A Teoria por detrás das ideias: Uma crítica marxista a independência do Banco Central

Por Matheus Silva

Retornou a pauta do dia no debate acadêmico e jornalístico econômico a questão da independência do Banco Central, capitaneado pelos temas das metas de inflação e a taxa de juros, Selic. Devido sobretudo a fala do presidente Lula de que o atual patamar de taxa de juros nominal de 13.75% é extremamente prejudicial ao desenvolvimento do país e aos programas sociais que o novo governo do político social-democrata do PT quer implantar no país. Por isso o texto a seguir tem a intenção de explicar qual é o embasamento teórico que está por detrás de um Banco Central independente, e como as metas de inflação e a taxa de juros Selic estão ligados ao assunto.


Os Novos-Clássicos e a Teoria do Mundo Fantástico

Os fundamentos teóricos que sustentam a proposta de independência do banco central, formalizados na lei complementar 179/2021, sancionada pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, são provenientes da Escola Novo-Clássica, também conhecida como Escola das Expectativas Racionais. Os novos-clássicos são uma escola de economia surgida nos EUA no anos 70-80, tendo como principais teóricos economistas como Robert Lucas, Robert Barro, David Gordon e Thomas Sargent. A escola foi e ainda é muito influente nos debates macroeconômicos e teve muitas influências do monetarismo de Milton Friedman.

Os novos-clássicos consideram que a economia capitalista tenderia sempre a estar ao nível de pleno emprego, com um equilíbrio geral de mercados do tipo “Walrasiano”, isto é, supondo um equilíbrio geral e perfeito de mercados, dada uma certa oferta, sempre será possível auferir um dado nível de demanda correspondente, desde que o sistema de preços não sofra intervenções do Estado e funcione livremente, ou que a intervenção deste seja mínima, no sentido de produzir o quadro jurídico/normativo necessário às transações que se estabelecem no âmbito do sector privado. Para estes economistas as flutuações do produto (e por consequência da taxa de desemprego) são transitórias, devido a choques não antecipados, ou seja, devido a informação imperfeita dos agentes econômicos. Para os novos-clássicos em última instancia, as crises econômicas ocorrem não porque o sistema capitalista possui falhas nas suas estruturas de funcionamento, mas sim porque o Estado interfere na economia.

Para justificar seus argumentos os novos-clássicos se baseiam na hipótese de expectativas racionais. Este pressuposto diz que os agentes econômicos são racionais e tomam decisões com base em expectativas, olhando para frente (forward-looking).

O pressuposto das expectativas racionais define que os agentes econômicos (aqui entendesse trabalhadores e capitalistas) detêm informações a respeito do estoque de moeda definido pelo governo, através do banco central, o que lhes permite formular expectativas de variação do estoque monetário nominal na economia. E como todo agente sabe que uma maior oferta monetária provocará inflação (importante lembrar que para os novos-clássicos assim como para os monetaristas, toda elevação na base monetária, causa inflação, o que para nós, economistas heterodoxos, é uma mentira), uma decisão do governo de ampliar a oferta monetária indica a eles que salários e preços irão aumentar. Dessa forma, os agentes se antecipam elevando preços e salários, e nada acontece com a produção e o emprego, não há alteração no produto de curto prazo, o PIB.

Assim os adeptos da teoria novo-clássica, defendem que, quando as expectativas da taxa de inflação são confirmadas, a taxa corrente de desemprego será sempre igual à taxa natural (consideram eles também que as economias possuem um nível dado de emprego para certo estoque corrente de capital que aquela economia consegue produzir). E que uma elevação na oferta de moeda na economia pelo Banco Central provoca somente o aumento de preços, não influenciando as variáveis reais da economia. Isto significa dizer que caso o governo intervenha na economia, para reduzir o desemprego por exemplo, tudo que conseguira fazer é elevar o nível de inflação.

