Por Luis Eustáquio Soares (1)
1. Preconceito e despreconceito
Existe o preconceito e há o despreconceito. Somos seres sociais. Produzimos instituições. Há instituições que estimulam e impõem preconceitos, mas também pode haver instituições que impulsionem o despreconceito. Isso só é possível se o trabalho nas e das instituições do despreconceito referendar-se no trabalho comum, no trabalho que somos fora de toda as tutelas ou sobreterminações externas à classe trabalhadora; no trabalho que produz as instituições da classe trabalhadora, que é sempre coletivo, porque nada é construído por si; é esforço humano universal.
O trabalho (bem entendido, não alienado), se não é a única, é a categoria insubstituível do despreconceito, em todos os sentidos: geopolítico, de gênero, étnicos, epistemológicos, etários. Por quê? Porque é a categoria que produz o inverso do universal por particularidades, sem perder a potência universal do despreconceito, que é infinita, desde os finitos modos de ser, os quais não podem referendar-se em suas próprias particularidades porque se assim o for é trabalho alienado. E por quê? Porque no metabolismo social da civilização do capital, a particularidade torna-se fatalmente valor de troca, mercantilizando-se e, desse modo, alienando-se do trabalho comum em sua potência comumente ascendente.
Sob o ponto de vista do capital, na história da expansão colonial, capitalista e imperialista do Ocidente, existem duas formas de universalidades impositivas, que açambarcam o trabalho comum, produzindo preconceitos e, desse modo, violências de gênero, étnica, linguística, comportamental, cultural, econômica, política.
2. O universal eurocêntrico por particularidades eurocêntricas – o primeiro
Existem dois universais por imposição, por apagamento dos povos. Explico. Se a referência for o universal eurocêntrico, por exemplo, tem-se um universal que se impõe à força, generalizando-se como padrão, em todas as dimensões da vida. Impõe um modelo: cristão, branco, homem, heterossexual, adulto, “sério”, grafocêntrico, falante de uma língua dos países europeus dominantes, como o inglês, o francês, o alemão o português, com suas prosódias aristocráticas, hierárquicas, mistificadoras.
O universal europeu centraliza-se no seu próprio mistificado rosto branco, inferiorizando todos os rostos diferentes. Como tem um vetor messiânico, relacionado ao cristianismo, impõe, sob o ponto de vista dos valores, relações maniqueístas do tipo: branco versus não branco; europeu versus não europeu, civilizado versus bárbaro, hétero versus não hétero, homem versus mulher, redimido por Deus versus culpado colonizado, legítimo e ilegítimo, céu versus inferno.
O universal eurocêntrico produziu, com guerras sem fim e saqueio dos povos, o que é possível chamar de alteridades, inferiorizando-as. A alteridade é o outro em relação a um padrão universalmente imposto. Nesse caso, é o colonizado latino-americano, africano, asiático. São as sexualidades não heterossexuais. São as diferentes étnicas do mundo, com o destaque para a negra, por ter sido objeto racista de mercantilização escravocrata.
3. O marxismo é a Europa não eurocêntrica –a ciência dos povos
É evidente que esse universal eurocêntrico é uma falácia, tornando-se a razão permanente de racismos, de machismos, de homofobia, de epistemecídios; de guerras, barbáries. Por causa disso, toda universalidade eurocêntrica é autoritária, machista, racista? Se for eurocêntrica, sim. Entretanto, não é possível ignorar que o continente europeu foi o cenário histórico de pelo menos 400 anos de lutas de classes e, assim, de trabalho comum ascendente lutando contra o arbítrio despótico e preconceituoso das oligarquias ocidentais.
