Por Martin McKee e David Stuckler, via J Public Health Res, traduzido por Tatiana Hisae Kurosaki Castro e Silva
Resumo
A atual crise econômica na Europa desafiou a base do modelo econômico que atualmente prevalece em grande parte do mundo industrializado. Revelou-se um sistema que é administrado não para o benefício do povo, mas para corporações e a pequena elite que as lideram, e que é claramente insustentável na sua presente forma. No entanto, há uma consequência oculta desse sistema: uma crise crescente na área da saúde, impulsionada pela ganância de corporações cujo modelo que objetiva o lucro está falhando. Defensores da mercantilização da saúde argumentam simultaneamente que o custo de prover assistência à saúde para populações idosas é exorbitante enquanto trabalham para criar uma demanda por seus produtos de saúde entre aqueles que são essencialmente saudáveis. A saúde será a próxima bolha de investidores movida a lucro? Neste artigo, nós pedimos aos profissionais de saúde que prestem atenção aos alertas da crise econômica e, ao invés de aguardar a crise se desdobrar, atuem agora para redirecionar os sistemas de saúde, cada vez mais orientados para o mercado, para servir ao bem comum.
Palavras chaves: Crise financeira, saúde, indústria
Significância para a Saúde
Nas circunstâncias descritas nesse artigo, os profissionais de saúde pública têm o dever de se manifestar. Eles podem procurar inspiração no médico prússio Rudolf Virchow que, embora plenamente consciente do papel fundamental desempenhado por piolhos, chamou a atenção para as circunstâncias sociais e econômicas na Silésia no século 19 que permitiram a ocorrência de epidemias de tifo*. No entanto, em anos recentes, muitos profissionais de saúde pública deixaram as grandes decisões para políticos e economistas, assumindo que eles devem saber o que estavam fazendo. Mas, nós sabemos que eles não o sabem. Uma solução diferente é necessária, uma que prioriza a saúde e o bem-estar social. Profissionais de saúde pública são tão bem preparados quanto qualquer um para propô-la. Eles podem começar analisando em como eles podem mudar o que está acontecendo na saúde e, então, aplicar essas lições de forma mais ampla. Pelo menos, será um começo.
*Reilly RG, McKee M. ‘Decipio’: examinando Virchow no contexto da ‘democracia’ moderna. Public Health 2012;126:303-7.
Duas crises
Em 26 de dezembro de 1991, a bandeira soviética hasteada sobre o Kremlin foi baixada pela última vez, para ser substituída pela bandeira da recém independente Rússia. Isso simbolizou a morte do comunismo como um princípio organizador da sociedade na Europa, o fim de um experimento que foi iniciado em São Petersburgo em outubro de 1917(1). Não haveria mais nenhuma discussão séria sobre qual seria a melhor forma de organizar a sociedade, o comunismo ou o capitalismo. O comunismo foi despedaçado e o capitalismo triunfante(2). No entanto, 20 anos depois, é o sistema capitalista que parece em pedaços(3). Manifestações em massa em uma escala vista duas décadas atrás em Praga, Varsóvia e Budapeste estão sendo repetidas nas ruas de Atenas, Lisboa, Madri e Roma. A situação na Europa Ocidental apresenta um paralelo com os últimos dias do sistema comunista. Assim como, na década de 1980, as economias comunistas estagnaram, a renda real das famílias médias empregadas na Europa Ocidental mudou muito pouco desde o início da década de 1990, apesar da realidade ter sido disfarçada com a disponibilidade de crédito barato. No entanto, nenhum sistema foi sustentável. Assim como na Europa Central no final da década de 1980, quando o sistema começou a desmoronar, isso ocorreu de forma muito rápida, com políticos perdendo rapidamente o controle dos eventos. (4) (5). Em ambos os casos, as políticas que eles buscaram, falharam, frequentemente, de forma espetacular. Então, houve a tentativa de reformar o sistema por dentro. Agora, são as políticas de austeridade, promovidas como um meio de enfrentar a crise econômica, mas estão piorando muito as coisas (6). Os suicídios são um indicador chave da confiança da população em seus governantes. No entanto, os suicídios estão crescendo na Europa Ocidental também, revertendo a longa tendência de queda que durou por várias décadas(7). Assim como no período comunista, nem todos são igualmente afetados. Antes os beneficiários foram a nomenklatura, a elite do partido comunista. Agora, são os 0,001% da população que dirigem as grandes corporações, ganhando mais de 350 vezes o salário do trabalhador médio. Assim como a nomenklatura, tinham suas próprias pistas Zil[1], agora utilizam-se pistas Olímpicas separadas em Londres destinadas para eventos patrocinados usando dinheiro público. Nem sempre houve tanta dominância pela aristocracia super rica. Por boa parte do período pós-guerra, o sistema capitalista beneficiou a maioria das pessoas, assim como nos dias seguintes à Revolução Russa, o sistema comunista trouxe benefícios enormes para a sua