Por Jaqueline Uzai Tavares
Parte I: a política
Uma luta feminista que realmente liberte todas as mulheres trabalhadoras passa pela tomada de assalto de tudo que lhes é negado – e por duros questionamentos à algumas verdades dominantes no movimento feminista atual.
“As mulheres chegaram sob a bandeira socialista sem a ajuda dos homens, muitas vezes mesmo contra a vontade dos homens; é mesmo devido ao fato de que elas mesmas, em certos casos, foram irresistivelmente levadas para lá contra sua vontade, simplesmente por uma percepção clara da situação econômica. Mas agora elas estão sob essa bandeira, e estarão sob ela! Lutarão sob ela para sua emancipação, para seu reconhecimento de igualdade de direitos humanos!” ¡Por la liberación de la Mujer!, Clara Zetkin, 1889
Quais são os caminhos que podem levar a mulher trabalhadora à sua libertação?
A luta pelos direitos das mulheres e pela superação da opressão tem ecoado cada vez mais alto e cada vez mais longe. Mais e mais mulheres têm refletido sobre sua condição e se voltado ao feminismo como uma resposta para resolução de suas questões. Isso acontece apesar dos esforços contrários da crescente onda reacionária que temos visto no último período, que demoniza os movimentos sociais e as pautas anti opressão.
Para além do crescimento, porém, o que exatamente o movimento de mulheres trabalhadoras deve fazer para ter sucesso na sua emancipação é uma pergunta mais complicada. As diferentes respostas a essa pergunta depende de quem se questiona, quais classes cada uma dessas partes do movimento feminista representa, qual a sua leitura sobre as origens da sociedade patriarcal e como as mulheres devem reagir à ela.
Quais movimentos feministas existem, o que e quem representam, é uma questão complexa, que não vai ser completamente respondida aqui. Precisamos, porém, de uma mínima caracterização inicial, para não corrermos o risco de trabalhar com uma “mulher abstrata” – que via de regra deságua em perspectiva burguesa e branca do que é a opressão sobre a mulher.
Partimos aqui, portanto, da perspectiva da mulher trabalhadora, o perfil da maioria das mulheres do mundo. Não da dona do banco, não da celebridade da televisão, não da dona de casa cheia de empregados. Partimos da mulher que não tem nada a perder, não tem fortuna, status e grande poder político, que é explorada dentro de casa pelo trabalho doméstico e na rua pelo trabalho mal pago. Que trabalha nas lojas, nos mercados, nas escolas, nos hospitais, nas fábricas, nos escritórios, nas lavouras, nas casas alheias e na sua própria casa. Que sai de casa às 5h da manhã, pega ônibus lotado pra ir e pra voltar para casa, e quando chega ainda tem que limpar, cozinhar, cuidar. Daquela que, no caso brasileiro, é na maioria das vezes negra, e que sofre com a tripla opressão do seu gênero, sua classe e sua cor.
A luta por protagonismo, empoderamento, representatividade, valorização da feminilidade, todas essas pautas abstratas, nada disso interessa. Essas bandeiras, levantadas na defesa dos interesses de mulheres que lutam pela conquista de suas migalhas pequeno- burguesas, precisam ser combatidas. São falsas bandeiras, falsas conquistas, que tiram do movimento seu potencial revolucionário e distraem a luta das questões fundamentais.
Esses braços do movimento tratam de problemas que são, sim, consequência do machismo, mas não são a raiz do problema. A pouca presença de mulheres na televisão, ou em posições de direção em empresas, por exemplo, são reflexo desse machismo, mas não são o maior problema enfrentado pelas mulheres trabalhadoras. Nem é a solução desse problema que fortalecerá a luta feminista e sua busca por libertação e igualdade. Não é possível que todas mulheres sejam libertadas com a perspectiva de se tornarem patroas burguesas, porque as patroas burguesas retiram o seu poder da exploração dos trabalhadores e trabalhadoras. Para esses últimos, que compõem a maioria do mundo, a libertação não vem do direito de explorar, mas do fim da exploração.
