Fascismo: fenômeno psicológico ou de classes? Uma tentativa de conciliação entre Adorno e Trotsky

Por Amanda Freitas Carnaíba

Com a emergência de movimentos da chamada nova extrema-direita, há interesses em revisitar autores que escreveram sobre o fascismo histórico em busca de compreender elementos que permanecem desse fenômeno e o que faz com que indivíduos de todas as classes demonstrem adesão à retórica de líderes fascistas.

A pergunta de pesquisa deste artigo é: como podemos usar Adorno e Trotsky para pensar a intersecção entre a dimensão de classe e a dimensão psicológica do fascismo? Para isso, foi realizada leitura da obra de Trotsky “Como esmagar o fascismo” (2018) e das obras “Estudos sobre a personalidade autoritária” (2019) e “Aspectos do novo extremismo de direita” (2020), ambas de Adorno.

Como movimento político, o fascismo pode ser entendido como um fenômeno psicológico ou de classes. No primeiro entendimento, certos componentes da psique e da personalidade de indivíduos os tornaria propensos a uma personalidade de tipo autoritária. Isso explicaria como o fascismo se desloca de uma base de classes e da necessidade de uma correspondência entre a realidade material do indivíduo e a adesão à ideologia. Esta leitura explicaria, por exemplo, porque membros da classe trabalhadora aderiram ao fascismo dos anos 1930 e aderem aos novos movimentos de extrema direita na atual conjuntura. Por outro lado, há uma interpretação do fascismo como um fenômeno de classes, e, neste caso, ligado a e originário da pequena-burguesia. Enquanto movimento de massas de caráter contrarrevolucionário, o programa político do fascismo no poder corresponde, na perspectiva de classes, aos interesses políticos e econômicos do grande capital. No entanto, para entender como se alastra na população e como indivíduos aderem a essa ideologia, é necessário compreender os componentes psicológicos que estão por trás desse fenômeno. Há uma intersecção, portanto, entre as relações de classe às quais o fascismo corresponde e das quais se origina, incluindo aí as conjunturas específicas de crise do capitalismo em que emerge, e os componentes psicológicos que fazem com que pessoas da pequena-burguesia e também do proletariado tenham adesão a seu discurso e sigam o líder político fascista.

Demonstra-se, ao longo do texto, que há tanto em Trotsky quanto em Adorno apontamentos sobre o aspecto psicológico do fascismo, e sobre como a conjuntura de crise do capitalismo, permeada de pauperização, frustração econômica, desconfiança política e medo de decadência do padrão de vida, abre margem para a emergência de diversos sentimentos que podem, por sua vez, serem instrumentalizados a partir de um conjunto de mecanismos retóricos e discursivos em torno de uma ideologia política vaga, nas palavras de Trotsky, em torno do “saco sem fundo” do nazi-fascismo. No entanto, os interesses de classe aos quais o movimento corresponde especialmente ao chegar ao poder devem ser reconhecidos, e o programa político-econômico que o fascismo avança no poder corresponde a interesses materiais concretos, apesar de seu discurso ideológico ser fundamentalmente propagandístico e delirante. O fascismo não tem capacidade de se constituir como movimento político real e utilizar esses mecanismos psicológicos se não houver um conjunto de lideranças e atores políticos que mobilizem-nos. Da perspectiva de uma luta política antifascista, isto significa que ambas as facetas deste fenômeno devem ser reconhecidas, buscando-se fornecer uma base material racionalmente fundamentada para as frustrações de indivíduos com as crises cíclicas e destrutivas do modo de produção capitalista, dado que esse é o principal sentimento instrumentalizado pela propaganda fascista, e que permite sua permanência e reemergência em diferentes contextos.

Adorno e a dimensão psicológica: fascismo como delírio político

Em “Estudos sobre a personalidade autoritária” (2019), Adorno apresenta diversos componentes psicológicos que formam um conjunto de atitudes e opiniões que, combinados, compõem uma espécie de síndrome (p.135) que influencia no preconceito contra outgroups. Esse processo levaria à formação de uma personalidade com maiores chances de adesão ao fascismo, fornecendo as “bases motivacionais” para tal (ADORNO, 2019, p.134). Entre esses componentes, estaria uma disposição de submeter-se e venerar uma figura autoritária de forma acrítica, além de uma “rígida e forte adesão” a valores conservadores, que poderia levar a atitudes de agressividade e violência contra outgroups vistos como desviantes. O fascismo teria uma relação dialética entre um componente sádico e um componente masoquista: de um lado, temos um indivíduo de ego enfraquecido e que “foi forçado a renunciar aos prazeres elementares e a viver sob um sistema de rígidas restrições” (ADORNO, 2019, p.142-3), devido tanto à adesão do indivíduo a valores conservadores quanto a uma conjuntura de deterioramento da sua qualidade de vida. Ao mesmo tempo haveria um sadismo alimentado contra o outgroup que se deseja controlar, punir e, em última instância, eliminar. O caráter violento e destrutivo do fascismo volta-se internamente e externamente.