Nesse modelo teórico, os agentes erram em suas expectativas apenas devido a qualquer atitude surpresa do Banco Central que não pôde ser prevista ou antecipada. Ou seja, as expectativas dos agentes falham somente quando o governo lança uma política monetária imprevista. É, portanto, somente em condições inusitadas como essa que a política monetária pode afetar as variáveis reais da economia. Contudo tal alteração ocorreria somente no curto prazo, pois os agentes, posteriormente, modificariam suas expectativas com base no próprio erro. Porém essa atitude de levar os agentes econômicos ao erro, devido ao efeito surpresa, levaria a deslegitimidade da política monetária do Banco Central.

Vale ressaltar também que neste modelo a inflação é o resultado de uma política monetária permissiva, expansiva, voltada para a obtenção de uma maior taxa de emprego do que a que é compatível com o equilíbrio entre oferta e demanda. Não há espaço para inflação de custos (como a que está ocorrendo em diversos países no mundo atualmente) pois o equilíbrio de mercado garante que os agentes econômicos (trabalhadores e capitalistas) estarão sempre satisfeitos com os preços que recebem de seus bens e serviços. Assim a inflação só pode ter sua origem fora do setor privado, ou seja, no setor público, o governo.

Assim sendo, para os economistas liberais da escola novo-clássica a política monetária deve ter como compromisso único garantir inflação constante e baixa.

Daí a defesa de um Banco Central independente, pois do contrário, a instituição poderia ser capturada por interesses políticos populistas que causariam vieses inflacionários na economia.

Sobre o BC e as Metas de inflação

O Banco Central do Brasil, criado em 1964, atualmente é uma autarquia vinculada ao ministério da fazenda, e, portanto, subordinada ao poder executivo. Dentre seus principais objetivos estão o controle da estabilidade de preços, o zelo pela estabilidade do sistema financeiro e o fomento ao pleno emprego. Dentre outras importantes atribuições do Bacen estão a de banqueiro do governo, banco dos bancos, supervisor do sistema financeiro e executor da política monetária e cambial assim como depositário das reservas internacionais.

Em 1999 o Bacen adotou o sistema de metas de inflação, onde através do Conselho Monetário Nacional (CMN), o Bacen estipula a meta de inflação que devera ser cumprida, tendo como referência o IPCA cheio, com o uso da taxa de juros básica de curto prazo, a SELIC.

A meta de inflação é calculada tendo por base as expectativas de mercado com relação ao patamar esperado para inflação nos próximos meses, e este levantamento é feito pelo boletim Focus.

Em essência o sistema de metas é algo benéfico a economia, pois funciona como um sistema que reduz as incertezas de mercado dos agentes. evidências empíricas demonstram que os países que implantaram o regime de metas de inflação obtiveram sucesso no combate ao processo inflacionário e conseguiram avançar no sentido de manter a estabilidade de preços, como foi o caso da Nova Zelândia, primeiro país a adotar o sistema.

O anúncio das metas de inflação eleva o grau de transparência da política monetária, o que possibilita os agentes econômicos a acompanharem as ações do Banco Central de forma mais acertiva.

Contudo a obsessão incondicional na estabilidade da inflação pode implicar excesso de volatilidade nas flutuações do produto, sobretudo devido ao trade-off de curto prazo descrito na curva de Phillips entre inflação e desemprego. Nesse sentido, a fixação de uma meta inflacionária muito restrita pode gerar elevações das taxas de juros e, portanto, elevações do gap entre o produto efetivo (aquilo que o país está produzindo de PIB no tempo corrente) e o produto potencial (aquilo que o país é capaz de produzir dado seu estoque de capital e trabalho) que não sejam positivas do ponto de vista social, acabando por agravar o desemprego.

Um Olhar Crítico

Companheiros, a partir do exposto acima, podemos elaborar uma série de críticas, sobre o debate em si e sobre a defesa do Bacen em manter a taxa de juros na atual conjuntura econômica em tão elevado patamar.

Ao longo dos últimos anos no Brasil, vimos decisões de cunho político serem vendidas como estritamente técnicas, este discurso por si só possui intenções políticas ideológicas bastante profundas, mas por não serem populares, precisam ser transvestidas de um belo arcabouço “técnico”, e que nem mesmo é tão robusto o quanto quer parecer.

