Por Ana Botner
Em 1516 é publicada a obra Utopia, do inglês Thomas More. Nela, o protagonista Rafael conta sobre sua expedição para uma ilha chamada Utopia e sobre os costumes do povo utopiano para uma versão ficcionalizada do próprio Thomas More.
Em uma conversa que se dá no livro 1 de Utopia, em que More tenta convencer Rafael que, com todo seu conhecimento, deveria servir a algum Rei, o viajante responde que não haveria o porquê de falar para aqueles que não querem ouvir. Para Rafael, era muito mais fácil que ele se corrompesse na corte do rei, do que conseguisse convencer de alguma coisa os outros homens que ali estariam.
Rafael, que passou cinco anos junto com os utopianos, ficara impressionado com a forma de organização política dos mesmos. No entanto, Rafael, após o tempo que passou com os utopianos, sabia que o modelo político que encontrou lá pareceria impossível para os homens do velho mundo: na ilha de Utopia, observara, não havia propriedade privada. E, portanto, já não tinha esperança de que alguma mudança efetiva poderia ocorrer no velho mundo até que se abolisse a propriedade privada, preferindo, assim, se abster dos assuntos públicos.
Esse dilema colocado em Utopia ainda é atual, principalmente em partidos e organizações revolucionárias: deveríamos entrar na democracia liberal e muda- lá por dentro, sendo parte ativa da estrutura governamental, ou devemos nos abster de participar dela, por correr o risco de nos corromper e perder o nosso viés revolucionário?
Não é desse dilema que irei tratar aqui, mas é interessante ver como o texto inaugural de More ainda propõe debates que são contemporâneos entre aqueles que desejam e lutam por uma mudança radical na nossa sociedade. Por aqueles que, como Rafael, também têm impulsos utópicos.
Esse “não lugar” pensado por More em 1515, em que a atividade agrícola é comum a todos e os trabalhadores têm tempo de ócio para se dedicar, por exemplo, às atividades intelectuais, é a inauguração de uma busca humana para construir e pensar esse lugar ainda-não.
Como Frederic Jameson escreveu, o texto de More é “quase que exatamente contemporâneo à maioria das inovações que parecem ter definido a modernidade”: Maquiavel e o nascimento da política moderna, a conquista do Novo Mundo, a reforma protestante de Lutero, entre outros.
Ou seja, há algo de inerentemente moderno na ideia de Utopia. Não obstante, é a época em que a ideia de uma história cíclica – pensada pelos antigos, em que a história era apenas repetição de si mesma – seria ofuscada pela ideia de uma história que está sempre progredindo, de uma humanidade que está sempre avançando para algo melhor. A Utopia seria, assim, o último degrau dessa grande escada que é o progresso humano. A escada que iria do reino da necessidade ao reino da liberdade, como colocaria Marx.
No entanto, o que experienciamos hoje é o que Enzo Traverso descreve No livro Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória, em que Traverso entende o século XXI como o tempo do “eclipse geral das utopias” (p.29), comparando-o com o começo do século XX, em que, pelo contrário, a revolução russa acendeu o desejo de emancipação em milhares de homens e mulheres ao redor do mundo – nessa época, a utopia não só parecia um horizonte viável, como parecia que estava perto.
Já na entrada no século XXI, nos deparamos não com a instauração da uma nova esperança, mas com o peso dos eventos traumáticos do século passado e a responsabilidade de não os repetir. O fascismo e o socialismo real foram vistos como dois lados da mesma moeda, regimes totalitários igualmente nocivos para a humanidade – assim, o capitalismo havia “vencido” e nos protegia dos perigos do fanatismo.
O livro de Enzo também usa a categoria de “presentismo”, um diagnóstico da relação contemporânea com o tempo, elaborado pelo historiador François Hartog. Nela, o presente substitui o futuro como categoria principal da historicidade. Desse modo, não conseguimos imaginar um futuro possível e vivemos afogados pela memória de um passado que não se supera. ‶É inevitável que um mundo sem utopias acabe olhando para trás”, diz Enzo no mesmo livro. É o colapso do tempo histórico que estava sendo inaugurado com, entre muitas outras coisas, a escrita de Utopia – o começo da era moderna, e sua visão impregnada de futurismo, agora colapsa para dar vazão a uma noção presentista do tempo histórico.
Em relação a esse mesmo tema, também temos a máxima que ficou famosa com Mark Fisher, em seu livro Realismo Capitalista: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Na página 13 do livro, Mark Fisher descreve assim o realismo capitalista:
“O realismo capitalista apresenta a si mesmo como um escudo que nos protege dos perigos resultantes de acreditar demais. A atitude de ironia distante, própria do capitalismo pós-moderno, supostamente nos imuniza contra as seduções do fanatismo – é só um pequeno preço a pagar para estarmos a salvo do terror e do totalitarismo”
O realismo capitalista, como coloca Mark Fisher no seu livro, citando uma passagem de Badiou, vence não porque tenta te convencer de que é o melhor modelo, mas, de uma forma churchilliana, te faz acreditar que todos os outros são piores. Quantas vezes escutamos que a democracia liberal é o pior regime de todos, com exceção de todos os outros?
O realismo capitalista trabalha, então, com a castração da esperança, do impulso utópico, da fé de que, ao contrário do que acreditava Margaret Thatcher, há uma alternativa.
É uma inversão completa do que estava sendo discutido, por exemplo, pelo pensador peruano José Carlos Mariátegui, em seu texto A alma matinal. Nele, Mariátegui constata que a força dos comunistas não está na sua ciência, mas em sua fé: “a história se faz por homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança super-humana”. Isso é evidente quando Mariátegui define o ser humano como um “animal metafísico”, ou seja, ele quer dizer que o homem não vive fecundamente sem alguma concepção metafísica, sem um “mito” – que para Mariátegui é o que move o homem a agir na história.
Esse texto na época atual pode parecer assustador. Afinal, como disse Mark Fisher, somos hoje levados a acreditar que só há perigos em acreditar, e o ceticismo, a distância e a ironia são os signos de uma mente saudável.
Embora eu não ache que conseguiríamos retornar para essa concepção de Mariátegui, já que é preciso olhar de maneira crítica essa necessidade de “crenças sobre-humanas”, temos que começar a pensar em como sair do buraco da descrença e da distância – há, hoje em dia, um movimento comunista crescente, apesar de estar longe do necessário para ser um protagonista do cenário político brasileiro, que já começa a desmentir o consenso de que “não há alternativas”.
Também não iremos repetir o passado – que seria só mais um sintoma do que Traverso comenta sobre o presentismo, em que somos engolidos pela memória do passado, e não conseguimos vislumbrar o futuro. Longe de ser o fim da história, com o neofascismo criando novas formas de existir no mundo contemporâneo, também o comunismo está se renovando, porém, sem negar o passado, precisamos criar novas formas de olhar o futuro, uma nova estética, e talvez, novos mitos?
BIBLIOGRAFIA
TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. [S. l.]: Editora Âyiné, 2021
FISHER, Mark. Realismo Capitalista. [S. l.]: Autonomia Literária, 2020
MORE, Thomas. Utopia. Penguin e Companhia das Letras, 2018