A transformação da filosofia

Por Louis Althusser, traduzido por Gabriel Landi Fazzio (1)

Se me permitem, gostaria de apresentar a vocês algumas reflexões sobre a filosofia marxista.

Vivemos um período histórico, em que o marxismo, a teoria e a filosofia marxistas, faz parte da nossa cultura, mas não quero dizer que esteja integrado nela. Pelo contrário, o marxismo (dis)funciona na nossa cultura como um elemento e uma força de divisão. Que o marxismo seja um objeto de conflito, uma doutrina defendida por uns e violentamente atacada e deformada por outros, a ninguém pode admirar, porque o marxismo, a sua teoria e a sua filosofia, põe na base a questão da luta de classes. E todos sabemos muito bem que, por trás das opções teóricas abertas pelo marxismo, está latente a realidade de opções políticas e de uma luta política.

Contudo, apesar de ter muito interesse, deixarei de lado este aspecto da questão e concentrarei a minha exposição nas características paradoxais da filosofia marxista.

A filosofia marxista apresenta, efetivamente, um paradoxo em si mesma que, a princípio, nos deixa estupefatos e cuja explicação resulta muito misteriosa. Podemos enunciar esse paradoxo dizendo simplesmente: a filosofia marxista existe e, contudo, nunca foi produzida como “filosofia”. O que isso quer dizer? Sabemos que todas as filosofias que conhecemos, desde Platão a Husserl, Wittgenstein e Heidegger, foram produzidas como “filosofias”, e foram elas mesmas que produziram as provas da sua existência através de sistemas teóricos racionais, criando discursos, tratados e outros escritos sistemáticos perfeitamente aceitáveis e identificáveis na história da cultura como filosóficos. Isso não é tudo: tais sistemas teóricos racionais e sistemáticos produziram sempre a prova da sua existência filosófica através do conhecimento ou através da descoberta de um objeto próprio (quer se trate da Ideia do Todo, do Ser, da Verdade, das condições a priori de qualquer conhecimento ou de qualquer ação possível, da Origem, do Sentido ou do Ser do Ente). Portanto, todas as filosofias conhecidas apresentaram-se na história da nossa cultura como “filosofias”, no espaço da “história da filosofia”, sob a forma de discursos, de tratados ou de sistemas racionais que implicam o conhecimento de um objeto próprio.

Mas é necessário ir mais além. Ao constituírem-se como “filosofias”, dentro do espaço cultural, todas as filosofias conhecidas foram se auto-diferenciando sempre, cuidadosamente, das demais formas de discursos ou de qualquer das outras obras escritas.

Quando Platão escreve os seus diálogos ou as suas obras didáticas, tem o maior cuidado em se diferenciar de qualquer discurso literário, retórico ou sofístico. Quando Descartes ou Spinoza escrevem, é evidente para todos que o que eles fazem não é “literatura”. Quando Kant ou Hegel escrevem, não se trata de uma exortação moral, um sermão religioso ou uma novela. A filosofia produz-se assim, distinguindo-se radicalmente dos restantes gêneros morais, políticos, religiosos ou literários. Mas o resultado mais importante é que a filosofia produz-se, como tal “filosofia”, distinguindo-se das ciências. Aqui radica um dos aspectos mais decisivos da questão. Surge como se o destino da filosofia estivesse profundamente ligado à existência das ciências: visto que é necessário que exista uma ciência para que (do mesmo modo que na Grécia surge a geometria com Platão) se provoque o aparecimento da filosofia. E este vínculo dentro de um destino comum é tanto mais profundo quanto a existência não pode produzir-se sem contar previamente com a existência do discurso racional de uma ciência pura (como a geometria com Platão, a geometria analítica e a física com Descartes, a física newtoniana com Kant etc.). A prova disso é que a filosofia não existe (e não pode separar-se dos mitos, da religião, da exortação moral ou política, e da sensibilidade estética) senão com a condição absoluta de poder oferecer, ela mesma, um discurso racional puro, isto é, um discurso racional, cujo modelo a filosofia só pode encontrar no discurso rigoroso das ciências existentes. Mas neste ponto as coisas sofrem uma surpreendente inversão, já que a mesma filosofia que vai buscar nas ciências puras existentes o modelo do seu próprio discurso racional puro (pensemos na tradição que vai desde o “ninguém entra na filosofia se não é geômetra” (2) à filosofia exposta “more geométrico” [“ao modo geométrico”] de Spinoza e à “filosofia como ciência de rigor” de Husserl) inverte completamente na filosofia a sua relação com as ciências. Quer dizer, a filosofia separa-se rigorosamente das ciências reais e dos seus objetos e declara que é ciência, não no sentido das ciências empíricas (que não sabem daquilo que falam), mas que assegura, na ciência suprema, a ciência das ciências, a ciência das condições a priori de qualquer ciência, a ciência da lógica dialética que converte todas as ciências reais em meras determinações do entendimento etc. Por outras palavras: a filosofia vai buscar nas ciências existentes o modelo do seu discurso racional puro. Está, portanto, submetida às “ciências reais”, que são a sua condição de possibilidade. Contudo, no interior do próprio discurso filosófico produz-se uma inversão do problema: o discurso filosófico converte esta submissão em relação às ciências. A filosofia situa-se, enquanto tal, acima das ciências, exercendo poder sobre elas.