população, introduzindo um sistema universal de saúde e expandindo a educação para alcançar alfabetização universal. Mas ambos deram muito errado. No caso do comunismo, foram as políticas assassinas adotadas por Stálin desde o final da década de 1920(8). No caso do capitalismo, foram as políticas de laissez fair adotadas por Stálin em 1980(9). O que essas mudanças sistemáticas significam para o futuro dos sistemas de saúde na Europa? Primeiro, traçamos a ascensão e queda do capitalismo na Europa e América do Norte, demonstrando como as grandes corporações no setor financeiro redefiniram o seu papel, abandonando o seu papel tradicional de prover renda para os poupadores e apoiar pequenas empresas, e assumindo o que equivale a um jogo imprudente com o dinheiro de seus acionistas e depositantes, tudo para o benefício próprio. Então, vamos refletir em como mudanças no sistema financeiro afetará a assistência à saúde. A pressão para expandir mercados deslocou-se para as necessidades humanas básicas, criando bolhas nos alimentos e habitação. Inevitavelmente quando elas estouram, investidores procuram expandir para mais mercados para obtenção de lucro. A saúde está prestes a se tornar a próxima bolha de commodities à medida que um número crescente de corporações entra nesse setor, mudando para a prestação de assistência à saúde. Como as instituições financeiras, elas estão reescrevendo as regras para o benefício próprio. Nesse caso, as corporações abandonaram o seu papel tradicional de desenvolver medicamentos que as pessoas necessitam e tratando quem está doente. E, perceberam que não é possível lucrar com o número crescente de pessoas com múltiplos distúrbios complexos então, deixaram essas pessoas para os sistemas estatais proverem o seu cuidado, enquanto reclamam sobre impostos pagos para estes sistemas ao passo que eles têm dificuldade para acomodar mais pacientes complexos e com menos recursos. Estas estão redirecionando seus esforços para persuadir aqueles, que não têm nada de errado com eles, de que realmente precisam de cuidados muito mais diretos e previsíveis. Nós concluímos com uma proposta de ativismo para desafiar as forças que se colocam para saquear os sistemas de saúde pública para seu ganho pessoal com grande custo para todos nós.
O triunfo do capitalismo
Hoje, nos centros econômicos do mundo como o Wall Street e a Cidade de Londres, regulações que antes controlavam os mercados financeiros são vistas como obsoletos. Avanços na computação agora permitem bilhões de dólares em ações sejam negociadas em milissegundos. Em 1980, novos tipos de traders foram recrutados, com diplomas em matemática, física e engenharia, todos treinados nas mais obscuras áreas da teoria matemática.
Os mercados financeiros mudaram profundamente. A racionalidade original do mercado de ações era para angariar dinheiro para permitir o crescimento de empresas. Investidores procuravam pessoas com ideias geniais que eles podiam transformar em um fluxo de lucro. Eles investiam a longo prazo. O mesmo era verdade para os bancos. Gerentes locais de bancos conheciam as pessoas de negócio que viviam na sua cidade. Eles estavam dispostos a correr riscos e, ao fazê-lo, forneciam capital que permitiu um grande número de pequenas e médias empresas nascessem e crescessem, gerando empregos locais e beneficiando a todos. Mas isso desapareceria. Investimentos de longo prazo foram descartados quando aqueles no setor financeiro perceberam que eles podiam lucrar bilhões de dólares em uma tarde usando derivativos cada vez mais complexos; na realidade é uma forma de aposta, mas com alto risco e com dinheiro de outras pessoas (10). Executivos chefes de bancos se perguntaram: “Porque desperdiçar dinheiro em filiais locais quando podíamos melhorar a eficiência ao centralizar os serviços bancários e decidindo quais companhias apoiar baseado em algoritmos computadorizados ao invés de conhecimentos locais detalhados?”. Vagarosamente, o sistema financeiro parou de ser algo que estava ali para apoiar pessoas comuns, como investidores, produtores, pensionistas e poupadores, e virou um meio como uma pequena porcentagem da população poderia se tornar fabulosamente rica às custas de outros, utilizando o dinheiro destes. Anteriormente, as empresas que eles administravam devolveriam uma grande parte dos seus lucros para os acionistas. Não mais. Agora, a maior parte vai para bônus de funcionários sênior. Em muitos casos esse lucro era altamente inflacionado pela terceirização, ao máximo possível, da sua força de trabalho, idealmente para países e, desenvolvimento como a Índia. Os presidentes destas companhias praticaram o lobby para garantir um movimento livre global de mercadorias, serviços e capital, mas estavam determinados a não extendê-lo para pessoas. Afinal, se trabalhadores altamente qualificados de países em desenvolvimento fossem para a Europa ou América, eles demandariam salários altos, algo que eles consideram totalmente inaceitável.
