifesto do Partido Comunista, com uma formulação incomparável. Divergência e convergência sempre exigem referências. Na virada do século XX, o marxismo havia se tornado a principal referência do movimento operário, prevalecendo sobre seu rival, o anarquismo. No entanto, não demorou muito para que o movimento marxista se desintegrasse. Essa cisão foi de tal forma que, mesmo aqueles que defendiam que a “unidade” era boa em qualquer circunstância a consideravam inevitável e necessária. Os marxistas haviam seguido basicamente dois cursos diferentes, revolucionários e reformistas.
Com o tempo, ficou claro que não poderia haver interpretação reformista do marxismo. A social-democracia abandonou as fileiras revolucionárias, infligindo à classe trabalhadora a pior traição de sua história.
Isso significou também o início de um período em que os revolucionários do mundo, que agora preferiam o nome “comunista”, renovaram e fortaleceram suas referências. As 21 Condições para ingressar na Internacional Comunista, fundada em 1919, podem ser vistas como a expressão mais nítida dessas referências.
A partir de 1924, quando a onda revolucionária no mundo recuou, era inevitável uma certa erosão nesses referenciais teóricos e políticos. O fascismo alemão e, posteriormente, a Segunda Guerra Mundial aceleraram essa erosão.
De fato, o período entre 1924 e 1945, contrariando a filosofia fundadora do Comintern, confrontou cada um dos jovens partidos comunistas com suas próprias realidades e, além disso, impôs a cada um deles diferentes responsabilidades em relação aos interesses gerais do processo revolucionário mundial.
Apesar de tudo isso, a existência da Revolução de Outubro e seu resultado mais precioso, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem como a vontade de estabelecer o socialismo naqueles anos, fortalecida pela transição para uma economia planificada, industrialização e coletivização na agricultura, forneceram um fundamento histórico imensamente valioso para os partidos comunistas. Tal vontade não só evitou desvios, mas também serviu de base necessária para saltos adiante. A derrota do fascismo e o fortalecimento do socialismo após a Segunda Guerra Mundial reforçaram isso.
No entanto, o movimento comunista internacional enfrentava gravíssimos problemas internos que minavam a integridade que conseguia preservar graças ao prestígio da União Soviética.
As referências diminuíram e o “marxismo reformista”, que, em alguns aspectos, parecia ter sido abandonado, voltou a se manifestar.
O discurso de Khrushchev, então secretário-geral do PCUS, no encerramento do 20º Congresso em 1956, cortou os últimos fios que ancoravam o movimento comunista internacional nos portos seguros e, mais importante ainda, derrubou o otimismo que prevalecia desde 1917 .
O que é interessante é que o discurso de Khrushchev, cheio de distorções, não levou a um debate sólido e a uma divisão correspondente no movimento comunista internacional.
No entanto, esperava-se que o movimento comunista preservasse e atualizasse os princípios de 1919 e se vinculasse a referenciais teóricos e políticos mais consolidados. Em vez disso, o que emergiu é uma desordem em que um grande número de partidos sem pontos em comum mantinham sua relação individual à sua maneira com a União Soviética, que permaneceu como a conquista mais importante da revolução mundial.
O conflito entre a República Popular da China e a URSS, que acabou numa cisão violenta, também não deu lugar a uma cisão saudável. No período seguinte a essa cisão, o fosso entre os partidos que mantinham relações estreitas com o PCUS continuou a aumentar. Enquanto alguns dos partidos governantes nas Repúblicas Populares da Europa Oriental e Central tentavam superar suas deficiências durante o período entre 1944 e 1949 por hibridização ideológica, a correlação interna de forças dentro do movimento comunista internacional tornou-se ainda mais complicada. Mas o problema era muito maior. Por exemplo, a amizade com a União Soviética era quase o único ponto em comum entre o Partido Comunista de Cuba – que, na década de 1960, trouxe um novo dinamismo ao movimento comunista não apenas na pequena ilha onde chegou ao poder, mas também em toda a América Latina e o mundo –, e alguns outros partidos que voltaram suas faces para o eurocomunismo. No final, até a dissolução da União Soviética, nenhum debate ou divisão foi realizado que impulsionasse o movimento comunista internacional.