É assim que, em Platão, as matemáticas são relegadas para o plano de subordinação da “dianoia”,(3) disciplinas hipotéticas, submetidas às não-hipotéticas, que são o objeto da filosofia. É assim também que em Descartes as ciências são apenas ramos sólidos do tronco da metafísica. É assim que, em Kant, Hegel e Husserl, a filosofia é que tem a última palavra em relação às ciências, quer dizer, o seu sentido de direito, o seu sentido na dialética da lógica pura, o seu sentido da origem do sujeito transcendental concreto. O exame do laço singular e altamente contraditório que liga a filosofia às ciências (essa operação que transforma as condições de existência da filosofia, e por conseguinte das ciências, em determinações subordinadas à própria filosofia, essa operação pela qual a filosofia se situa a si mesma no poder, declarando que só ela possui a verdade das ciências, sobre as ciências que lhe proporcionam o modelo do seu próprio discurso racional e sistemático), tal operação faz parte da produção da filosofia como “filosofia”. E ela permite-nos suspeitar que entre a primeira demarcação que tínhamos assinalado (aquela pela qual a filosofia se distingue dos mitos e da religião, da exortação moral e da eloquência política ou da poesia e a literatura) e a segunda demarcação que acabamos de indicar, e que respeita às ciências, existe uma profunda ligação de parentesco. Porque, se observarmos de perto a questão, poderemos nos dar conta de que a filosofia não se contenta nem com dominar as ciências nem com “dizer” a verdade das ciências. A filosofia também impõe o seu domínio em relação à religião e à moral, em relação à política e à estética e inclusive sobre o econômico (desde Platão no qual encontramos uma surpreendente teoria do salário e Aristóteles com as suas apreciações sobre o “valor” e o “sistema escravagista”). A filosofia aparece assim como a ciência do todo, isto é, de todas as coisas. A filosofia enuncia a verdade de todos os objetos exteriores, revela o que tais objetos são incapazes de dizer só por si próprios: os “diz”, revela-os, a sua essência. E se pode legitimamente pensar que a fórmula que se utiliza para as ciências (“que ninguém entra na filosofia se não é geômetra”) é igualmente válida para os outros temas, para poder falar de religião o filósofo deve ser moralista, para poder falar de política deve ser político, para falar de arte deve ser “esteta” etc. O mesmo tipo de inversão que tínhamos visto atuar no campo da ciência atua igualmente, só que em silêncio, a respeito de todos os outros objetos. “Objetos” que ocupam de uma maneira específica o espaço da filosofia: só que essa não lhes permite o acesso a tal espaço sem a condição de impor previamente sobre eles o seu poder. Em suma: a produção da filosofia enquanto “filosofia” respeita a todas as ideias e a todas as práticas humanas, mas subordinando sempre todas elas à “filosofia”, isto é, submetendo-as a uma “forma filosófica”, radical. E é este processo de “subordinação” das práticas e ideias humanas à “forma filosófica” que vemos realizar-se nos diálogos, nos tratados e nos sistemas filosóficos.

Enfim, poderia achar-se algo de ingênuo em formular a seguinte pergunta: Mas por que motivo tem a filosofia necessidade de existir como coisa distinta? Por que tem necessidade de falar tomando todas as precauções, para demarcar-se das ciências e de qualquer outra ideia ou prática social? Sim, a filosofia só fala delas! Digamos que a questão não é tão simples. Posto que a filosofia experimenta a necessidade, ou melhor ainda, se encarrega de falar e de consignar o que tem a dizer em tratados separados, identificáveis, é porque considera-na sua convicção histórica íntima – que tem uma tarefa insubstituível a cumprir. Esta tarefa é a de dizer a Verdade sobre todas as práticas e ideias humanas. A filosofia considera, na sua convicção historicamente íntima, que ninguém nem nada pode falar em seu nome, e se ela não existisse, ao mundo faltaria a Verdade. Porque para que o mundo exista é preciso que tal verdade seja dita. Esta verdade é o logos, ou a origem, ou o sentido. E como existe uma identidade originária entre o logos e o dizer (entre o logos e legein, entre a verdade e o discurso, por outras palavras, como a existência – de insistência ou de obstinação – específica do logos não é a materialidade ou a prática ou qualquer outra forma, mas o dizer, a voz, a palavra), por isso, para fazer conhecer o logos, por consequência a Verdade, só há um meio: a forma do discurso. Esta intimidade entre o logos e o dizer faz que a verdade, o logos, só possa ser encerrado ou agarrado e oferecido inteiramente no discurso da filosofia. Por isso a filosofia não pode ultrapassar de nenhum modo o seu próprio discurso. Portanto, é evidente que o seu discurso não é um meio nem um intermediário entre ela e a verdade; é a própria presença da verdade como logos.