O público concordou com isso. Pessoas comuns em boa parte da Europa, mas ainda mais nos Estados Unidos da América, pensaram que o sistema estava os beneficiando. Estas falharam em compreender o que estava acontecendo nos mercados financeiros, mas não se interessaram. Elas conseguiram acesso a crédito barato para comprar uma nova casa e enchê-la com bens de consumo. O que elas falharam em compreender foi que não estavam sozinhas na sua ignorância sobre o que estava acontecendo nos mercados financeiros. Poucos, se não algum, destes executivos sêniors, que estavam concedendo recompensas astronômicas a uns aos outros, tinham alguma ideia do que estava acontecendo também. Eles achavam que os bons tempos durariam para sempre. Mas não iria.
Muito bom para durar?
Em 2007, tudo começou a ir errado. Aqueles estados unidenses que compraram casas com empréstimos não podiam mais pagá-los. Muitas vezes, para supresas destes, investidores na Europa que pensavam ter colocado suas economias e fundos de pensão, no que consideravam ser produtos seguros em outros países, perceberam que estavam sentandos numa pilha de imóveis sem valor em um canto remoto do Arizona. O pânico varreu os mercados globais. E continua a fazê-lo hoje.
A crise financeira foi como a maré baixando. Só então ficou claro quem não estava usando roupas de banho. Logo ficou claro que a economia grega foi construída sobre palha. Durante anos, muitas pessoas lutaram para entender o que estava acontecendo na Grécia. Como um país com infraestrutura tão fraca pode estar indo tão bem? Mas é claro que não estava. Agora está claro que o governo grego estava simplesmente inventando os números (11). O seria verdade para muitos bancos. Primeiro, foram os derivativos nos quais eles investiram, muitos dos quais levaram a massivas perdas. Mas também houve empréstimos ruins. Esses algoritmos computadorizados que substituíram o conhecimento local dos gerentes de banco os deixaram com pilhas de ativos sem valor.
Sistematicamente, essa abordagem de colher ganhos de investimentos imprudentes se expandiu para todos os domínios da vida pública. A habitação foi o setor que levou ao crash atual. A comida tornou-se então a próxima mercadoria, seguindo um ciclo semelhante de pico-contração, gerando lucros maciços para fundos de investimento (12). Agora, os investidores estão começando a aplicar essas táticas, furtivamente, à saúde. Quais são as implicações para os sistemas de saúde e como nós, que trabalhamos na saúde pública, deveríamos responder?
As lições para a saúde
A ganância corporativa que sustentou a crise financeira tem implicações para a política de saúde que são muito fáceis de ignorar. Há alguns anos, as grandes corporações perceberam que precisavam ir além dos meios tradicionais de ganhar dinheiro, a produção de bens para os consumidores, para a prestação de serviços. O problema era que muitos dos principais serviços dos quais as pessoas dependiam, como saúde, educação e assistência social, eram fornecidos pelo Estado, pelo menos na Europa Ocidental. O desafio que enfrentaram foi transformar esses serviços, que durante 50 anos foram financiados por impostos, com base na capacidade de pagamento dos cidadãos e recebidos com base na necessidade. Os serviços eram de propriedade coletiva do povo por intermédio do Estado, e as pessoas permaneciam seguras sabendo que eles estariam lá quando necessário. Eles não eram vistos como uma oportunidade de lucro privado.