Depois de 1991, não existia nem o PCUS que mantinha muitos, senão todos, os partidos próximos a si, nem um eixo segundo o qual os partidos comunistas pudessem se ajustar.
Pelos esforços muito significativos de alguns partidos, notadamente o Partido Comunista da Grécia, tornou-se uma tarefa prioritária reunir o que restava em nome do comunismo. Os Partidos Comunistas e Operários se reuniram 22 vezes. Isso em si tem sido extremamente importante. Porém, esse período não serviu para que o movimento comunista reconstruísse suas próprias referências da forma que precisava.
E, eventualmente, a visão de que os partidos comunistas não precisam de referências teóricas e políticas começou a se consolidar.
Hoje, não temos um mecanismo funcional para examinar as diferenças fundamentais que podem ser observadas quando olhamos não apenas os partidos membros da Solidnet que participam dos Encontros Internacionais de Partidos Comunistas e Operários, mas todos os partidos que se identificam como comunistas.
Seria um grande erro racionalizar essa falta de comunicação escondendo-se atrás do princípio da não ingerência nos assuntos internos, apesar de ser um princípio que pensamos que deve ser rigorosamente preservado no período vindouro.
Em última análise, o processo revolucionário mundial é um todo, e a forma como cada partido que se identifica como comunista se relaciona com esse processo diz respeito a todos os outros atores que fazem parte desse processo.
Esse artigo pode ser considerado uma maneira modesta de pensar em voz alta sobre as diferentes formas que as relações entre os partidos comunistas devem assumir nas circunstâncias dadas.
Vale ressaltar neste momento o que podemos dizer ao final. Apesar das inegáveis e amplas divergências entre os partidos comunistas hoje, não há fundamento para uma divisão ou divisão saudável.
Precisamos organizar um debate, um debate realmente ousado.
Isso não deve ser entendido como um apelo para que os partidos comunistas se envolvam em um confronto ideológico dentro e entre eles. A extensão da decadência do capitalismo confronta os partidos comunistas com a tarefa de canalizar uma alternativa real o mais rápido possível. Neste momento, não podemos nos limitar a um debate acadêmico, teórico.
O que precisamos é o seguinte: estabelecer um esclarecimento dos referenciais teóricos e políticos a partir dos quais cada partido comunista atua. Não faz sentido considerar isso como um problema interno de cada partido. A interação é um dos privilégios mais importantes de um movimento universal como o marxismo.
Infelizmente, não estamos passando por um período saudável para os partidos comunistas se ouvirem e se entenderem.
O que precisamos é que todos contribuam para criar verdadeiros espaços de discussão sem rotular nenhuma outra parte.
Mesmo que existam fatos suficientes para rotular um partido, a necessidade de abster-se de fazê-lo não é uma questão de cortesia política, mas está totalmente relacionada às condições particulares de hoje.
O processo em que os partidos comunistas perderam suas referências já dura quase 70 anos. O problema é profundo demais para ser superado por tentativas prematuras de divisões ou separações.
Sem dúvida, as partes que têm posições semelhantes ou que consideram formar parcerias estratégicas podem e devem estabelecer plataformas bilaterais, múltiplas, regionais ou internacionais para reforçá-las. Mas a realidade é que sua contribuição para a formação desses pontos referenciais será limitada.
A organização de um debate saudável exige evitar o recurso a epítetos como reformista, sectário, aventureiro ou oportunista. Como dito acima, a cortesia política não é o fator decisivo aqui. De fato, no passado, epítetos muito mais duros e ofensivos foram usados pelos marxistas. Mas cada um desses conflitos anteriores amadureceu sobre os pontos de referência que se pensavam existir e compartilhavam entre si.
Suponho que o ponto em que precisamos esclarecer o que entendemos pela palavra “referência” esteja agora alcançado.
Estamos falando de pontos de partida históricos, teóricos e morais que floresceram no seio do marxismo e foram endossados internacionalmente.