Mas agora surge-nos o estranho paradoxo da filosofia marxista. A filosofia marxista existe, e contudo não foi produzida como filosofia, no sentido que acabamos de analisar. Não precisamos de pressa para nos convencermos. Com exceção das breves frases, fulgurantes e enigmáticas, das Teses sobre Feuerbach, que anunciavam uma filosofia que nunca chegou, excetuando as mordazes críticas filosóficas dirigidas contra os neo-hegelianos na Ideologia Alemã, e que se limitavam a mergulhar com ímpeto no nada vaporoso da ideologia (e à parte as célebres alusões a Hegel no prefácio à segunda edição alemã de O capital), Marx não nos deixou nenhum tratado, nenhum discurso de filosofia. Por duas vezes, em duas cartas, Marx nos prometeu uma vintena de páginas sobre a dialética, mas tais páginas nunca chegaram. Podemos presumir que não seriam nada fáceis de escrever. Sem dúvida Engels deixou-nos a sua crítica a Dühring, e Lênin deixou-nos Materialismo e empiriocriticismo, de novo outra crítica. Sem dúvida que se podem extrair muitos elementos de uma crítica, mas “como pensá-la?”. Como estruturar teoricamente “tais elementos”? Tratar-se-ia de elementos de um todo, ainda ausentes, ainda sem presença efetiva, elementos aos quais bastaria reelaborar de acordo com os moldes tradicionais como costumam fazer os filósofos marxistas que seguem ainda imersos na “ontologia”? Ou tratar-se-ia, pelo contrário, de elementos aos quais é preciso interrogar e decifrar em si mesmos “perguntando-lhes” precisamente porque prosseguem sendo única e simplesmente elementos? Sem dúvida possuímos mesmo assim os Cadernos de Lênin sobre Hegel, mas aqui também nos surgem necessariamente as mesmas perguntas: que sentido pode dar-se a estas simples notas de leitura, a estas indicações brilhantes, mas enigmáticas? Em suma, é forçoso concluir que Marx em todos os casos e inclusive Engels e Lênin não nos deixaram nada que seja comparável, ainda que de longe, às formas clássicas do discurso da filosofia.

Ora bem: o cúmulo do paradoxo radica mais longe. Radica em que esta ausência de um discurso filosófico produziu, contudo, no interior do marxismo, prodigiosos efeitos filosóficos. Ninguém pode negar que a filosofia que herdamos, a grande filosofia clássica (de Platão a Descartes, de Kant a Hegel e Husserl), não tenha se ressentido desde as suas próprias raízes (e em todas as suas pretensões) pelo impacto desse algo inconcreto, quase indefinido, que chegou de repente com a presença de Marx. Algo que, contudo, nunca se apresentava sob a forma direta de um discurso filosófico; muito pelo contrário, apresentava-se sob a forma de um texto como O capital. Ou seja, não um texto “filosófico”, mas um texto em que se põe em questão o modo de produção capitalista (e através dele as estruturas das formações sociais), um texto, enfim, que só trata de um conhecimento científico ligado à luta de classes (esse conhecimento científico que se nos oferece assim como sendo, por sua vez, parte desta mesma luta de classes proletária, isto é, o que a partir de Marx está representado em O capital). Então como compreender tal paradoxo?

Queria esclarecê-lo seguindo o caminho mais curto, embora este caminho não seja exatamente o da história real.

Assim, diria para começar que, apesar de toda a brevidade e a conformação inacabada, as Teses sobre Feuerbach contêm o esboço de uma indicação capital. Quando Marx escreve na Tese I: “A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente”, emprega sem dúvida fórmulas que podem interpretar-se no sentido de uma filosofia transcendental da práxis e alguns não deixaram de apoiar-se nesta subjetividade ativa para pensá-la como legitimação de uma filosofia humanista, enquanto Marx fala de algo diferente, já que declara a filosofia “crítica” e “revolucionária”. Mas nesta frase enigmática, opondo a prática de modo muito preciso à “forma-objeto” e à “forma-instituição”, Marx não fizera intervir outra noção filosófica que estaria no mesmo plano da forma-objeto ou da forma-instituição e que estaria, pois, destinada a substituí-las para fundar uma nova filosofia, para inaugurar um novo discurso filosófico, mas uma realidade que possui a particularidade de estar por sua vez pressuposta em todos os discursos filosóficos tradicionais e de estar por natureza excluída de tais discursos. O que digo aqui não se deduz apenas da primeira Tese sobre Feuerbach, mas de toda a obra de Marx, de O capital e de todas as obras que tratam da luta de classes do movimento operário. Esta irrupção da prática na tradição filosófica, inclusive materialista (já que o materialismo do século XVIII não era um materialismo da prática), constitui na sua base uma crítica radical dessa forma de existência clássica da filosofia, que eu definia como produzida enquanto filosofia. O que são, com efeito, a forma-objeto ou a forma-instituição? São, sob condições, desta vez da metáfora da visão (metáfora que é intercambiável com a metáfora da presença ou da palavra do logos), a condenação da pretensão de qualquer filosofia em manter uma relação de presença e de discurso com o seu objeto. Afirmava há um instante: o peculiar da verdade para a filosofia é o não poder existir senão sob a forma de uma “visão”, sob a forma de uma intuição. Em ambos os casos nos defrontamos com o mesmo privilégio, com a mesma pretensão. Para a filosofia os homens vivem e atuam submetidos às leis das suas próprias práticas sociais: não sabem o que fazem. Crêem possuir verdades, não conhecem o que sabem. Graças a Deus a filosofia está aí, vê por eles e fala por eles, para lhes dizer o que fazem e o que sabem. Ora bem, a irrupção da prática é a denúncia da filosofia produzida como tal filosofia. Quer dizer, contra a pretensão da filosofia de abarcar o conjunto das práticas sociais (e as ideias), de ver o todo como dizia Platão, para estabelecer o seu domínio sobre estas mesmas práticas; é contra a filosofia não ter “um espaço exterior”, pelo que o marxismo afirma que a filosofia tem “um exterior”, ou para dizê-lo com palavras mais apropriadas, que a filosofia não existe senão através desse exterior e para ele. Esse exterior (que a filosofia quer fruir a ilusão de o submeter à Verdade) é a prática, são as práticas sociais.