Para mudar isso, as elites do mercado primeiro tiveram que reescrever as regras a seu favor, fazendo com que seus governos clientes na América do Norte e na Europa moldassem o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços a seu favor (13). Dentro da União Européia, medidas semelhantes foram adotadas em relação à prestação de serviços (14). Para colocar as mãos nos serviços de saúde e educação, vistos como as principais áreas de crescimento, as corporações precisavam tirá-los do controle do governo. As recompensas previstas da privatização eram enormes, como eles perceberam nos Estados Unidos, onde o retorno sobre o investimento no setor de saúde foi enorme (agora representando um quinto do PIB, o mais alto do mundo). E a saúde teve outro benefício. A demanda era potencialmente ilimitada, até porque aqueles que a supriam podiam estimular a demanda.
Em segundo lugar, as elites de mercado tiveram que superar a resistência de um sistema público universal que tinha uma profunda popularidade e apoio público. Isso envolveu a criação de descontentamento popular, chamando a atenção para quaisquer falhas no sistema público e promovendo a escolha como um valor em si, ao lado de eficácia, eficiência, humanidade e equidade (15).
No entanto, ao tentar abrir um mercado na área da saúde, eles enfrentaram alguns problemas fundamentais. Há cerca de cinquenta anos, o vencedor do Prêmio Nobel, Kenneth Arrow, descreveu por que o mercado de assistência à saúde falha (16). As razões incluem a presença de externalidades, em que uma pessoa se beneficia de outra recebendo assistência médica, especialmente se ela tiver uma doença contagiosa ou uma psicose que pode torná-los violentos. Há também assimetria de informação, onde o profissional de saúde que oferece o cuidado sabe mais sobre o que o paciente precisa do que ele mesmo. Mas, acima de tudo, há o problema de que aqueles que mais precisam de cuidados são os que menos podem pagar. Em contraste, aqueles que menos precisam de cuidados têm muito dinheiro. Isso foi reconhecido na década de 1920 nos Estados Unidos, quando as seguradoras Blue Cross e Blue Shield foram criadas por associações de médicos e hospitais, não porque estivessem preocupadas com a capacidade das pessoas de obter cuidados, mas sim para garantir que elas próprias fossem pagas ao fornecê-lo. Dadas essas conhecidas falhas de mercado, como o setor privado pode obter os lucros que buscava com a saúde? A resposta é redefinir os cuidados de saúde, conforme mostrado na próxima seção.
O paradoxo do paciente
A médica de clínica geral britânica, Margaret McCartney, descreveu recentemente o que ela chama de Paradoxo do Paciente. Ela descreve sua dificuldade, mesmo no Serviço Nacional de Saúde (do inglês, National Health Service) do Reino Unido, em fornecer cuidados a saúde apropriados para pacientes realmente doentes, e especialmente o grupo mais difícil, aqueles com doença mental, ao mesmo tempo em que são persuadidos, encorajados e incentivados a prestar serviços, com variedades cada vez maiores de anamneses não avaliadas, para aqueles que estão bem. Simplificando, aqueles com doenças reais oferecem pouco espaço para lucro por aqueles que foram contratados, no mercado interno de saúde britânico, para fornecer cuidados.
O problema é exemplificado em nível internacional pelas doenças tropicais negligenciadas. Eles são negligenciados por uma razão. A razão é que a indústria farmacêutica não consegue ver uma maneira de ganhar dinheiro com eles. Se essas doenças devem ser curadas, não será suficiente contar com o mercado capitalista (18). Em vez disso, há necessidade de intervenção do Estado, ou Estados, por exemplo, por meio de compromissos antecipados de mercado, no qual os governos concordam em compartilhar o risco de desenvolvimento (19). No entanto, estes são apenas sintomas de um problema mais amplo.