Adorno aponta uma fonte originária de ordem estrutural para esse caráter sádico-masoquista, relacionada a uma conjuntura de crise econômica e ligada especialmente à incapacidade do indivíduo de “apontar as verdadeiras causas de sua dificuldade”. Devido a esta confusão intelectual, este indivíduo alimenta fortes sentimentos de agressividade em direção a um grupo desviante  que identifica como culpado (ADORNO, 2019, p.144). Até mesmo indivíduos da classe trabalhadora poderiam identificar grupos marginalizados da sociedade como culpados de suas mazelas, enquanto os membros identificados como pertencentes ao seu ingroup são poupados de suas fúrias. A construção do outgroup desviante na estereotipação e na projeção dos indivíduos como naturalmente malignos, cuja natureza corrupta seria imutável e solucionável através apenas da erradicação, é um processo que toma diferentes nuances quando analisado sob a perspectiva de classe, e é muitas vezes sustentado em explicações de fundo conspiratório e místico (ADORNO, 2019, p.303-4).

Há um forte moralismo por trás das condutas e visão de mundo que condiciona uma personalidade de tipo autoritária e suscetível de adesão ao fascismo. De acordo com Adorno, isto está ligado a uma internalização deficiente do superego a um ego enfraquecido, uma “incapacidade de construir um conjunto consistente e duradouro de valores morais no interior da personalidade” (2019, p.146), o que leva o indivíduo a externalizar esse mecanismo integrador na figura do líder. O desejo de controle tanto de si mesmo quanto do outgroup é materializado numa liderança autoritária à qual se renuncia qualquer capacidade de introspecção, pensamento crítico e ação política. A obsessão da ideologia fascista com a sexualidade e conspirações a respeito de catástrofes destrutivas, além da recorrência a um misticismo e anti-intelectualismo para explicação do mundo, dar-se-ia justamente por uma percepção de impotência diante da sociedade industrial moderna (ADORNO, 2019, p.150-1).

A realidade material de classe importaria menos para uma adesão absoluta ao líder fascista do que a “consciência de classe subjetiva” (ADORNO, 2019, p.46), o que permitiria um alastramento do fascismo por toda a população e explicaria como certas conjunturas sociais de crise, medo e frustração ativariam componentes da personalidade autoritária e mecanismos de transferência da culpa a um grupo marginalizado. Os movimentos fascistas podem ser originários da pequena-burguesia, no que concerne seu aspecto de classe, porém a suscetibilidade e a distribuição de seus apoiadores vai para além desta classe justamente pelos aspectos psicossociais. O medo e sentimento de iminente “catástrofe social” é mobilizado nesses movimentos, porém não é apenas “psicologicamente motivado, ele tem também sua base objetiva” (ADORNO, 2019, p.52).

A permanência da extrema-direita para além do contexto do pós-guerra está justamente na capacidade desses movimentos de descolarem-se de sua base social de origem pequeno-burguesa com a mobilização de elementos de caráter simbólico e psicossociais, ressignificados a cada conjuntura. Para Adorno, o fascismo opera fundamentalmente por meios propagandísticos, o que torna a estratégia de combate política insuficiente: “ele deve ser enfrentado em seu próprio terreno” (ADORNO, 2019, p.76), isto é, na compreensão dos elementos inconscientes que são ativados em seus adeptos.

A adesão ao fascismo e a síndrome de tipo autoritária estão ligadas, em última instância, a uma condição de delírio, alucinação e desconexão com o princípio de realidade, uma “rejeição violenta do mundo exterior” e a construção de um “mundo interior ilusório” (ADORNO, 2019, p.556). O fascismo seria um tipo de movimento de massas que se baseia profundamente na ativação do que Adorno chama de “sistemas delirantes” (ADORNO,  2020, p.57). A propaganda política é tornada uma ferramenta altamente eficaz na mobilização de aspectos delirantes ligados a esses componentes psíquicos. O fascismo alastra-se por meio da construção de narrativas de cunho conspiratório ativando esses delírios, nivelando “a diferença inquestionável entre os interesses reais e os falsos objetivos simulados” (ADORNO, 2020, p.54).  O fascismo enquanto movimento político é desprovido de um programa e projeto de sociedade, e por isso se apoia fortemente no caráter psicológico e propagandístico, ressignificando suas estratégias discursivas e moldando-se a cada nova conjuntura social e econômica, sempre se aperfeiçoando para ativar especialmente o sentimento de impotência diante da sociedade industrial moderna e de uma democracia que é percebida pelos indivíduos como incapaz de atender às suas demandas.