Há que aceitar a radicalidade desta crítica para entender as suas consequências.

Contrariamente ao logos (isto é, a uma representação de algo supremo que se chama “a Verdade” e cuja essência se reduz ao “dizer” – ou a imediata presença da vista e da voz), a prática que é, em tudo, estranha ao logos, não é a Verdade e não se reduz, não se realiza, no Dizer ou no Ver.

A prática é um processo de transformação submetido sempre às suas próprias condições de existência, e que produz, não a Verdade, mas “Verdades” (ou a Verdade, digamos, dos resultados ou dos conhecimentos, toda ela no interior do campo das suas próprias condições de existência).

E se a prática tem agentes, não tem, contudo, um sujeito como origem transcendental ou ontológica do seu objetivo, do seu projeto, nem tem fim como verdade do seu processo. É um processo sem sujeito nem fim.

Se aceitarmos o termo Verdade no sentido filosófico, de Platão a Hegel, e se o confrontarmos com a prática, processo sem sujeito nem fim, segundo Marx, temos de afirmar que não há verdade da prática. Não constitui, portanto, problema atribuir-se à prática, momentaneamente, o papel da Verdade, do fundamento, da origem, numa nova filosofia, que seria uma filosofia da práxis (se cito esta expressão não é contra Gramsci, que nunca teve isto em conta). A prática não é um substituto da Verdade para uma filosofia imutável; pelo contrário, é aquilo que faz caminhar a filosofia. A prática é aquilo que a filosofia em toda a sua história, quer seja sob a forma da causa errante da matéria ou da luta de classes, jamais pôde assumir. A prática é aquela outra coisa, a partir da qual não só se pode fazer caminhar a filosofia, mas, mais ainda, aquilo graças ao qual se pode começar a ver claro no interior da filosofia.

Dizia há pouco: “a prática obriga a filosofia a reconhecer que ela tem um exterior”. Conhecemos o que disse Hegel: “a consciência de si tem um contrário e não o sabe”. Ao que responde a confidência de François Mauriac quando recorda que, quando menino, acreditava que as pessoas ilustres não tinham cu. A irrupção da prática colhe a filosofia pela retaguarda; e fixemos como ocorre isto. Ter um espaço exterior é ter um traseiro, dir-se-á que é o mesmo. Mas ter “uma parte posterior” é ter um exterior inesperado. E a filosofia desde logo conta com isto.

Acaso a filosofia não introduziu no domínio do seu pensamento a totalidade de tudo o que existe, incluindo a lama da qual fala Sócrates ou o escravo do qual falava Aristóteles, ou até a acumulação das riquezas num polo e a miséria no outro de que falava Hegel? Para Platão, o filósofo observa o todo, para Hegel o filósofo pensa o todo. De fato, todas as práticas sociais estão aí, na filosofia, e não só a fabricação de sapatos e de barcos, e não só o dinheiro, o salário, a política e a família, mas também todas as ideias sociais, a moral, a religião, as ciências e as artes, do mesmo modo como estão as estrelas no céu. Se tudo está aí, se tudo está perfeitamente recolhido e reunido no interior da filosofia, onde está o espaço exterior? Acaso o mundo real, o mundo material, não existe para todas as filosofias, inclusive para a filosofia idealista? Por exemplo, Berkeley era um bispo para o qual, segundo a frase de Alain, “a comida estava já cozinhada”; contudo, este bispo era também um homem como qualquer outro, que não se enganava de modo algum sobre a existência da “carne assada”, quer dizer, sobre a existência do mundo exterior.

Em que consiste, então, este processo maligno que se dá na filosofia? Para sermos precisos, há um pequeno pormenor sobre o qual é necessário determo-nos. A fim de fazer entrar todas as práticas e as ideias sociais no domínio do seu pensamento e para impor-se ela mesma sobre estas práticas e ideias sociais com o objetivo de dizer-lhes a sua verdade, a filosofia faz trapaça, isto é, quando a filosofia as absorve e as reelabora de acordo com a sua própria forma filosófica, em absoluto faz isto respeitando escrupulosamente a realidade (a própria natureza) de tais práticas e ideias sociais. Ao contrário, ao afirmar o seu poder de Verdade sobre elas, a filosofia teve de obrigá-las a sofrer uma verdadeira transformação, ainda que essa Verdade costuma ser imperceptível. Que fazer senão ajustá-las e pensá-las sob a unidade de uma única e mesma Verdade? Também não há necessidade de ir demasiado longe para prevenir-se: assim o impulso de Descartes à física de Galileu (que é, sem dúvida, mais que experimentação!), a pequena operação de Kant sobre a química e a psicologia, para não falar das grandes manobras de Platão e Hegel sobre a moral, sobre a política ou sobre a economia. A filosofia, quando se lhe objeta que tem um espaço exterior, tem razão em protestar e em responder que não, visto que se ocupa de tudo. Na realidade, o seu espaço exterior tem de ser procurado e encontrado dentro dela própria, nesta apropriação do espaço exterior filosófico que se realiza sobre as práticas sociais, nesta operação de exploração e, portanto, de deformação das práticas sociais que permite à filosofia unificar tais práticas sob a Verdade.