A Europa abrigou, por exemplo, a Guerra dos Camponeses alemães, de 1524-1525 contra a tirania dos principados, antecipando as lutas operárias que adviriam; a Revolução Francesa de 1789, as Revoltas Populares de 1848, a Comuna de Paris. Essa é a Europa laica, secular, não-eurocêntrica. Essa foi a Europa que lutou a luta de classes contra o Antigo Regime. A Europa de Voltaire, de Diderot, de Montesquieu, de Kant, de Hegel. A Europa da lucidez, da racionalidade, da promessa de igualdade, liberdade e solidariedade, na contramão dos obscurantismos e fundamentalismos. É a Europa de Marx, Engels, de Louise Michel, Adolphe Thiers, de Rosa Luxemburgo, da classe operária que se organizou e disputou o presente e o futuro.
A propósito, o marxismo surge desse contexto laico europeu. Sua primeira questão foi: o que é a ciência? A resposta a essa pergunta é: ciência é despreconceito infinito e isso só é possível com o protagonismo da classe trabalhadora lutando a guerra de classes por sua própria emancipação relativamente a todos os arbítrios e preconceitos.
4. O universal ianquecêntrico, o segundo.
Para destituir o universal por soma de particularidades brancocêntricas do sistema de dominação europeu, o eurocêntrico, não há outro modo se não for por meio da categoria do trabalho – a luta de classes dos povos, descolonizando-se. É o trabalho dos povos se afirmando e dizendo não – em práxis emancipadora e coletiva – não às imposições das particularidades europeias, por meio da luta de classes descolonizadora.
Isso não significa de modo algum que o trabalho dos povos, para liberarem-se do eurocentrismo, engendre também novas formas de particularidades autocentradas, despóticas, autoritária? Pelo contrário. O trabalho é o universal por subtração e não por soma. Nesse caso, destituindo o universal europeu, o que advém é o universal dos povos, incluindo os europeus.
O universal por particularidades impõe-se adicionando traços. O exemplo atual é o universal por particularidades do ultraimperialismo estadunidense. Funciona assim: cristianismo puritano, norte-americano, branco, rico ( sendo rico, pode ser negro, mulher, gay…), falante do inglês, politicamente correto, necessariamente oligárquico. O universal ianquecêntrico, diferentemente do eurocêntrico, não é maniqueísta e funciona capturando alteridades, empoderando-as oligarquicamente, o que vale dizer: publicitariamente.
Não é, o seu modelo de realização, um empoderamento coletivo de alteridades. É por captura neoliberal e sionista, em que cada alteridade milita por si mesma, miniaturizando-se e oligarquizando-se neoliberalmente, razão por que deixa de ser alteridade para se afirmar como identidade reificada no interior do sistema de captura biopolítica estadunidense. Sua palavra de ordem é: divide a classe operária porque nós, alteridades produzidas violentamente pelo sistema colonial europeu, temos o direito ao nosso próprio lugar ao sol!
O universal estadunidense é um simulacro do universal por subtração; uma farsa à escala do absurdo. Tende a nos seduzir porque não funciona da mesma forma que o universal eurocêntrico, que impõe seus traços como superiores a todos os demais. O universal por adição americano, como simulacro, explora os ressentimentos produzidos na era do universal eurocêntrico.
Como assim? Funciona multiplicando particularidades reificadas, instigando-as, pela confissão de si, a se rostificarem cinematograficamente, tendo em vista o estilo americano de vida. Seu lado puritano é seu lado confessional. É um universal que exige que confessemos quem pensamos ser, no interior dos estúdios de ser estadunidenses, como, de forma antecipada, entre as duas primeiras décadas do passado século, compreendeu Franz Kafka, ao afirmar ironicamente o seguinte em seu romance América (1927): “Estimados senhores esta é uma maneira de conquistar-nos!” (KAFIA, 1965, p. 313).