Por exemplo, antes que a Segunda Internacional fosse manchada com a vergonha de 1914, a oposição categórica à guerra imperialista era uma posição de princípio que foi endossada unanimemente. Esse princípio foi fruto da atuação do marxismo sobre referências comuns, embora as divergências sobre o tema ainda não estivessem totalmente cristalizadas.
Outro princípio bem conhecido, de não participação nos governos burgueses, também decorria das mesmas referências.
Tais exemplos podem ser multiplicados. O que precisamos ter em mente é que o que está na raiz dos conflitos e divisões entre os marxistas nos primeiros 25 anos do século XX são essas antigas referências comuns.
Essa semelhança foi a razão por trás de Lênin culpar Kautsky e outros como “renegados”.
Como sublinhei acima, a Terceira Internacional desenvolveu códigos que se tornaram novas fontes de referência para o movimento comunista após o aprofundamento das diferenças em 1914 que levaram a uma cisão. Enquanto alguns partidos não foram corajosos o suficiente para declarar abertamente sua distância a essas referências, alguns outros partidos os defenderam sinceramente e os seguiram. Em qualquer caso, o movimento comunista internacional moveu-se dentro de um quadro teórico e político.
Mencionei acima que essas referências já começaram a perder sua influência muito antes de 1991, quando a União Soviética se dissolveu e, além disso, é impossível hoje estabelecer um novo quadro que fosse endossado por todos.
No entanto, é óbvio que haverá graves consequências para os partidos comunistas agirem num terreno cujos limites históricos, teóricos e políticos estão completamente perdidos.
O debate e a comunicação aqui devem servir para esclarecer o conjunto de princípios que obrigam os partidos comunistas, sem ceder a essa falta de referências.
A divergência (se for inevitável) servirá para o avanço apenas quando for o resultado de tal processo.
É claro que é possível e necessário neste processo, apesar de todas as diferenças, desenvolver posições e ações comuns sobre questões internacionais, como guerra e paz, ou a luta contra o racismo, o fascismo e o anticomunismo. Se não ignorarmos e não banalizarmos as diferenças, as posições tomadas podem se tornar mais reais e as ações conjuntas mais poderosas.
O objetivo certamente não é a divisão. O objetivo deve ser ajudar o movimento comunista, que afirma ser a vanguarda do processo revolucionário mundial desigual e combinado, a se transformar em um movimento conjunto acima e além dos elementos individuais.
O que queremos dizer com um movimento conjunto não é, obviamente, formar um modelo que não leve em conta as particularidades das lutas que acontecem em diferentes países. Por outro lado, todos precisaríamos nos preocupar com o motivo pelo qual a dicotomia “questões internas” e “relações internacionais” se tornou uma zona de conforto como nunca antes em nossos 170 anos de história.
Debate, interação e comunicação são importantes por causa de tudo isso.
Mas como e sobre o que devemos debater?
Nesse ponto, não deve haver espaço para “tabus” ou áreas intocáveis.
É claro que precisaremos partir de nossas próprias histórias. O TKP se esforçou corajosamente para analisar um ponto de inflexão muito crítico para si mesmo, que é o complicado problema que surgiu logo após sua fundação, e incluiu o assassinato de quase todos os seus líderes fundadores.
As relações com o movimento kemalista, que tinha uma aliança com a Rússia soviética com resultados muito importantes, ainda que temporários, e a aproximação com a revolução burguesa que levou à fundação da República da Turquia em 1923, estavam entre os problemas fundamentais para o TKP, que também teve impacto nos anos seguintes. Nosso estudo sobre a história do Partido, cujos dois primeiros volumes foram publicados no centenário de nossa fundação, provou que podemos enfrentar tais problemas com responsabilidade revolucionária.
Estamos tentando expressar a mesma atitude corajosa diante das rupturas, cisões e liquidações na história do TKP, e estamos arcando com os custos de uma análise honesta das preferências políticas e ideológicas do partido.