O verdadeiro espaço exterior da filosofia está dentro da própria filosofia. Ou seja, esta separação, esta distância da deformação e da prática é o empenho de existir por cima de tal exploração e de tal transformação, é a resistência a essa violência filosófica.

Mas resta dizer o mais importante, porque o que se disse até agora poderia interpretar-se em termos de desejo de poder, contando a história da filosofia um pouco à maneira de Nietzsche: num determinado momento existiram homens movidos por um ressentimento, os quais, feridos pelo mundo, empreenderam a tarefa de dominá-lo mediante o pensamento. Em suma, fazerem-se os senhores do mundo, concebendo-o exclusivamente através do seu próprio pensamento. Os filósofos foram precisamente esses especialistas da violência do conceito, do Begriff, da apropriação. E, além disso, afirmaram a sua força submetendo à lei da Verdade (da sua verdade) todas as práticas sociais dos homens que seguiam afligindo-se e vivendo na noite. Sabemos que tal perspectiva não é estranha a alguns dos nossos contemporâneos que procuram e encontram – de forma natural – na filosofia o arquétipo da força, o modelo de qualquer poder. Eles próprios escrevem a equação saber=poder, e dizem, à maneira dos modernos anarquistas eruditos: a violência, a tirania, o despotismo de Estado é culpa de Platão; como se dizia em outra época: a revolução é culpa de Rousseau. A melhor maneira de lhes responder é ir mais longe do que eles introduzindo a ruptura escandalosa da prática no interior da natureza da filosofia. É aqui que se nota de forma mais profunda a influência de Marx.

Temos feito crer até agora que a filosofia se contentava com introduzir no seu pensamento o conjunto de práticas e de ideias humanas, para enunciar com ele a Verdade. E havíamos suposto a título provisório que se a filosofia (que absorvia o conjunto das práticas sociais no seu pensamento) as deformava, era, em certa medida, por razões lógicas e técnicas. Enfim, para poder unificá-las. Se queremos meter um certo número de objetos numa mala pequena, será necessário dobrá-los e deformá-los. Se queremos imaginar as práticas sociais sob a unidade do Bem, será necessário um grande número de deformações para chegar a dobrá-las sob esta unidade. Engels disse em algum lugar qualquer coisa deste gênero, quando afirmava que toda a filosofia era sistemática em função da “eterna necessidade do espírito humano de superar as contradições”. Pois bem, penso que isso não é totalmente exato: estas deformações da unidade ou da contradição não são mais do que deformações formais que respeitam unicamente à peculiar lógica do discurso filosófico.

Sei perfeitamente que em todo o filósofo, como em todo o matemático que sabe apreciar a elegância de uma demonstração, está adormecido também um apaixonado das belas artes, e não faltam filósofos que acreditavam, como Kant, que a realização de um sistema era questão não somente de lógica, mas também de estética. Quando não basta a lógica (ou para torná-la digerível), acrescenta-se-lhe um pequeno complemento de estética: o Belo e o Bom, que na nossa história têm o costume de sair em família para se fazerem notar pela boa sociedade.

Mas aqui estão as pequenas fraquezas dos filósofos e não se deve julgar a filosofia a partir delas, como não se deve julgar as matemáticas a partir da elegância dos matemáticos.

A verdade é outra coisa: para vê-la, há não só que desprezar a psicologia dos filósofos, mas também a ilusão na qual a filosofia encontra o repouso: a ilusão do seu próprio poder sobre as práticas sociais. Porque – e é aqui que tudo se decide – o que é importante não é que a filosofia tome o poder sobre as práticas e as ideias sociais. Estas não são mais do que as formas de exercício do seu poder e dos seus resultados. O que eu quero dizer é que o importante é verificar que a filosofia não incorpora de modo gratuito as práticas sociais sob a unidade do seu pensamento. O faz tirando-lhes o seu próprio espaço, o que realiza submetendo esta hierarquia a uma ordem interna que constitui a sua unificação verdadeira.

Para dizer com outras palavras: o mundo pensado pela filosofia é um mundo unificado enquanto desarticulado e rearticulado, quer dizer, reordenado pela filosofia. É um mundo no qual as diferentes práticas sociais decompostas se distribuem numa certa ordem de distinção e hierarquia que é significativa. O que a faz ser significativa não é que a filosofia domine os seus objetos, mas que ela os decomponha e recomponha para distribuí-los numa ordem especial de hierarquia e distinção internas, ordem que é, precisamente, o que dá significação a toda a operação da filosofia. Por hipótese: é evidente que para realizar toda esta operação, para distribuí-los nesta ordem, a filosofia deve dominá-los, ou seja, é por esta necessidade que a filosofia é obrigada a “tomar o poder” sobre eles.

Mas tenhamos em conta sempre isto: que o “poder” não significa nunca um “poder pelo poder”, nem sequer no âmbito político. Muito pelo contrário, o poder não é outra coisa senão o que se faz com ele, isto é, o que ele produz como resultado. E se a filosofia é “aquela que vê o todo”, não o vê senão para reordená-lo, quer dizer, para impor aos diversos elementos do todo uma ordem determinada.

Não posso entrar aqui em pormenores. Haveria naturalmente milhares de exemplos bem fáceis de desenvolver. Mas limito-me a um bastante claro: o “lugar” respectivo que Descartes, Kant e Hegel concedem ao que eles concebem como moral e religião. É evidente que este “lugar” (que nunca é o mesmo na unidade de cada um dos sistemas) influi profundamente na significação de cada uma das doutrinas. Ou, dando outro exemplo mais abstrato, recordemos como a presença de uma teoria do conhecimento em Descartes e a sua ausência em Spinoza e Hegel são fatos que testemunham tratamentos diferentes da prática científica, fatos que são eles mesmos efeitos da orientação global de cada uma destas doutrinas.