Tomando um outro um exemplo, a crítica à desvalorização do que é tido como feminino é uma preocupação válida sobre o que valorizamos ou não na nossa sociedade, mas não passa pela importante pergunta de quem define o que é feminino e masculino e porquê. A grande questão não é porque gostos de menina são desvalorizados e coisa de homem são tidas como boas, mas sim quem definiu que mulher gosta de cuidar da casa, de maquiagem e de gentileza, enquanto homens preferem aventuras, videogames e violência – e quais são as consequências políticas de tudo isso.
Esse diferente nível de atenção às diferentes pautas parte dos interesses de classe que são defendidos por frações do movimento feminista. Se o maior problema enfrentado por uma mulher pequeno-burguesa, por exemplo, é que ela se sente que seus gostos são rechaçados pela sociedade e que não existem mulheres superheroínas suficientes no cinema, ela provavelmente dará pouca atenção à gravidez na adolescência, à violência doméstica, à miséria, ao casamento infantil de meninas e à falta de acesso a educação formal – problemas que assolam, principalmente, mulheres pobres. Ao mesmo tempo, a perspectiva burguesa não consegue perceber a profundidade dos fenômenos – o papel da construção de padrões de gênero na submissão da mulher, por exemplo, ou o porquê de termos poucas mulheres nos espaços de poder burgueses – e foca suas atenções na mitigação imediata de questões isoladas.
Isso não significa que as mulheres de classe média, pequeno-burguesas ou mesmo burguesas não sejam de alguma forma oprimidas pelo machismo, mas a escala da violência é menor. Ao mesmo tempo, se tivermos como horizonte a libertação de todas as mulheres, abarcando todos os problemas sofridos por aquelas mais oprimidas, isso incluirá também essas outras mulheres – se elas abdicarem do próprio privilégio de classe a favor da libertação de todas as mulheres. Não existe fim do machismo enquanto uma mulher foi escrava das outras.
Estamos, então, partindo da perspectiva de um grupo de mulheres trabalhadoras profundamente oprimidas e exploradas, que graças à sociedade patriarcal, tem pouco acesso à educação, à política, ao direito sobre o próprio corpo e ao destino da própria vida. Essas são condições que pioram conforme descemos na pirâmide social, mas nunca desaparecem plenamente, mesmo quando subimos. Isso coloca para o movimento feminista classista um desafio: trazer e preparar a luta de classes aquelas as quais tudo é vetado, inclusive a própria perspectiva de luta.
Essa é uma contradição colocada para toda a classe trabalhadora – como podem lutar pela sua emancipação aqueles que não têm direito à luta, mas justamente por isso tem sede de liberdade? Como pessoas que trabalham, estudam, perdem horas de sua vida no transporte público, em longas jornadas exploradoras, como podem achar tempo e disposição para se organizar, se educar e atuar politicamente? No caso das mulheres, ainda, como elas podem atuar politicamente pela sua emancipação justamente se a sociedade patriarcal as isola e as afasta, de todas as formas possíveis, do poder?
A resposta para essa questão exige que os movimentos sociais e os partidos políticos intervenham ativamente para reverter o peso da opressão sobre a capacidade da mulher para militar pela sua própria libertação. Toda a política, a formação, a organização do trabalho militante deve ter no horizonte essa subversão, porque apenas com essa metade da humanidade mobilizada teremos possibilidade de vencer.
O fim do capitalismo e do patriarcado é pré-condição para a libertação da mulher trabalhadora, ao mesmo tempo que a participação da mulher trabalhadora é pré-condição para construção de uma luta revolucionária capaz de derrubar o capitalismo e o patriarcado. Esse movimento demanda – ainda sob o domínio capitalista e patriarcal – que tenhamos condição de garantir, como movimento feminista e revolucionário, o acesso das mulheres às armas que possibilitam a participação e a vitória na luta política.
Esse é o primeiro texto de uma série que buscará iniciar, de forma aberta, um processo de disputa ideológica que coloque no horizonte tarefas para o movimento de mulheres que hoje são negligenciadas ou mesmo diretamente desprezadas pela maioria do feminismo. O objetivo é trazer algumas provocações sobre um conjunto de armas fundamentais à luta de classes que historicamente têm sido negadas às mulheres, e que recentemente tem tido sua importância questionada pelo movimento feminista, justamente por terem sido associadas ao mundo masculino.