As questões que estamos discutindo não dizem respeito apenas à Turquia. A luta do TKP nunca foi em um país isolado desde sua fundação em 1920. Quando examinamos toda a nossa história, podemos ver que o terreno em que nosso partido lutou interagiu com Rússia, Grécia, Irã, Índia (e Paquistão), Armênia, Azerbaijão, Geórgia, Bulgária, Alemanha, Chipre, Iraque, Síria e muitos outros países.
Além disso, não podemos falar da influência internacional da luta de classes na Turquia como se fosse apenas sobre o TKP. Nesse sentido, a TKP jamais recorrerá à abordagem simplista de “Somos donos dos nossos problemas” e levará a sério qualquer crítica, sugestão ou avaliação que seja elaborada e respeitosa.
O TKP também realiza debates e estudos dentro de si sobre questões pouco discutidas da história do movimento comunista, mas sem tirar conclusões precipitadas ou rotulá-las. Não é favorável para os partidos comunistas permanecerem calados sobre muitas questões, incluindo o VII Congresso do Comintern, as políticas da Frente Popular, a Guerra Civil Espanhola ou o Eurocomunismo, e deixar o campo aberto para os anticomunistas e a “nova esquerda”.
Não há problema a ser deixado de lado para aqueles que testemunharam o trágico colapso da União Soviética. Para nós, é infundada a ideia de que discutir determinados assuntos ameaçaria os valores que nos ligam ao nosso próprio passado. O que realmente ameaça nossos valores é a falta de referência de hoje. Se pudermos evitar que algumas questões se transformem em tabu, veremos claramente que a história comum do movimento comunista é muito mais rica do que se supõe.
O melhor exemplo de que tipo de adversidades podem surgir quando nos afastamos de um processo saudável de debate e avaliação é a era de Stalin, que depois de 1956 se tornou um tema obscuro e eventualmente um tabu, e depois um objeto de qualquer calúnia ou glorificação. Não se deve esquecer que os anos sob a liderança de Stalin podem se tornar o capítulo mais ilustrativo e honroso do movimento comunista internacional, quando o fanatismo é deixado para trás.
Os comunistas não devem ter reservas em discutir qualquer tema pertencente à história das lutas de classes. No entanto, mecanismos de debate mais sofisticados são necessários se não quisermos permitir que nossas discussões sejam inibidas pelo respeito às preferências dos partidos comunistas que lutam em cada país.
Vale elaborar um pouco mais sobre a ideia de que os debates não devem envolver estigmatização. É óbvio que um partido comunista pode rotular outro, explícita ou implicitamente. Claro, não podemos considerar tudo isso como infundado. Hoje, não é segredo que existem alguns partidos comunistas adquirindo caráter social-democrata. A identificação de alguns partidos praticamente inexistentes politicamente como “proclamatórios” ou “sectários” também pode ser tomada como justificada. No entanto, podemos observar que esses rótulos não servem para a interação e o debate que mais precisamos no momento.
Já mencionamos que faltam referências comuns no cenário internacional. No entanto, outra verdade é que muitos partidos carregam dentro de si o potencial de mudança. Podemos caracterizar essa mudança como positiva ou negativa em cada caso. No entanto, também podemos ver que as ondas do grande terremoto que atingiu todos os partidos comunistas na segunda metade da década de 1980 ainda continuam e que muitos partidos não se estabilizaram ideológica e politicamente.
Seria errado atribuir um significado negativo a essas dores de mudança, que às vezes levam a rupturas e cisões. O que está errado, na verdade, é que esses conflitos internos muitas vezes não coincidem com um processo tangível e perceptível de debate ou divisão. A falta de “debate” entre os partidos comunistas desempenha um papel nessa crueldade.
Nesse sentido, podemos argumentar que os problemas são causados por tentativas de desvalorização ou difamação disfarçadas de polidez, ao invés de acusações abertas.
É inevitável que as relações se tornem menos saudáveis na falta de uma verdadeira plataforma de debate.