Não posso aprofundar mais neste tipo de explicações. Mas queria que prestassem muita atenção a uma das consequências do que acabamos de dizer. Quando se avança a hipótese de que a filosofia se serve das práticas e das ideias sociais para lhes impor um sentido específico no interior do seu sistema, está claro que a filosofia deve “decompor” primeiro e “recompor” depois tais práticas. Quer dizer que a filosofia necessita retalhar de um modo específico as práticas sociais para reter delas só aqueles elementos que a filosofia considera como os mais significativos para a sua empreitada, recompondo a seguir tais práticas a partir desses elementos.

Assim, cada filósofo fabrica, a partir da realidade prática científica, uma ideia de ciência; a partir da realidade prática da moral, uma ideia de moral etc.

Esta deformação sistemática (a entendemos no sentido forte), esta deformação provocada pelo sistema (não entendido como sistema lógico, mas como um sistema de dominação, como sistema que impõe uma significação – uma Verdade – às práticas sociais), produz objetos filosóficos que se assemelham aos objetos reais, mas que são diferentes deles. Só que há algo de mais importante ainda. Isto: para fazer aparecer no interior de todas as práticas ou ideias sociais a

Verdade que ela lhes quer impor, e para poder manter o todo num bloco único, a filosofia vê-se obrigada a inventar o que eu chamaria de objetos filosóficos, sem referente real e empírico e que são, por exemplo, os objetos da filosofia como objetos filosóficos: a Verdade, o Uno, o Todo, o cogito, o sujeito transcendental e muitas outras categorias do mesmo gênero que só existem na filosofia. Há anos escrevi: a filosofia não tem objeto no sentido em que uma ciência ou uma filosofia não têm um objeto – mas existem objetos filosóficos. A filosofia tem os seus objetos em si própria e sobre eles trabalha interminavelmente, modifica-os, retoma-os, não pode prescindir deles, porque tais objetos filosóficos (que não são mais do que o objeto da filosofia) são os meios pelos quais esta alcança os objetivos da sua missão: impor às práticas e às ideias sociais que figuram no seu sistema a deformação imposta pela ordem determinada desse sistema. Falava há pouco da teoria do conhecimento e dizia que a sua presença em Descartes e Kant, do mesmo modo que a sua ausência em Spinoza e Hegel, tem um sentido: a teoria do conhecimento é um desses objetos da filosofia que só pertencem à filosofia e a propósito do qual os filósofos podem enfrentar-se, a partir do momento em que, com este objeto, estamos no coração do que constitui o peculiar da filosofia, os objetos que são seus e só seus, e nos quais se joga todo o destino da sua atividade.

Aceitando seguir por este caminho, será possível compreender melhor no que vem a resultar a prática para tomar à filosofia o revés e mostrar que tem exterior. O seu espaço exterior, uma vez mais, é o que sucede no seu interior: não só as deformações lógicas das práticas sociais para submetê-las à unidade formal não contraditória de um pensamento sistemático que abarca a totalidade, mas o desmembramento e a reconstrução, o pôr em ordem dessas mesmas práticas sociais deformadas; uma dupla deformação, pois, requerida pelas exigências deste pôr em ordem que, em definitivo, domina tudo e dá à filosofia o seu sentido.

Qual pode ser, então, esse sentido? Porque até aqui tudo tem lugar em textos escritos, em discursos abstratos, que parecem muito afastados das práticas sociais reais, que aparecem na filosofia apenas sob a forma de categorias e noções. Compreende-se que toda esta operação mental possa satisfazer o autor de uma bela unidade conceitual, responder à sua necessidade de “procura da verdade”. Apesar de tudo, são muitos os colecionadores e os jogadores de xadrez.

Mas que pode ter que ver com a história este pequeno affair conceitual privado, uma vez desmascarados os seus pequenos procedimentos, uma vez que já não se crê que tenha vocação alguma para dizer a Verdade? Na realidade, é aqui que as coisas começam a ficar sérias – e isso devemos a Marx. Embora o que vou dizer não esteja com todas as letras em Marx, sem ele não poderíamos dizê-lo.

Ninguém negará que, pelo menos em certos campos, a história não sabe muito bem selecionar e reconhecer os seus. E seguramente não é por acaso que este fato tenha consagrado a existência histórica da filosofia: não é por acaso que a filosofia continue a existir, que esses sagrados textos abstratos, interminavelmente lidos e relidos por gerações de estudantes, interminavelmente comentados e glosados, se mantenham, contra ventos e marés, no nosso universo cultural e desempenhem aí o seu papel. E como não é o amor à arte que inspira a sua leitura ou a fidelidade à sua história, se tais textos subsistem, por mais paradoxal que pareça, é pelos resultados que produzem, e se produzem resultados, é porque as sociedades da nossa história os reclamam.