Essa leitura negativa não entende que elas são vetadas às mulheres justamente pelo potencial emancipador que trazem. Uma valorização abstrata de seus opostos e a sua vinculação essencialista a uma ideia vaga e ahistórica de feminilidade não muda a realidade de que são elas que dominam o mundo – e enquanto as mulheres não as reconhecerem como fundamentais e não buscarem alcançá-las na própria construção do movimento revolucionário, estamos fadadas ao fracasso.
São essas armas: a política, o saber científico e a violência revolucionária. O acesso a essas armas não é um fim em si mesmo, um objetivo fechado, mas caminhos que permitem às mulheres uma maior e mais efetiva participação política. Isso deve ser pensado como um movimento coletivo que mobilize as mulheres de maneira ampla pelo acesso a essas ferramentas, o pleno acesso.
Não basta, assim, que quanto ao saber científico, pensemos no acesso à educação formal, embora ela seja parte disso – é preciso definir esse saber científico, como ele se constrói, onde ele está e como as mulheres são socializadas em relação a ele, e o papel político desse saber.
Não se trata ainda, de uma conquista individual das mulheres, que se contente em exaltar louváveis exceções. Essas figuras, como as que compõem a capa desse texto, podem e devem nos servir de inspiração, mas isso não é o suficiente: é preciso que o acesso a essas armas e o potencial de libertação política que ele traz deve algo de amplo acesso a todas as mulheres trabalhadoras.
Todo o aparato de construção da feminilidade que oprime a mulher não se resume ao veto das armas aqui colocadas, nem mesmo são essas ferramentas as únicas na luta, tampouco esgotaremos a discussão sobre cada uma delas. Esse texto é uma primeira provocação, um apelo desesperado para pararmos de aceitar e reiterar que a voz, a razão e força nos são estranhas, para pararmos de cobrir as grades da nossa jaula de veludo, na esperança que isso nos liberte.
Vale apontar, por último, que a necessidade e a dificuldade do acesso a esses recursos não é exclusiva das mulheres. Esse é um problema que afeta a classe trabalhadora em geral, principalmente grupos oprimidos. Nesses têm ocorrido recentemente também o movimento de inversão simbólica criticado acima. Mas para que esse texto não fique genérico demais, e para não colocarmos as opressões e as formas como se relacionam com esse temas em um mesmo grande saco, o foco será no movimento de mulheres. A própria discussão sobre cada uma das chamadas armas vai ser desmembrada ao longo dos textos, para que possamos dar a cada uma delas a atenção necessária.
Vamos à primeira.
E às mulheres, a política
A primeira das armas é o espaço da ampla política dos espaços públicos: os sindicatos, os partidos, os movimentos sociais, os coletivos, as associações, as ruas, todos os locais onde se debate e se constrói o que há de central na política revolucionária e popular.
Isso não pode se restringir a espaços “tradicionalmente femininos”, pequenos nichos em que o Movimento Feminista floresce com mais facilidade. Precisamos de mulheres trabalhadoras em todos os espaços, principalmente naqueles que tradicionalmente lhes é negado – entendendo que esses são negados aos oprimidos justamente pelo potencial emancipador que possuem.
O sindicato e o partido político são dois casos exemplares desse tipo de espaço. Ambos dominados por homens e entendidos como tradicionalmente masculinos, muitas vezes hostis às mulheres, mas fundamentais na história da organização da classe. Os sindicatos são os locais que organizam as lutas das categorias, que trazem avanços concretos, que fortalecem os trabalhadores contra a fúria e exploração dos patrões, que muitas vezes são o primeiro contato desses com a mobilização política e que permitem aos próprios trabalhadores se entenderem como trabalhadores.
Pensemos, por exemplo, o efeito que um sindicato das trabalhadoras domésticas massificado, incluindo trabalhadoras registradas e informais, pode ter para a conscientização e para a conquista dos direitos da categoria. Permitiria a essas mulheres conhecer de forma mais sistemática as colegas de profissão, entender o problemas centrais da categoria, aproximar as trabalhadoras, organizar suas demandas, chamar greves na busca por direitos, promover educação política, criar estruturas de apoio e solidariedade, enfim, florescer o potencial de mobilização que a categoria tem e que fica represado pela falta de organização em ampla escala.