Essa frase lapidar está no último capítulo de América, intitulado “O grande teatro integral de Oklahoma”; o teatro integral-mundial estadunidense, em que tudo se torna uma questão de ser atriz e ator, de ser personagem não de si mesmo, mas de ser tanto mais a sua própria particularidade quanto mais for não o sujeito de um estúdio, mas o objeto, livre, na atualidade, para escolher aonde ir na Torre de Babel da Internet, saltando de um site a outro, como um pescado que nada feliz nas malhas de uma rede; conquistando-se sem deixar de antemão de estar conquistado; como, enfim e em começo, um operário que se acha um dono de meio de produção porque pensa que seu Apple é a sua empresa de autossubjetividade.
Trata-se, pois, de uma falácia publicitária de democracia neoliberal e oligárquica: o universal por particularidades do modelo estadunidense, pois tem como referencial a cortina de fumaça das relações mercantis do sistema virtual tecnológico entrincheirado, na atualidade, no binarismo da inteligência artificial que detém a seguinte palavra de ordem: seja livre sendo preso, seja alteridade, sendo a identidade binária estadunidense, que assim se expressa: estado de trégua é igual a estado de guerra.
É o modelo em rede, que funciona por rede, por meio de tecnologias de rede; com a internet no centro, belicamente. O modelo “.com”. Ao entrar nele, nos confessamos na imanência dele. Chama-se Panóptico molecular, por meio do qual sendo in, isto é, estando na rede, somos igualmente out, isto é, somos a rede.
5. O modelo Panóptico molecular estadunidense
Zbigniew Brzezinski, um dos principais estrategistas a serviço da puritana causa estadunidense de dominação planetária, no início da década de 70 do passado século, publicou um livro com o seguinte título: “Between two ages America’s Role in the Technetronic Era” (1970), no qual, com uma clareza meridiana, como um estrategista de colonização do futuro, descrevia a atual época em que vivemos: um sistema virtual, conectável por suportes tecnológicos diversos, que estivesse sob o controle absoluto de EUA, a partir do qual colocaria a humanidade toda no bolso.
A configuração atual desse modelo, para capturar e chantagear a humanidade inteira, funciona assim: “ Confesse quem você é, seus múltiplos perfis, nas tecnologias de e em rede do contemporâneo. Te dou corda. Vai…. Conecte-me!“
Enquanto nos induz a um estímulo de liberdade, na verdade mais um simulacro, prepara as instituições mundiais que são e serão cada vez mais as que estarão na linha de frente para impor a sua dominação, a saber: o poder judiciário e o poder midiático, funcionando em parceria, como o dólar como moeda de troca e de reserva mundialmente imposta, secundado pelo Pentágono.
A indústria cultural do ultraimperialismo estadunidense é uma empresa mundial de produção/edição de rostos das particularidades estadunidenses e não estadunidenses. Do lado estadunidense funciona assim: de um lado há as particularidades redimidas, quer dizer, as alteridades capturadas vítimas do sistema eurocêntrico, empoderando-as oligarquicamente e de modo neoliberal; de outro há as identidades típicas do eurocentrismo nazificado, constituindo-se as duas versões estadunidenses de ser, em escala planetária. Evidentemente esses dois lados existem para de digladiarem, se odiarem, ocupando o lugar da luta de classes dos povos, sobretudo a luta de classes da emancipação nacional.
Existem também outro lado, com viés massificado, pseudocoletivo. É o lado propriamente neopentecostal, em que todos os rostos e tipos humanos são aceitos, desde que se tornem féis ao Deus Mórmon norte-americano, expurgando de si quaisquer formas de sexualidades não patriarcais, não monogâmicas, não heterossexuais.
Na contramão desses três lados ou modos de ser estadunidenses, editados pela indústria cultural do ultraimperialismo estadunidense, com objetivo de mundializá-las, há os povos que se recusam a se transformar em estilos ianques de ser, que resistem aos três modos de ser globalmente impostos pela indústria cultural estadunidense. Esta, não por acaso, calunia sem cessar esses povos potencialmente despreconceituosos, acusando-os de corruptos, tirânicos, despóticos, machistas, racistas, diabólicos e assim por diante.