Trotsky e a dimensão de classe: o pequeno burguês enlouquecido

Se o fascismo é a expressão do delírio político e a adesão ao líder fascista é a externalização de um ego fraco de um conjunto de indivíduos massificados, atomizados, frustrados e com medo diante de uma conjuntura de crise, dotados de uma série de componentes psicológicas ligadas à formação de uma síndrome autoritária, o líder político encerra nele mesmo tanto uma imagem perfeita desses sistemas delirantes como um conjunto de relações de classe. Trotsky descreve Hitler como um indivíduo de “grande temperamento” que “grita mais alto do que os outros” e dotado de uma notável “mediocridade intelectual” (TROTSKY, 2018, p.223). Buscar entender a ascensão de uma figura como Hitler apenas em sua figura seria propor uma explicação demasiado individualista que ignoraria os fatores sociais por trás do nazifascismo. Hitler, de acordo com Trotsky, “hospeda [em si] toda exacerbação pequeno-burguesa”, e seus discursos o permitiram condensar a imagem do pequeno-burguês enlouquecido nele mesmo por meio da oratória, proporcionando “a possibilidade de unificar todas as formas de frustração no entorno do saco sem fundo do Nacional Socialismo, e de dirigir a massa na direção na qual ela lhe empurrava” (TROTSKY, 2018, p.223). O líder político nazifascista é a imagem de sentimentos difundidos coletivamente num contexto de desmantelamento das condições econômicas da época: o pequeno-burguês vê em Hitler uma salvação contra o desespero, o medo e terror da miséria.

A pequena-burguesia volta-se tanto contra a burguesia do grande capital quanto contra o proletariado. Por um lado, alimenta desconfiança política a respeito dos partidos tradicionais, com os quais identifica instituições de proteção da grande propriedade em detrimento das suas pequenas propriedades, sempre ameaçadas de serem engolidas. Por outro lado, esta pequena-burguesia é mobilizada pelo fascismo contra o proletariado. Trotsky aponta como Mussolini usou a retórica marxista, também usada por Hitler adicionando misticismo alemão, para tal feito. O fascismo tem como característica inovadora em relação a fenômenos como o bonapartismo justamente a mobilização de elementos retóricos que os permitiriam iniciar um movimento de massas representado pela pequena burguesia. A pequena-burguesia nessa condição massificada e submissa ao líder autoritário marcha em torno da restauração de sua “glória perdida”, e contra o progresso que “lhe trouxe apenas irredimíveis dívidas” (TROTSKY, 2018, p.225). O antimodernismo, apontado também por Adorno, encontra-se com as narrativas conspiratórias de que o grande capital e a modernidade seriam a culpa de seus males, unindo-se aí as narrativas de exaltação irracional de uma supremacia racial.

Numa conjuntura de crise do capitalismo, como a representada no período, o partido comunista à época, na visão de Trotsky, falhou em iniciar um processo revolucionário ou pelo menos compor uma frente única com os social-democratas para derrotar o fascismo, que deveria ter sido visto como o inimigo maior com o qual não se pode conviver (TROTSKY, 2018, p.233-5). O pequeno burguês, por sua vez, sentindo-se impotente diante da sua realidade econômica, e desprovido de programa político próprio, refugia-se no mundo mítico do nazifascismo. Nas palavras de Trotsky, “a pequena burguesia pauperizada se atordoa com contos de fada” (TROTSKY, 2018, p.226).

Os componentes irracionais e psicológicos do fascismo emergem também na leitura de classe fornecida por Trotsky, ligados ao próprio desenvolvimento e declínio do capitalismo. Ao apontar que “a civilização capitalista está vomitando uma barbárie não digerida” (TROTSKY, 2018, p.228), pode-se interpretar como numa crise do capitalismo são abertas margens para a emergência de uma série de insanidades que este próprio sistema produz. Com essa fenda aberta, a revolução comunista pode ser uma resposta para a crise final do capitalismo tanto quanto o fascismo. O pequeno-burguês enlouquecido, ao aderir ao fascismo, compõe um movimento de massas que defende, no entanto, interesses materiais desconexos de seus próprios: o fascismo no poder é o governo do grande capital, e a pequena-burguesia adere devido aos elementos retóricos, místicos, e, em última instância, psicológicos mobilizados pelos fascistas em seu “programa de ilusões […] dissolvido em atos ritualísticos” (TROTSKY, 2018, p.228). O fascismo no poder é a preparação para a guerra imperialista total, e atua para desmantelar qualquer espaço de ação política possível: é o único regime com o qual não é possível conviver, pois é um regime fundamentalmente voltado para a destruição: “A órbita política do regime não deixa nenhuma alternativa: guerra ou revolução” (TROTSKY, 2018, p.229).