Em uma categoria em que a maioria são mulheres, a desumanização promovida pela opressão de raça e gênero é parte importante da hiper exploração a que essas trabalhadoras são submetidas, mas a situação imediata do trabalho é uma mediação importante que deve ser mobilizada também, seja a nível de categoria de trabalho, seja como parte da classe trabalhadora.
Pensemos, em um outro exemplo, no sindicato de uma categoria em que a maioria dos trabalhadores são homens, como a construção civil ou os metalúrgicos. A participação da minoria feminina da categoria no sindicato e em sua direção permitiria essas mulheres pautar as discussões em curso, direcionar os trabalhos, inserir as preocupações da minoria feminina oprimida entre os trabalhadores e mesmo atuar para reverter a baixa presença das mulheres na profissão. Essa seria uma atuação difícil e cheia de contradições, mas permitiria a essas mulheres trabalhadoras a possibilidade de uma resistência e combate à violência de gênero e à exploração dos patrões que não possuiriam se não estivessem organizadas.
O Partido político, por outro lado, é o espaço que congrega, unifica e sintetiza as mais amplas lutas, que permite que os trabalhadores se entendam como parte de uma única classe, para além de sua profissão, localidade, gênero e raça. Que fomenta debates centrais e tem maior capacidade de mobilização do todo da classe. Onde, portanto, é fundamental a participação de grupos oprimidos, para que esses sejam parte da construção integral da luta por uma nova sociedade como um todo.
Alguns podem dizer que esse são espaços geralmente hostis à mulheres, e realmente são. São espaços dominados por homens, que ao longo da história foram excludentes às mulheres. São locais em que geralmente encontramos poucas mulheres presentes, e menos mulheres ainda participantes. Não são locais onde a presença das mulheres é incentivada, nem a partir de fora, nem a partir de dentro.
A falta de incentivo à presença das mulheres nesses espaços vem da sua própria criação e socialização. Onde vemos estímulos às mulheres que se engajem em debates, que se mobilizem politicamente, que entrem em discussões polêmicas, que leiam sobre política? Das características e imagens que o pensamento burguês associa à boa mulher, não há grandes oradoras ou polemistas, alguém que discorde, que rebata, que conduza, que incomode. Mesmo nos círculos mais progressistas, o ideal de feminilidade traz uma mulher insegura, obsequiosa, gentil, de uma inteligência pacífica e pouco ameaçadora.
A participação nesses espaços de ampla política são dominados por comportamentos completamente diferentes: pela polêmica, pela expansividade, pela disputa, pela confiança nas próprias posições, que se permite tentar e errar, para além de um conjunto de habilidades e posturas específicas que mulheres, justamente por serem excluídas e afastadas desses locais, não costumam desenvolver. Isso gera um ciclo, em que a não participação política das mulheres não as forma, as torna inseguras e constrange a própria participação.
É claro que essa hostilidade não é apenas um acidente formativo, um ciclo retroalimentado inocente, sem responsáveis. Se as mulheres nesse ciclo têm poucas formas de quebrá-lo, os homens que dominam esses espaços têm os meios, mas não têm interesse nisso – ao menos que se encontrem em um altíssimo (e para os padrões de hoje, quase utópico) grau de consciência sobre a opressão de gênero.
O conjunto político, o partido, o sindicato, o movimento social, o campo político, se não agem ativamente por reverter esses padrões de comportamento político de cada gênero, os reafirmam, os naturalizam, transformando problemas gestados pela própria condição de opressão na essência de cada um, responsabilizando os oprimidos individualmente pela suas dificuldades e se abstendo do dever de auxiliar, coletivamente, na sua superação.
Para quebrar esse ciclo, o movimento dos trabalhadores deve ter consciência dessa diferença e trabalhar ativamente pela sua reversão. Isso vai desde a dura crítica de camaradas que fazem uso ativo da intimidação das mulheres nesses espaços à formação política dessas mulheres de forma a desenvolver essas habilidades e comportamentos tidos como “masculinos” e que são, na realidade, habilidade política.