Até agora, discorremos sobre as consequências da falta de referências teóricas e políticas. Outro problema surge nos critérios de avaliação dos partidos comunistas. Ao avaliar um partido comunista, prestamos atenção ao seu programa, ideologia, status organizacional, ações, sua influência na sociedade, desempenho eleitoral, publicações e padrões de quadros. Alguns deles são puramente qualitativos, mas outros podem ser medidos quantitativamente. Porém, deixando de lado suas preferências ideológicas, e não levando em conta rótulos fáceis de colocar como “reformista”, “sectário”, “aventureiro” etc., podemos julgar um partido político apenas questionando se ele é influente ou não.
Nesse contexto, fica claro que a distinção “partido grande vs. partido pequeno” não é um critério “revolucionário”. Em particular, não faz sentido avaliar a magnitude de um partido com base principalmente em resultados eleitorais.
Não é preciso lembrar que estamos fazendo essa ênfase não em nome de um partido até então sem vitória parlamentar, mas com base na tradição que se formou desde o início do século XX.
Como a igualdade entre os partidos comunistas é um dos princípios mais importantes e universalmente defendidos, vale a pena dar mais ênfase a ele.
A classificação de “partido grande vs. partido pequeno” não serve para estimular os partidos a progredir. Mas um verdadeiro debate é absolutamente benéfico. Hoje, qualquer comunista que viva em qualquer país tem o direito, e o dever, de se perguntar como outro partido comunista está reagindo aos acontecimentos naquele país, de fazer perguntas e de expressar opiniões a respeito.
Quaisquer que sejam as condições em que opere, quaisquer que sejam as oportunidades que tenha, é sempre possível para um partido comunista agir mais, melhor e mais revolucionário do que antes. Assim, os princípios de respeito mútuo e não interferência em questões internas não devem anular as abordagens críticas, e os partidos comunistas não devem permanecer em uma zona de conforto onde estão sozinhos.
Os partidos comunistas não se classificam, mas acompanham-se uns aos outros, discutem e procuram formas de colaboração. As bases para isso podem ser criadas avaliando os partidos comunistas com critérios sólidos.
Neste momento, vale a pena abordar a situação dos partidos comunistas no poder hoje. Todos esses partidos são portadores de imensa legitimidade histórica. Na medida em que “revolução” e “poder político” são de importância central para os partidos comunistas, não faz sentido discutir sobre estes partidos terem um papel importante no processo revolucionário mundial.
Hoje, sabemos que existe uma ampla gama de avaliações sobre a política interna desses partidos, seu caráter ideológico e de classe e o papel que desempenham no cenário internacional. Claro, a legitimidade histórica que acabei de mencionar não cria automaticamente qualquer impunidade para críticas. Todas as partes podem fazer livremente suas próprias avaliações, desde que preservado certo nível de maturidade e respeito. Também é inevitável que parte dessas avaliações possam ser um pouco prejudiciais. Os partidos comunistas dominantes, neste ou naquele grau, também são atores internacionais que têm influência na luta de classes em outros países.
É necessário que esses partidos tenham um lugar particular entre os partidos comunistas mundiais, com base na extensão acima mencionada? Sabemos que alguns partidos que lutam nos países capitalistas são dessa opinião. Em algumas reuniões internacionais ou bilaterais, deparamo-nos com algumas propostas que favorecem que os partidos comunistas no poder estejam na vanguarda e tenham um papel decisivo, ou pelo menos regulador.
Muito pode ser dito sobre o papel do PCUS dentro do movimento comunista internacional no passado, positivo e negativo. Mas hoje, a situação é muito diferente. A União Soviética, pelo menos até certo ponto, tentou relacionar sua própria existência e sua política externa com o processo revolucionário mundial, mesmo nos momentos mais difíceis. Os partidos comunistas no poder hoje claramente não têm tal posicionamento.
As razões para isso serão tema de outro debate. Além disso, as possibilidades e condições de cada um dos países onde os partidos comunistas estão no poder são bastante diferentes entre si. Um julgamento totalista nunca foi apreciado pelo TKP. Os responsáveis pela luta socialista não estar em uma posição avançada nos países capitalistas somos nós e nossas inadequações como partidos comunistas nos países capitalistas.