A intersecção entre a dimensão de classe e a dimensão psicológica

O aspecto psicológico é visto em ambos autores como fundamental, aliado à dimensão de classe. A despeito da natureza pequeno-burguesa, de movimento de massas, e dos processos da conjuntura política e econômica que condicionam-no, o fascismo tem como novidade e especificidade uma instrumentalização do delírio e do inconsciente para uma política de caráter destrutivo. O fascismo não pode ser combatido apenas no plano da luta política, pois ele não apenas desmantela qualquer capacidade de organização para tal no plano da coletividade, mas também no plano psicológico, impedindo até mesmo qualquer capacidade de construção de pensamento crítico e introspecção.

No entanto, os interesses de classe aos quais o movimento corresponde, especialmente ao chegar ao poder, devem ser reconhecidos, e o programa político-econômico que o fascismo avança no poder corresponde a interesses materiais concretos, apesar de seu discurso ideológico ser fundamentalmente propagandístico e delirante. Isto envolve considerar o fascismo, da perspectiva de classe, um movimento pequeno-burguês em sua essência. Numa conjuntura de emergência de novas extremas direitas, o que torna o fascismo maleável e permite que algumas de suas componentes mantenham-se relevantes é a técnica propagandística e a instrumentalização do medo. Isso se agrava com o desenvolvimento de novos meios de comunicação, como as redes sociais digitais. No entanto, as bases materiais que determinam a reemergência desse fenômeno são fundamentais e continuam as mesmas: uma crise do capitalismo que gera frustrações e desconfianças, e um processo contrarrevolucionário de mobilização de indivíduos de todas as classes contra a possibilidade de derrubada do capitalismo.

O fascismo não tem capacidade de se constituir como movimento político real e utilizar esses mecanismos psicológicos se não houver um conjunto de lideranças e atores políticos que mobilizem-nos. Enquanto fenômeno de massas, ele não deve ser visto como formado espontaneamente. A identificação com a figura de um líder autoritário é crucial tanto na perspectiva apontada por Adorno na dialética sadismo-masoquismo, na construção de um outgroup a quem culpar e direcionar a violência, quanto no aspecto de movimento de massas de natureza contrarrevolucionária apontado por Trotsky. E esses processos não são constituídos espontaneamente: são mobilizados na dinâmica da luta política por atores movidos por interesses políticos concretos. E isso significa que, num contexto de interregno, é também possível que movimentos de esquerda se organizem para fazer frente a movimentos fascistas, especialmente no intuito de não deixar a classe trabalhadora ser capturada por esses movimentos.

Se o fascismo é o delírio na política, é crucial que, num contexto de crise do capitalismo, atores progressistas mobilizem os indivíduos em torno da estratégia de tornar conscientes as razões reais das crises cíclicas e destrutivas deste modo de produção, isto é, dar corpo, materializar de forma racional o objeto das frustrações que são a matéria-prima da propaganda fascista. Quando o delírio político atinge indivíduos em estado de medo de deterioramento de suas condições de vida, os principais processos que fazem-no aderir ao fascismo são a identificação com um líder autoritário que vai vingá-los e o outgroup no qual se projeta a culpa pelas mazelas. Canalizar ambos os sentimentos em direção ao modo de produção capitalista, com base num discurso fundamentado na razão, é fundamental. Portanto, numa luta política antifascista, é necessário conciliar a leitura dos autores abordados nesse artigo, elucidando a natureza de classe do fascismo apontada por Trotsky e as reais bases materiais e interesses burgueses aos quais o movimento corresponde, quanto a natureza psicológica apontada por Adorno, e o fato de que o que torna o movimento fascista bem sucedido e o torna uma novidade característica da sociedade moderna é a mobilização de elementos irracionais e delirantes para uma política de caráter destrutivo. Apenas considerando ambas facetas deste fenômeno é que é possível combatê-lo.

Referências

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo, Editora Unesp, 2019.

ADORNO, Theodor W. Aspectos do novo extremismo de direita. São Paulo, Editora Unesp, 2020.

TROTSKY, Leon. Como esmagar o fascismo. São Paulo, Editora Autonomia Literária, 2018.

Sobre a autora

Amanda Freitas Carnaíba é mestranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) – Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)