Ao mesmo tempo, o movimento feminista classista deve ser capaz de fomentar e preparar as mulheres para resistir e combater essa violência de gênero nesses espaços de grande importância política para a organzização da classe trabalhadora, mas ainda recheados de contradições. Frequentemente quando a discussão sobre a hostilidade dos espaços políticos às mulheres é trazida à tona, ela aparece apenas em forma de denúncia, mas não de resolução e combate. Partidos, grupos, sindicatos são apontados como machistas, sem que se coloquem as perguntas: esses espaços são importantes? É relevante para a libertação das mulheres e para construção do próprio movimento popular que elas construam esses espaços? E se sim, como fazemos para superar o machismo?
Não se trata de forma alguma de desprezar a denúncia, as críticas, os desabafos, mas de dar um sentido político de resolução dos problemas apresentados. Muitas vezes essas denúncias são já o fim da linha, e aparecem ou como resultado de alguém que já desistiu dessa disputa, ou que não se propôs a fazê-la, por ver o machismo desses espaços como um problema sem solução.
Essa postura meramente denuncista recai em alguns erros. Em primeiro lugar, não compreende o machismo como fenômeno generalizado, que é instrumentalizado em alguns lugares – como espaços políticos – como uma forma de reiterar a exclusão das mulheres e torná-las cada vez mais impotentes. Se as mulheres são marginalizadas da chamada “política tradicional” isso não torna esse espaço irrelevante; pelo contrário, elas são justamente marginalizadas porque o potencial emancipador de mulheres organizadas é uma ameaça latente.
Um movimento feminista revolucionário é uma ameaça tanto ao capitalismo patriarcal, quanto para os companheiros homens de luta que, ilusoriamente, creem que a opressão da mulher lhe traz algum tipo de vantagem, e ainda pela hegemonia capitalista sobre o próprio feminismo. Os primeiros fazem dessa instrumentalização do machismo uma ferramenta de subjugação de companheiras mulheres, mantendo seu senso de superioridade e dominação – uma dominação parcial e ilusória, porque ao cabo todos são escravos do capital. A burguesia luta para manter as mulheres desmobilizadas para reduzir o número de participantes nos partidos e movimentos que verdadeiramente lhes oferecem resistência. Por fim, se alimenta da desmobilização o próprio movimento feminista liberal, radical e reacionário, que afasta as mulheres de perspectivas revolucionárias do feminismo e justificativa a continuidade da sua existência, um movimento que se limita a denúncia eterna do machismo sem pensar caminhos efetivos para a sua extinção.
O segundo erro dessa perspectiva é não compreender que o grau de opressão de organizações da classe trabalhadora não é dado desde o princípio, e que a possibilidade de combater essas violências depende das próprias táticas adotadas pelo grupo oprimido. Isso não significa dizer de forma alguma que a violência seria culpa do oprimido, mas que existem diferentes táticas e estratégias melhores ou piores que o movimento pode adotar para resistir e combater a opressão.
Pensemos, por exemplo, que é muito mais difícil para uma organização da classe trabalhadora perpetuar comportamentos opressivos se suas fileiras são compostas por um perfil social variado em termos de gênero, sexualidade, raça e origem social. Uma mulher sofrendo machismo em um espaço político – tendo suas posições e orientações sistematicamente questionadas, por exemplo – está muito mais vulnerável se o fizer em um espaço em que é a única mulher do que se for uma entre várias – ainda que essas várias não sejam necessariamente uma maioria. Ou ainda, é muito mais provável que um programa partidário contemple as demandas de grupos oprimidos se esses forem importantes formuladores da sua política, formuladores ativos, formados, relevantes politicamente, não apenas tokens.
Para que essa maioria socialmente diversa se construa, é preciso semear no seio do movimento feminista a valorização da disputa política coletiva, em substituição ao resignação individual. É preciso fazer com que as mulheres não só ocupem espaços de menino, como disputem a política desses espaços, não só não se retirando diante do machismo, mas expurgando-no. E isso não se deve porque o combate ao machismo é coisa de mulher, ou porque nós devemos aceitar a violência, ou porque queremos defender partido ou movimento x ou y em abstrato, mas porque esses são espaços de poder fundamentais que não podemos nos dar ao luxo de não ocupar. Porque a organização coletiva da classe nos dá poderes que não podemos ter individualmente. Porque temos importantes contribuições a fazer, questões a colocar, perguntas a responder. Porque a revolução não se construirá sem o braço das mulheres, e se os machistas não gostarem, eles que saiam.