Analisando a teoria econômica novo-clássica, que sustenta a defesa da independência política do Bacen com relação a democracia, pois é disso que se trata, podemos afirmar com clareza, que esta teoria é baseada em um mundo fantástico que não existe em lugar algum.

O Bacen sozinho não possui controle total sobre a taxa de inflação no país, e mesmo se tivesse, apenas com uso de instrumentos de política monetária, como a taxa de juros, não seria capaz de fazê-lo, pois a inflação, diferente do que os novos-clássicos defendem, não é um fenômeno estritamente monetário.

No mesmo sentido, do mundo da fantasia, onde o sistema funciona perfeitamente, é inverídico que o sistema de preços possui a flexibilidade necessário para que não apenas os preços e os salários nominais de toda a economia sejam fixados e reajustados somente pelo setor privado, assim como os capitalistas usem somente as ações do Banco Central como referência para marcação de preços (isso não aconteceria nem mesmo se o Brasil fosse uma ilha isolada do resto do mundo).  Os mercados são imperfeitos e essa é uma dura realidade que os ortodoxos precisam aceitar. Os preços não são totalmente flexíveis nem no curto e nem mesmo no longo prazo, afinal os trabalhadores não largam seus empregos, por salários reais melhores, quando o preço da cesta básica sobe.

No mundo real, os salários são fixados com negociações salariais entre firmas e sindicatos. Sendo que as próprias empresas firmam preços em tempos diferentes no tempo criando cotidianamente situações de desequilíbrio de preços, isso acontece porque ao contrário do mundo fantástico, no mundo real não existe concorrência perfeita e sim imperfeita.

Dado esse contraponto teórico, precisamos agora salientar que esta independência do banco central não é uma independência completa para ambos os lados, tanto trabalhadores quanto capitalistas, não, esta é uma independência do Banco Central em relação a democracia (burguesa), brasileira como um todo, isso se configura como um rapto do Bacen pelo mercado financeiro, que ao optar por manter taxas de juros nominais de 13.75% a.a, e uma taxa de juros real de 7.5%, a maior do planeta, permite o aceleramento da morte da própria indústria nacional, indústria esta que em tese, o setor financeiro deveria ser responsável por financiar. É o mercado jogando contra a própria indústria em troca de um tostão a mais no bolso.

Sobre as metas de inflação podemos afirmar de que embora seja um bom sistema de estabilização de expectativas na economia, da forma que se configura hoje, ele possui vieses de formação muito claros: (1) Não existe uma clara separação entre a instituição responsável pela fixação das metas inflacionárias (CMN) e a instituição responsável pela sua obtenção (BC), isso ocorre porque o presidente do Banco Central do Brasil tem poder de voto no Conselho Monetário Nacional. (2) O regime de metas de inflação utiliza o índice cheio do IPCA em seu cálculo, com isso bens e serviços mais suscetíveis a choques de oferta fazem o índice e por consequência as metas, variar muito, o sistema dessa forma se torna contraproducente, pois o Copom irá ser obrigado a elevar a taxa de juros para controlar o processo inflacionário mesmo quando não haja relação com a expansão da demanda agregada, reduzindo o ritmo de crescimento da economia. (3) E mais importante, a decisão de fixação da taxa de juros é influenciada pelas opiniões vigentes de agentes do mercado financeiro a respeito do quanto eles esperam que será a inflação futura, dessa maneira, cria-se um mecanismo no qual o sistema financeiro pode influenciar a decisão do Banco Central a respeito da fixação da taxa de juros, pois, se os bancos entrarem em acordo entre si, eles podem forçar um aumento da taxa de juros somente por intermédio de uma revisão para cima de suas expectativas de inflação.

No programa do Roda Vida em 13/02/2023, o senhor atual presidente do Bacen, Roberto Campos Neto (neto de um dos grandes nomes do liberalismo nacional, Roberto Campos), argumentou que a independência do Bacen também visa uma melhoria da agenda social do banco com relação a sociedade.