A calúnia contra os líderes dos povos se transforma em prova USAda e abUSAda pelo sistema de justiça baseado em regras estadunidenses. Ninguém está livre disso. Ninguém, se entra na rede, e por uma razão muito simples: os controladores da rede são os que a editam como senhores da edição e podem produzir provas por simulacro e a partir delas nos condenar.
5. O universal por subtração – o terceiro, dos povos não ianquizados
Para superar esse Panóptico total da atualidade é preciso atualizar e insistir no universal por subtração. Não há outra saída. O sistema confessional, por particularidades, que domina no e o contemporâneo, é o que nos torna vulneráveis, pois tem o objetivo de nos dividir e, nos dividindo, nos condenar, quando quiser, usando os seus três lados: o de alteridades capturadas, o de identidades fascistizada, o neopentecostal pseudocoletivo.
Mas como assim, universalidade por subtração?
A universalidade por subtração, a do trabalho em sua potência ascendente, se realiza assim: não sou branco, não sou negro, não sou índio, não sou mulher, não sou gay, não sou rico, não sou pobre, não sou europeu, não sou norte-americano. Na sua subtração infinita não é o niilismo que emerge, mas o trabalho comum.
O autor deste artigo, para apresentar o argumento em tela, ecoa Alain Badiou, o filósofo francês do evento e do ser genérico; dele discordando porque parte do princípio de que o evento não está ali na esquina. Há uma guerra milenar contra os povos, assumida integralmente na atualidade por EUA; guerra híbrida, com e sem quartel contra sobretudo a soberania nacional dos povos, contra o mundo multipolar, compreendido como mundo que não mais se submente às universalidades eurocêntricas e ianquecêntricas. É por isso que a universalidade por subtração ainda não pode abandonar a racionalidade particular, em nome de uma universalidade do ser genérico; a humanidade.
Nesse contexto, uma única particularidade emerge como referência comum para todos os povos do mundo, a saber: a particularidade da afirmação da soberania nacional, de caráter popular, racionalmente consciente de que este é o front da luta dos povos na atualidade: multipolaridade contra unipolaridade arregimentada e armada até os dentes pelos dois universalismos ocidentais, sobretudo o ianquecêntrico, uma vez que o eurocêntrico se tornou vassalo do primeiro.
A guerra de classes contra os dois universais do sistema colonial, capitalista e imperialista europeu-estadunidense integrados, portanto, é inseparável da luta pela universalidade multipolar e esta é igualmente inseparável da afirmação/construção/constituição da soberania nacional-popular plena.
É fundamental, no entanto, que a universalidade multipolar dos povos, no âmbito dos países, realize um processo ininterrupto de desoligarquização real e no plano dos valores, do sistema ideológico oligarquizado e dependente, em alianças, da oligarquia-mor do Estado profundo estadunidense, com seu complexo industrial-militar-cultural-digital-farmacológico oligarquicamente beligerante.
7. A síntese dialética da soberania nacional com a universalidade multipolar
A síntese dialética da soberania nacional com a universalidade multipolar não é outra, em processo, senão esta: um mundo sem preconceitos, sem cadeias, sem neuroses, sem prostituição, para lembrar um conhecido ensaio do escritor e poeta brasileiro, Oswald de Andrade.
Um mundo da identidade terráquea, essa alteridade cosmológica, transfinita, sem redes e sem pescados!
Referência:
BRZEZINSKI, Zbigniew. Between two ages: America- role in the technetronic era. New York: The Viking Press, 1972.
KAFKA, Franz. América. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Exposição do Livro, 1965.
Notas:
(1) Luis Eustáquio Soares é Professor Titular da Universalidade Federal do Espírito Santo, autor de “Sete ensaios sobre imperialismos”, em coautoria com Luis Carlos Muñoz, de “Ultraimperialismo americano e a antropofagia matriarcal da literatura brasileira”, “A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa”, “O evangelho segundo satanás” (romance). Coordenador do NUDES – Diversidade e Descoloniazação.