A indústria farmacêutica agora percebe que está ficando sem ideias que lhe dará os lucros maciços, no nível que estava acostumada. Esses lucros foram baseados em um modelo que encontrou uma doença comum, idealmente com início na meia-idade, que exigiria tratamento regular por anos. Ele os encontrou. Eles incluíam, entre outros, pressão alta, doença crônica de vias aéreas, diabetes, doença de Parkinson e depressão. Mas o problema agora é que não há mais essas doenças a serem encontradas. Existem tratamentos perfeitamente bons para eles e quaisquer novos tratamentos podem dar, no máximo, uma contribuição marginal, e mesmo isso é frequentemente exagerado por relatórios seletivos e manipulação de dados de ensaios clínicos (20). Essas empresas poderiam desenvolver antibióticos, mas o problema é que a resistência microbiana surge antes do vencimento da proteção da patente, então não há como ganhar dinheiro (21). Depois, há o câncer, mas não é uma doença única. Quanto mais os cientistas aprendem sobre isso, mais eles dividem o mercado em partes cada vez menores (22). Qualquer novo medicamento será eficaz contra tumores em um número relativamente pequeno de pessoas. O tratamento será por um curto período de tempo. O custo por dose será astronômico. Os sistemas de saúde com financiamento público serão relutantes em pagar, sabendo que, como resultado, terão de reduzir os cuidados existentes para outros (23). E o paciente individual poderá, com raras exceções, pagar. O mesmo se aplica aos medicamentos para crianças (24). Quem pagará pelos testes necessários sabendo que o mercado será minúsculo? Em vez disso, a indústria se concentrou nas chamadas drogas de estilo de vida[2]. Qualquer pessoa que assiste à televisão americana pode ser perdoada por pensar que toda a população masculina deve ter disfunção erétil. O sistema de produção de medicamentos, baseado no mercado livre, está tão falido quanto o sistema financeiro e, assim como este, não está claro como consertá-lo.
Mas não é apenas a indústria farmacêutica que enfrenta problemas fundamentais. O mesmo acontece com as corporações que se movem para a prestação de cuidados de saúde. Seus problemas são ilustrados pelo envelhecimento das populações. As pessoas mais velhas podem ser muito difíceis de tratar. Eles não se encaixam em caixas convenientes com uma única doença. Eles têm vários distúrbios, necessitando de uma combinação complexa de medicamentos, muitos dos quais podem interagir entre si (25). Eles podem ter vários graus de falência de órgãos, com a função hepática ou renal influenciando a forma como esses medicamentos são metabolizados. Eles podem ter declínio cognitivo, de modo que se esquecem de tomar os comprimidos quando deveriam, levando a internações hospitalares imprevistas e potencialmente desnecessárias. Fundamentalmente, eles são imprevisíveis e, como constantemente nos dizem, os mercados odeiam a incerteza. Qualquer pessoa que administre um sistema de saúde com fins lucrativos os verá como as últimas pessoas com quem deseja lidar. Em vez disso, eles querem projetar pacotes simples e baseados em protocolos para jovens com doenças únicas, como diabetes não complicada ou asma, que possam ser entregues por profissionais de saúde com treinamento mínimo ou, melhor ainda, por sistemas computadorizados que eliminam o toque humano da prestação de cuidados como um todo.
Esses exemplos ilustram os problemas enfrentados pelas corporações atuantes no setor de saúde. Para responder, assim como o setor financeiro fez quando percebeu que suas fontes tradicionais de lucro não eram mais suficientemente lucrativas, eles devem redefinir as regras do jogo. Na próxima seção, examinaremos como eles estão fazendo isso.
O complexo médico-industrial
Na década de 1950, Eisenhower alertou sobre o que chamou de complexo industrial militar, no qual uma poderosa coalizão de generais e executivos-chefes conspirou para falar sobre a ameaça da União Soviética, exagerando a chamada “lacuna de mísseis” e vendo ameaças onde nenhuma existia (26). O objetivo não era proteger os Estados Unidos, mas, em vez disso, transferir vastas quantias do orçamento federal para os cofres das corporações e, para os generais que assumiriam um emprego nestas corporações ao se aposentarem. Este é um modelo que desde então tem sido amplamente replicado. Existe o complexo industrial de segurança, por meio do qual corporações e funcionários do governo, e tambéns muitos em busca de um lar de repouso lucrativo, conspiraram para gastar bilhões de euros e dólares em sistemas ineficazes de segurança aeroportuária (27). Isso resultou em inúmeras pessoas tendo seus cosméticos, lixas de unha e afins, confiscados enquanto as poucas pessoas que realmente tinham bombas passaram direto, mesmo quando fizeram todo o possível para chamar a atenção para si (28).