Toda a questão consiste exatamente em saber quais e de que ordem são esses resultados. Quero prevenir o auditório que o que vou dizer não pretende esgotar o tema. Tal como qualquer outra realidade social ou cultural, a filosofia, por excelência, está sobredeterminada. Mas queria fazer realçar o que considero a sua determinação essencial, a sua determinação em última instância. Porque até agora temos ignorado uma realidade de uma importância fundamental. Com efeito, a filosofia, que pretende deixar enunciada para sempre a Verdade das coisas, apresenta a característica – de fato paradoxal – de ser, por essência, polêmica, e isso perpetuamente. Kant escreveu que a filosofia – a anterior à sua, que fique claro – era um campo de batalha. E todos os filósofos que vieram ao mundo antes e depois dele lhe têm dado razão, visto que nunca escreveram nada senão com a condição de guerrear com este ou aquele predecessor. A filosofia, portanto (e com uma insistência e uma constância tão impressionantes, que esta condição expressa a sua natureza), é uma guerra perpétua entre as ideias. Por que esta guerra? Não podem ser neurastenias entre pessoas suscetíveis. Os inumeráveis subfilósofos, filósofos-unha, filósofos-cabelos como dizia Marx, que entraram em guerra por simples espírito de contradição, como autores fracassados que procuravam a luta, não deixaram rastro na história. Por outro lado, todos os que ficaram na história não fizeram mais do que se degladiar entre si e, batendo-se como autênticos combatentes astutos, sabiam procurar apoios contra o adversário principal nos argumentos dos adversários secundários, fazerem-se aliados destes, distribuindo os insultos e os elogios, tomando, em suma, posições, e posições beligerantes, sem equívoco possível. Sobre o fundo desta luta geral, há que tentar compreender os resultados produzidos pela existência de uma filosofia histórica. E é aqui que o pensamento de Marx resulta decisivo.

Com efeito, Marx lançou a ideia, no Prefácio à Contribuição de 59 (4), de que uma formação social repousa sobre a sua infraestrutura econômica, quer dizer, sobre a unidade das forças produtivas e as relações de produção. É na infraestrutura que está enraizada a luta de classes, que põe em confronto os possuidores dos meios de produção e os trabalhadores mais diretamente explorados. E Marx acrescentou que sobre esta infraestrutura se elevava toda uma superstrutura que compreendia o Direito e o Estado, por um lado, e as ideologias, por outro. A superestrutura não faz mais do que refletir a infraestrutura. Porque, evidentemente, há que dar vida a esta tópica, que se apresenta como um corte na história de uma formação social, e pensar que, se uma formação social existe no sentido forte, é porque é capaz, como todo o ser vivo, de reproduzir-se, mas, ao contrário dos outros seres vivos, reproduzindo as suas próprias condições de existência.

As condições materiais de reprodução estão asseguradas pela própria produção, que assegura também uma grande parte das condições da reprodução das relações de produção. Mas as condições econômicas e políticas da reprodução estão asseguradas pelo Direito e pelo Estado. Quanto às ideologias, participam nas relações de produção e no conjunto das relações sociais, assegurando a hegemonia ideal ou cultural da classe dominante. Entre estas ideologias encontram-se, em geral, a ideologia jurídica, a ideologia política, a ideologia moral, a ideologia religiosa e o que Marx denomina de ideologia filosófica.

Falando destas ideologias, diz Marx que nelas os homens tomam consciência dos seus conflitos de classe e “levam-nos até o fim”. Deixo por agora a questão de saber se a denominação de Marx – “ideologia filosófica” – cobre exatamente o que até aqui temos designado com a palavra “filosofia”. Mas reterei duas indicações essenciais: 1) O que ocorre dentro da filosofia guarda uma relação estreita com o que ocorre nas ideologias; 2) O que ocorre dentro das ideologias guarda uma relação estreita com a luta de classes.

Até agora, e com o único fim de simplificar, falei sobretudo acerca das práticas sociais, dizendo que a filosofia se propunha enunciar a sua Verdade, posto que considerava a si mesma como a única capaz de fazê-lo. Mas falei simultaneamente das práticas e das ideias sociais, para sublinhar claramente o fato de a filosofia não interessar unicamente pela produção de um objeto fabricado, como se observa em Platão, em Aristóteles e em Hegel, a propósito da produção de camas, de barcos ou de mercadorias. De igual modo tentei sublinhar que também não se interessa exclusivamente pela prática da produção de conhecimentos (quer sejam científicos ou de qualquer outro tipo), como se observa em todos os autores; nem se interessa exclusivamente pela prática jurídica, moral ou política, nem por qualquer outra prática que tenda a transformar ou a conservar algo no mundo. Assinalei tudo isso porque, ao mesmo tempo que se interessa pelas práticas sociais, a filosofia interessa-se pelas ideias que os homens fazem de tais práticas: ideias que em alguns casos servirão para condenar e criticar, e em outros para aprovar, mas que no fim de contas servem para propor uma nova interpretação, uma nova Verdade. Isto ocorre porque, na realidade, as práticas sociais e as ideias que os homens fazem delas estão estreitamente relacionadas. Pode se dizer que não há prática sem ideologia e que qualquer prática, incluindo a científica, se realiza através de uma ideologia. Em todas as práticas sociais (quer pertençam ao domínio da produção econômica, da ciência, da arte, do direito, da moral ou da política), os homens que atuam estão submetidos às ideologias correspondentes, independentemente da sua vontade e mais ou menos com uma total ignorância do assunto.
Chegado a este ponto, creio poder avançar a ideia de que a filosofia só se satisfaz atuando sobre o conjunto contraditório das ideologias existentes, atuando sobre o fundo da luta de classes e o seu protagonismo histórico. Tal ação não é estéril. Nenhum marxista poderá defender a ideia de que a ação que a ideologia exerce sobre as práticas basta para mudar a natureza e a orientação geral dessas práticas. E isto porque a ideologia não é a determinante em última instância. Contudo, a eficácia da ideologia nunca é nula, pelo contrário, pode ser bastante grande, e assim lhe reconheceu Marx (conforme as experiências da história real) um papel muito importante na reprodução e na transformação das relações sociais. Portanto, é possível conceber formalmente a possibilidade de uma ação da ideologia sobre as práticas sociais, aquelas que conferem certa unidade e certa orientação numa dada fase das lutas de classes.