A construção desse espírito de disputa deve ser feita tanto dentro quanto fora da organização, internamente prevenindo, corrigindo e (nos casos mais graves) punindo comportamentos machistas, além de fomentar políticas da reversão e padrões de gênero em todas as esferas da militância.
Externamente, passa por combater a imagem estereotipada da política (sobretudo da política revolucionária e comunista) como um “bando de homem branco”, uma visão simplificada e rasa que, por mais que tenha uma preocupação válida quanto a ampliação do perfil social presente nas organizações, acaba por reiterar a opressão ao apagar completamente a presença e relevâncias dos quadros oprimidos das organizações. Passa, ainda, por travar disputas abertas com outras vertentes do movimento anti opressão, elevando e sofisticando os debates, trazendo críticas e propostas, apontando os limites de diferentes abordagens sem ter medo de ser acusada de “trair a causa”, “fragmentar o movimento” ou “passar pano pra homem”. Se todo o movimento revolucionário tem direito à polêmica, porque os grupos oprimidos devem se contentar com uma unidade artificial, que resume sua própria posição política à condição de opressão que sofrem? Nós não somos as violências que fazem conosco. Nós reagimos, agimos, pensamos. Isso não significa que precisamos pensar igual.
Para o fomento dessa polêmica, o desenvolvimento dessas posições e o avanço do movimento feminista revolucionário, precisamos aproximar as mulheres dos espaços públicos e políticos, de maneira generalizada. Precisamos de mães, de trabalhadoras, de jovens estudantes, de senhoras aposentadas frequentando sindicatos, associações de bairros, partidos políticos, coletivos culturais, espaços de debate e formação política, colocando para essas mulheres, em todas as fases da vida, que os espaços públicos são também seu direito e dever.
Para tal, essas organizações políticas devem desenvolver um amplo trabalho de agitação, propaganda e recrutamento entre essas mulheres, revertendo o desinteresse socialmente construído que elas possam ter pela política. Deve conectar as pautas de sua luta como mulher à sua condição como trabalhadora, ajudar a expandir seus horizontes de compreensão política, atraí-las à esfera política e dar garantia para sua permanência, em locais que lhe são restritos tanto pela estrutura patriarcal capitalista como pelos resquícios dessa na organização da própria esquerda.
Portanto, essa tomada das mulheres do espaço público passa pela sua inserção no mercado de trabalho, mas demanda muito mais que isso. Não basta que uma mulher trabalhe, se ela não frequenta os espaços centrais que permitem a socialização e atuação política, e se o espaço doméstico, o cuidado e sustento dos filhos, da casa e do marido (quando esse ainda está presente) ainda são a principal (se não a única) preocupação da sua vida. Vale lembrar que a maioria das mulheres hoje trabalham dentro e fora de casa, mas continuam sendo minoria na maioria dos espaços políticos.
Há espaços que compõem exceções, como movimentos por moradia e coletivos. Esses são locais também fundamentais, mas a maior presença das mulheres neles (e sua ausência em outros locais) são também fruto e semente dessa divisão sexual da política, mantendo a atuação política das mulheres próximas em espaços em torno do lar e dos limites que a sociedade patriarcal as coloca. Se as lideranças femininas nesses locais, como nas ocupações, têm um grande potencial a ser fomentado, a presença de grandes quantidades de mulheres apenas nesses espaços é algo para nos preocuparmos, principalmente se considerarmos que esse tipo de local tem uma dinâmica muito particular e uma vida política excepcionalmente ativa.
O entendimento da dinâmica das famílias brasileiras, especialmente as de casais com filhos e as mães solteiras, que são a maioria dessas famílias, é um tema central para discutirmos a questão da mulher, e um estudo extenso que demanda atenção particular em outro momento. Para a presente discussão, porém, precisamos destacar, nos dois casos, a responsabilidade feminina do cuidado com o lar.