Além disso, na complexa correlação de forças de hoje, é óbvio que, para a agenda dos partidos comunistas no poder, outros partidos comunistas não constituem prioridade.
Isso por si só coloca em questão as propostas de que os partidos comunistas no poder desempenhem um papel mais especial.
O resultado dos partidos comunistas no poder hoje avançando em reuniões internacionais e nas relações entre os partidos comunistas seria que os partidos comunistas passariam a analisar as lutas de classes a partir de uma perspectiva geoestratégica. Mais uma vez, isso não se baseia em nossas opiniões “subjetivas” sobre as prioridades da política externa dos partidos comunistas no poder.
Embora não o enfatizemos tanto, a abordagem geoestratégica seria a escolha mais perigosa se os partidos comunistas quiserem se posicionar dentro do processo revolucionário mundial. Os partidos comunistas devem abordar a arena internacional tentando harmonizar os interesses da luta revolucionária em seus próprios países com os interesses gerais do processo revolucionário mundial.
Essa harmonia pode ser difícil ou mesmo impossível às vezes. No entanto, para os partidos comunistas, é necessário reconhecer os custos da alienação do objetivo da revolução em seus próprios países e criar essa harmonia o mais sólida possível.
A geoestratégia poderia, na melhor das hipóteses, ser um elemento analítico complementar para o marxismo. Não é correto substituir a perspectiva em que conceitos como imperialismo, Estado, revolução e luta de classes desempenham um papel central, por lutas de poder que podem a qualquer momento banalizá-los.
E aqui, outro problema precisa ser apresentado.
A Rússia Soviética e mais tarde a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas exerceram uma séria influência ideológica e psicológica “a favor do socialismo” sobre os trabalhadores e as nações oprimidas nos países capitalistas. E isso foi conseguido mesmo durante os momentos mais desafiadores para a União Soviética. Isso foi alcançado porque centenas de milhões de pessoas no resto do mundo sentiram que na URSS a luta pela “construção de uma sociedade igualitária” continuava.
Com o tempo, essa influência diminuiu. A União Soviética se desintegrou. Este artigo é composto por reflexões expressas em voz alta e atenta para não destacar exemplos negativos. Mas sinto a necessidade de seguir em frente com um exemplo positivo. Precisamos pensar por que Cuba, apesar de todas as circunstâncias extraordinariamente difíceis em que se encontra o país, ainda pode ser um centro de atração para pessoas em busca de um “outro mundo”. Isso é possível porque a Revolução Cubana, apesar de uma série de contratempos, continua defendendo um forte sistema de valores.
A Realpolitik implementada sem limites, que é o resultado inevitável do pensamento geoestratégico, pode excitar alguns estrategistas, intelectuais e políticos, mas não serve como um centro de atração para as massas trabalhadoras.
Os partidos comunistas são obrigados a transformar em sua bandeira o ideal de uma sociedade igualitária e um sistema de valores compatível com esse ideal. Mesmo a tarefa indiscutível e generalizada de hoje de derrotar ou repelir o imperialismo dos EUA não deve se tornar um pretexto para ofuscar esse ideal e sistema de valores.
Os partidos comunistas no poder devem manter seus papéis importantes dentro da família dos partidos comunistas com sua legitimidade e prestígio históricos, mas não se deve insistir nos apelos para dar a eles um papel decisivo. Tal insistência, deve-se ter em mente, pode levar a uma ruptura muito dura dentro dos partidos comunistas.
Afinal, o princípio da igualdade e não-ingerência, que talvez seja o princípio mais comumente reconhecido entre os partidos comunistas hoje, não permite tal hierarquia interna.
Neste momento, podemos ser mais específicos sobre o que queremos dizer com um “debate real”. O que está por trás da necessidade de não deixar um único ponto de nossa própria história sem luz ou sem avaliação honesta certamente não é o rigor acadêmico. Quando examinamos com atenção, vemos que a “identificação das tarefas prioritárias” esteve no centro de todos os debates, desde a 1ª Internacional até a dissolução da União Soviética. É essa simples questão que determina os debates e as divisões dentro do marxismo.