Camaradas isso é uma completa mentira a classe trabalhadora, se isso fosse verdade o senhor Roberto Campos Neto nos diria então quais são as metas do Bacen para os próximos anos para alcançar o pleno emprego, pois este sim é algo de interesse imediato da nossa classe, não manter metas de inflação totalmente irrealistas e que nem sequer foram alcançadas pelo BC nos dois últimos anos.

Além do mais a credibilidade é ganha com o cumprimento da meta, seja esta qual for (a depender da conjuntura). A fixação de metas muito baixas não contribui necessariamente para uma melhora da credibilidade do BC. Seu único efeito é induzir o Copom a promover políticas monetárias austeras, reduzindo as possibilidades de expansão do produto e do emprego no Brasil.

O que Roberto Campos Neto não quis dizer em rede nacional, pois não pegaria bem para sua imagem, e a do mercado, é que o desemprego no sistema capitalista atua como um mecanismo disciplinador da classe trabalhadora, e que é de maior interesse do Bacen prezar pela estabilidade dos preços das ações negociadas em Bolsa pelos grandes capitais nacionais e internacionais, para evitar grandes variações nos lucros de grandes acionistas do que alcançar o pleno emprego.

Companheiros o que está sendo defendido, não é um Bacen independente, mas sim um quarto poder na república, um poder este que esteja alinhado aos interesses do mercado financeiro, seja qualquer for o governo que chegue ao poder.

Caso estivessem preocupados com o povo brasileiro, por exemplo, implementariam com maior rigor um sistema de controle de capitais no Brasil, pois o grande fluxo de capitais externos, em sua maioria, de curto prazo (especulativos), gera efeitos graves para a economia do país, como apreciação acelerada da taxa de câmbio, elevação da taxa de juros e aumento da dívida pública.

Por fim companheiros, caso o Bacen estivesse mesmo preocupado com uma agenda social no Brasil, ele incluiria em suas pesquisa, Focus, consultas não somente a classe capitalista mas também a classe trabalhadora, sobre quais devem ser os direcionamentos da política monetária, e mais, entenderia que para alcançar metas macroeconômicas e que levem ao desenvolvimento nacional, com não apenas estabilidade de preços mas também redução do desemprego, é necessário uma boa coordenação entres as políticas fiscal e monetária.


Referências:

CARVALHO, Carlos Eduardo; OLIVEIRA, Giuliano Contento de; MONTEIRO, Marcelo Balloti. O Banco Central do Brasil: Institucionalidade, Relações com o Estado e com a sociedade civil, autonomia e controle democrático. Ipea, Rio de Janeiro, p.6-54, 2010.

CURADO, Marcelo Luiz; OREIRO, José Luis. Metas de inflação: uma avaliação do caso brasileiro. Indicadores Econômicos FEE, v. 33, n. 2, p. 127-146, 2005.

DONÁRIO, Arlindo Alegre; SANTOS, Ricardo Borges dos. Novos clássicos. As expectativas racionais e a Escola dos Ciclos Reais de Negócios. 2017.

Lemes, A. C. C., Morais, G. R., & Nunes, V. Q. (2019). Autonomia do Banco Central. O Eco da Graduação, 4(2), 29-29.

PAULA, Luiz F. de; OREIRO, José L.; SILVA, G. J. Fluxos e controle de capitais no Brasil: avaliação e proposição de política. Agenda Brasil: políticas econômicas para o crescimento com estabilidade de preços. Barueri/SP: Editora Manole, 2003.

DE PAULA, Luiz Fernando Rodrigues. A questão da autonomia do banco central: uma visão alternativa. Indicadores Econômicos FEE, v. 32, n. 1, p. 253-264, 2004.

TORRES, Ernani; MARTINS, N. O projeto de autonomia do Banco Central: independência dos políticos ou da democracia. Le Monde Diplomatique Brasil, Observatório da Economia Contemporânea. Acessado em https://diplomatique. org. br/o-projeto-de-autonomia-do-banco-central-independencia-dos-politicos-ou-da-democracia, 2019.

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