Mas agora é o complexo médico-industrial que está estabelecendo as regras do jogo, redefinindo os objetivos dos cuidados de saúde, afastando-os dos mais necessitados, como os portadores de doenças tropicais ou populações envelhecidas com doenças crônicas, para aqueles que estão essencialmente bem. Se o clínico geral não estiver disposto a responder a essas pressões e incentivos, muitos outros o farão. Em particular, aqueles que o respondem costumam ser provedores privados que oferecem os chamados serviços de triagem usando tecnologia de imagem cada vez mais complexa para visualizar cada parte do corpo para encontrar anomalias totalmente inofensivas para as quais eles podem extrair dinheiro para dar o que eles chamam de ‘tratamento ‘. McCartney cataloga muitos exemplos, como o tratamento de biomarcadores substitutos, como o colesterol, mesmo em níveis muito abaixo dos quais poderia causar algum dano, a criação de novas doenças, como o pré-diabetes, e o tratamento de níveis elevados do antígeno específico da próstata, mesmo à custa de efeitos colaterais, muitas vezes espantosos, embora não tragam nenhum benefício global(17). No entanto, ao mesmo tempo que as pessoas estão sendo encorajadas a gastar somas cada vez maiores em intervenções inúteis, as empresas estão dizendo a todos que o aumento nas despesas com saúde é exorbitante e deve ser racionado. Além disso, essas mesmas empresas estão financiando o lobby, muitas vezes de maneira pouco transparente, para persuadir os governos e o público de que o estado de bem-estar social europeu é insustentável, usando evidências altamente seletivas e frequentemente enganosas. Em alguns casos, onde os governos vêem a crise econômica como uma oportunidade única na vida de reverter o estado de bem-estar social, elas estão atravessando uma porta aberta (29).
Conclusões
Os cidadãos europeus de hoje são como aqueles que olharam ao seu redor na Europa Oriental em 1989 e perceberam que os sistemas em que viviam não eram administrados por eles, mas por uma pequena elite. Esses sistemas estavam se tornando cada vez mais disfuncionais e falhavam em cumprir o que haviam prometido. Eles tiveram que mudar e eles fizeram. Hoje, é igualmente claro que nossos sistemas precisam mudar, mas até agora isso não aconteceu.
Uma das primeiras coisas que os novos funcionários de saúde pública aprendem é a importância de olhar a cadeia, para os determinantes fundamentais da saúde. Para fazer a diferença na saúde da população é necessário atacar as causas das causas (30). As políticas de austeridade que hoje se praticam na Europa já estão a ter um impacto negativo na saúde, com o aumento dos suicídios e a negação dos cuidados necessários (6). No entanto, como agora cada vez mais claro, elas nem estão fazendo o que foram projetados para alcançar na economia, pelo contrário, estão sufocando a recuperação econômica. Como este artigo demonstrou, muitos daqueles que promoveram a desregulamentação dos mercados financeiros estão agora se voltando para o setor social como a próxima grande oportunidade de obter lucro. No entanto, suas ações não ajudarão aqueles que precisam de cuidados e medicalizarão os problemas, reais e imaginários, daqueles que não precisam. Inevitavelmente, recursos escassos que poderiam ser usados para aliviar o sofrimento genuíno serão desperdiçados.
Notas da Tradutora:
[1]Pistas nas principais avenidas destinadas a veículos de oficiais sênior do governo
[2] O termo “drogas” não se refere a susbtâncias ilícitas. É um termo utilizado mais internacionalmente do que no Brasil, aqui é mais no contexto da Toxicologia. O conceito de droga é qualquer substância química que modifica a função fisiológica com ou sem intenção benéfica. Pelo que foi escrito pelos autores nesse caso, não é possível substituir conceitualmente com remédio, porque este envolve qualquer terapia necessária para o alívio de uma enfermidade ou condição de saúde, incluindo terapias não medicamentosas como repouso, fisioterapia, compressas de água. O termo medicamento consiste em uma substância química com propriedades benéficas comprovadas cientificamente
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2 comentários em “A Crise do Capitalismo e a Mercantilização da Saúde: Implicações para Profissionais de Saúde Pública”
Por que reproduzir uma análise precária de autores tão raivosamente anti-comunistas?
Recebemos o artigo e nos pareceu que, apesar da posição de senso comum, os autores acabam evidenciando as mazelas do capitalismo mais do que qualquer coisa que fundamente a fraseologia antissoviética deles… Serve mais como base para pesquisa do que uma posição a ser tomada integralmente, sem dúvida.