As tarefas prioritárias foram uma vez definidas como a derrubada da monarquia e do feudalismo, outras vezes a expansão do direito da classe trabalhadora de se organizar e se engajar na política e, em alguns outros casos, a neutralização da ameaça do fascismo ou da guerra.
Agora também, os partidos comunistas têm visões diferentes sobre qual é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial, do qual eles próprios constituem elementos.
As necessidades do processo revolucionário mundial são determinantes.
Naturalmente, cada partido comunista avalia essas necessidades do ponto de vista de seu próprio país e dos interesses da luta em seu próprio país. A distância entre as necessidades gerais do processo revolucionário mundial e os interesses dentro de um país é um dos problemas mais sérios que os comunistas têm que resolver ou administrar. Às vezes, essa distância pode se transformar em um conflito. Também aqui os partidos comunistas têm um papel importante a desempenhar.
Devemos admitir que hoje as diferenças entre os partidos comunistas são produzidas pelas diferentes respostas à questão de qual é a tarefa prioritária da revolução mundial.
Uma abordagem muito difundida e antiga afirma que expandir o espaço para a democracia e as liberdades é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial.
Mais uma vez, ouvimos cada vez mais descrições de tarefas como “repelir o imperialismo dos EUA” e “repelir o perigo do fascismo e da guerra”.
É óbvio que essas tarefas não podem ser negligenciadas. No entanto, tais definições de tarefas podem eventualmente se transformar em defesa de iniciativas e movimentações de política externa deste ou daquele país.
É também uma escolha definir a tarefa urgente no que diz respeito aos interesses da revolução mundial hoje como tornar o socialismo uma opção oportuna. Essa abordagem, que também adotamos, deve ser vista como o produto da determinação de rejeitar e acabar com o status em que o socialismo, única alternativa ao capitalismo, vive seu momento menos influente e assertivo durante um período de 170 anos.
Determinar a tarefa principal com base na oportunidade do socialismo e, portanto, da revolução, significa também eliminar as adversidades que podem ser causadas por outras abordagens que limitam ou pacificam a classe trabalhadora.
Falando realisticamente, é impossível para a classe trabalhadora em sua forma atual ser a principal força capaz de repelir o imperialismo dos EUA ou neutralizar a ameaça do fascismo e da guerra. Para que os comunistas exerçam peso nessas tarefas históricas, eles precisam ter vontade de cumprir sua missão principal.
O movimento comunista não terá futuro imitando outras forças, enquadrando-se numa definição mais ampla de esquerda. A isso não podemos nem chamar de um mergulho kamikaze porque não fará nenhum mal ao inimigo. Também não é um harakiri porque não levará a um fim “honroso”.
Como estratégia de crescimento, as prioridades acima mencionadas não ajudarão o movimento comunista a florescer e se desenvolver.
Claro, não podemos falar de um teste de sinceridade aqui. A história é o juiz mais justo. Mas todos nós sabemos que o comunismo tem limites.
Se esses limites se tornaram ambíguos, isso pode ser um ponto de partida para nós. Sem cair na repetição, sem se esgotar com palavras de ordem, citações ou papagaiagem.
A grande obra de Marx e Lênin está na totalidade de seus pensamentos e ações. Se o que define a vida de Marx foi seu ódio infinito ao capitalismo, a revolução e a tomada do poder político o fazem para Lênin.
Nos anos anteriores, a cada momento em que os partidos comunistas se esqueciam de sua própria razão de ser, passavam por alguns percalços que hoje podem ser julgados como “erros”.
Por esta razão, se, em vez de querelas caóticas e infrutíferas, os partidos comunistas puderem contribuir para os debates, dando respostas claras sobre como eles se relacionam com o processo revolucionário mundial e demonstrando referências ideológicas e políticas apropriadas, um resultado coletivamente significativo surgirá para cada um dos partidos comunistas. Assim, posições comuns, ações conjuntas ou separações acontecerão em um terreno muito mais sólido.
O TKP fará suas modestas contribuições para a arena internacional com essa perspectiva.
3 de fevereiro de 2023