O lar como espaço de cuidado doméstico ao qual se destina a mulher é uma prisão, uma antítese do espaço público de debates e do fazer político. O reconhecimento da importância fundamental do trabalho de reprodução social feito pela mulher no lar não significa negar o papel desse trabalho e do isolamento social da esfera doméstica na construção da opressão feminina. Isso se acentua quando estamos falamos de mulheres que trabalham somente em casa, mas está presente também no caso daquelas inseridas no mercado de trabalho, uma vez que o trabalho reprodutivo, além de somar-se ao trabalho produtivo em duplas e triplas jornadas, ainda constituiu uma preocupação com um peso afetivo profundo e que configura a casa como espaço essencialmente feminino – enquanto faz da rua o espaço do homem.
É a esfera doméstica que afasta as mulheres da política, principalmente de espaços políticos ligados ao trabalho produtivo, reiterando esses como lugar de homem. Que as sobrecarrega com tarefas infinitas postas como cuidado, cuja não realização traz consigo culpa. Que as engana a acreditar que o cuidado é seu dom, seu dever e seu destino. Que as impede de se educar no mesmo nível que os homens o fazem, dificultando tanto sua educação formal quanto as mais amplas experiências que podem educá-las politicamente. Que as isola socialmente, as deixa vulneráveis a violências e as veta de conhecer o mundo.
Engels debate esse ponto em A Origem da família, da propriedade privada e do estado. A obra pode e deve ser criticada quanto aos seus erros – sobretudo ao debate sobre um suposto matriarcado primitivo, e pela simplificação cultural que muitas vezes aplica a certos povos que usa como exemplo -, mas acerta quanto ao papel do confinamento ao lar na submissão da mulher na sociedade patriarcal:
“ […] Aqui já se mostra que a libertação da mulher, sua equiparação com o homem, é e continuará impossível enquanto a mulher for excluída do trabalho social produtivo e permanecer restrita ao trabalho doméstico privado. A libertação da mulher só se torna possível no momento em que ela pode participar da produção em grande escala, ou seja, em escala social, e o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante. E isso só se tornou possível graças à grande indústria moderna, que não só admite o trabalho feminino em grande escala, mas de fato também o exige e, ademais, aspira a dissolver cada vez mais o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.” ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 150.
Cabe destacar que Engels está debatendo o nascimento da propriedade privada e, posteriormente, o momento de modernização capitalista que começa a retirar a mulher proletária de um trabalho exclusivamente doméstico. Precisamos nos atentar a isso porque, de fato, vivemos no mundo moderno. As relações produtivas se dão de forma diferente da pré-modernidade, voltar a ela não é um caminho viável, e precisamos perguntar ainda se esse mundo pré capitalista era de fato tão bom para as mulheres.
O que as narrativas anti modernas como a trazida no repercutido Calibã e a Bruxa parece esquecer-se é como a vida pré moderna (ao menos na Europa, onde se desenrola a maioria esmagadora da obra) era opressiva para mulheres. Uma sociedade dominada por uma religião profundamente patriarcal (o Cristianismo) e herdeira política de uma tradição igualmente repressiva (a Romana).
Se por um lado a produção manufatureira em casa dava à mulher um papel econômico importante, por outro as dinâmicas sociais tanto da opressão de gênero quanto da opressão de classe pré capitalistas não nos deixam enganar quanto ao caráter supostamente idílico desse passado pré moderno. Ainda mais quando adicionamos ao processo histórico a forma como o capitalismo combinou a exploração econômica da mulher trabalhadora no trabalho reprodutivo e produtivo a uma concepção de feminilidade burguesa. Ao mesmo tempo que a obriga a trabalhar nas fábricas e no próprio lar, vincula sua identidade somente ao segundo – justamente o espaço que tende a isolá-la, que não permite compreender-se como trabalhadora e que conserva os resquícios de trabalho não socializado.
O que não podemos perder de vista nesse grande parêntese é que uma vez que entendemos Feminilidade Doméstica como algo repressivo, com uma origem histórica relacionada ao próprio processo de subjugação da mulher, nosso horizonte deve ser destruí-la, torná-la obsoleta, sem recuos e sem ceder a essa naturalização. Isso significa dizer que propostas como salário para trabalho doméstico são inaceitáveis – o que fazer é meramente reforçar o confinamento ao lar, principalmente em um mundo que reforça ideologicamente o papel da mulher em casa e destina a ela os piores empregos com os menores salários no mercado de trabalho.
Se estamos debatendo propostas que sirvam de mediações enquanto o trabalho reprodutivo não é socializado e a esfera do lar como espaço de trabalho não remunerado e marcado pelo gênero não é destruída, não podemos propor mediações que reforcem essa divisão. As mediações (como propostas institucionais de semelhante implementação ao salário para trabalho doméstico) devem ser no sentido de tornar essa estrutura obsoleta, corroê-la. Trazemos alguns exemplos.
- Restaurantes, creches e lavanderias públicas, todos com preço acessível e divisão do trabalho igualitária entre homens e mulheres, de forma a socializar, remunerar, profissionalizar e reconhecer socialmente esses trabalhos.
- Legislação que implemente e obrigue o pagamento de salários em igualdade de gênero, além de melhores garantias de licença maternidade, proibição de demissão em caso ou suspeita de futura gravidez e fortalecimento generalizado dos direitos trabalhistas.
- Políticas de pleno emprego, para o combate ao desemprego entre todas as pessoas, com uma atenção particular a grupos oprimidos marginalizados do mercado de trabalho, sobretudo mulher, negros, indígenas e pessoas trans.
- Políticas de renda e assistência social universais.
- Redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais, de forma que todas as pessoas consigam ter um mínimo de tempo livre para realização de tarefas domésticas que não consigam ou não possam ser socializadas, como cuidados com a casa, cuidados complementares de crianças e idosos, para além da melhora da qualidade de vida em geral.
- Profissionalização e valorização de trabalhos ligados ao cuidado, com formação especializadas para cuidadores de idosos, de crianças, de doentes, com socialização desses cuidados em centros de tratamento e recepção equipados e saudáveis.
- Centros de ensino de jovens e adultos inclusivos e receptivos para mulheres – sobretudo para mães trabalhadoras.
- Fortalecimento de espaços de acolhimento, denúncia e combate à violência doméstica.
- Gratuidade do processo e facilitação do divórcio e combate ao casamento infantil.
- Educação sexual, facilitação ao acesso de métodos anticoncepcionais e legalização do aborto.
Essa é uma série de medidas que tornam a proposta de salário para trabalho doméstico obsoleta. Mesmo como mediação tática, essa proposta reforça a relação entre o ideal burguês do lar e a mulher. Todas as medidas acima, por outro lado, auxiliam na sua entrada no mundo da ampla política, amparando com tempo, recursos e liberdade.
Essas são propostas que podem tanto ser desenvolvidas como políticas públicas por governos burgueses hoje, a partir de projetos de lei e pressão popular, quanto desenvolvidas por organizações de esquerda, como colocadas como horizonte estratégico de plena implementação em um regime socialista.
Restaurantes populares, por exemplo, são uma iniciativa difundida no MTST, através das Cozinhas Solidárias. Já o controle dos direitos reprodutivos, como o acesso a aborto, a educação sexual e a métodos anticoncepcionais têm diferentes graus de avanços mesmo em países burgueses. Ainda, a melhora das condições de trabalho, como a redução da jornada de trabalho e a licença maternidade, são lutas históricas da classe trabalhadora em que já tivemos vitórias – e que podemos voltar a ter.
É necessária uma aproximação entre os movimentos anti opressão, o movimento popular e o movimento revolucionário, fazendo todos tomarem os problemas das mulheres também como seus, e essas se entenderem como parte da classe trabalhadora, tomando a luta revolucionária como um direito e um dever.
É preciso que se dispute entre as mulheres a própria percepção sobre a importância, as dificuldades e a participação nesses espaços políticos. A inversão política que precisa ser combatida é a naturalização do que o patriarcado considera como feminino e masculino, sem pensar porque determinadas coisas são tidas de uma forma ou de outra. A crítica ao gênero por vezes resvala nessas injustiças – como a desigualdade salarial, o machismo nos espaços políticos e a sobrecarga das mulheres – mas não consegue entender com profundidade como a desigualdade constrói a própria consciência sobre esses problemas, a própria forma que pensamos.
Mas isso é tema para o próximo texto.
Referências bibliográficas:
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