Se o conjunto das ideologias é capaz desta ação e se o peculiar da filosofia consiste em atuar sobre as ideologias e, através delas, sobre o conjunto das práticas sociais e a sua orientação, se compreenderá melhor, então, a razão de ser da filosofia e do seu alcance.

Mas quero insistir neste ponto: só formalmente é compreensível a sua razão de ser, porque até agora não se compreende por que motivo é imprescindível que o conjunto das ideologias recebam da filosofia, sob as categorias da Verdade, esta unidade e a sua orientação.

Para compreender é necessário, na perspectiva de Marx, fazer intervir o que eu chamaria de a forma política da existência das ideologias no conjunto das práticas sociais. Há que trazer à luz do dia a luta de classes e o conceito de ideologia dominante. Se a sociedade a considerar é uma sociedade de classes, o poder político, o do Estado, está nas mãos da classe exploradora. Para que o seu poder seja duradouro (e sabemos isto muito antes de Marx, desde que Maquiavel estabelecera a teoria política), é preciso que a classe dominante transforme o seu poder pela violência num poder consentido. É preciso que a dita classe dominante obtenha, mediante consentimento livre e consuetudinário dos seus súditos, uma obediência que só com a força não poderia obter. É para isto que serve o sistema, sempre contraditório, das ideologias. É o que, seguindo neste ponto Gramsci, é denominado o sistema dos Aparelhos Ideológicos de Estado, entendidos como o conjunto das instituições ideológicas, religiosas, morais, jurídicas, políticas, estéticas etc., mediante as quais a classe no poder, ao mesmo tempo que se unifica, consegue impor às massas exploradas a sua ideologia peculiar, como sendo a própria ideologia das ditas massas. Quando isso sucede, a massa popular penetra na Verdade da ideologia da classe dominante, aceita os seus valores (dando então o seu consenso à ordem estabelecida) e a violência sempre necessária pode ser ou posta de lado ou utilizada como último recurso.

Mas este estado de coisas, que na história, salvo períodos excepcionais, foi atingido apenas tendencialmente, supõe o que – ao contrário do que se crê – não é tão evidente, ou seja, a existência de uma ideologia dominante. A ideologia dominante, dizia Marx, é a ideologia da classe dominante. Isto está certo como resultado de uma luta. Mas este resultado é o de uma luta extraordinariamente complicada. E a experiência histórica mostra que é necessário tempo, às vezes muito tempo, para que uma classe dominante que tomou o poder consiga forjar uma ideologia que se torne dominante. Veja-se a burguesia: necessitou de cinco séculos, do século XIV ao século XIX, para conseguir. E inclusive no século XIX, quando tinha de enfrentar as primeiras lutas do proletariado, batia-se ainda contra as ideologias da aristocracia rural, herdeira do feudalismo. Desta regressão é preciso reter que a constituição de uma ideologia dominante é, para a classe dominante, um assunto de luta de classes: e no caso da burguesia do século XIX, um assunto de luta de classes em duas frentes. Ora bem, isto não é tudo. Porque não se trata somente de fabricar uma ideologia dominante, por decreto, por que falte uma, não se trata somente de constituí-la a partir de uma longa história de luta de classes; é necessário construí-la a partir do que existe, a partir dos elementos, das áreas das ideologias existentes, a partir do que o passado legou, que é diverso e contraditório, e também através dos acontecimentos inesperados que surgem incessantemente, tanto na ciência como na política. Na luta de classes e suas contradições (sobre a base dos elementos ideológicos contraditórios legados pelo passado), deve ser constituída uma ideologia que supere todas essas contradições, uma ideologia que esteja unificada em torno dos interesses essenciais da classe dominante para lhes assegurar o que Gramsci chamava a sua hegemonia.

Se entendemos assim a realidade da ideologia dominante, podemos – pelo menos é a hipótese que queria avançar – captar a função própria da filosofia. A filosofia não é nem uma operação gratuita nem uma atividade especulativa. A pureza, as mãos limpas e a especulação contemplam a consciência de si. Mas os grandes filósofos tinham já uma consciência muito distinta da sua missão: sabiam que respondiam às grandes questões práticas e políticas – como orientar-se no pensamento e na política? Que fazer? Em que direção seguir? Sabiam inclusive que estas questões políticas eram históricas, isto é, ainda que as vissem como temas eternos, sabiam que estavam delineados pelos interesses vitais da sociedade para a qual pensavam. Mas seguramente não sabiam o que Marx nos permite compreender e sobre o que eu queria dizer algumas palavras. Parece-me, com efeito, que não se pode compreender a tarefa determinante em última instância da filosofia senão em sua relação com as exigências da luta de classes na ideologia, ou seja, a questão central da hegemonia, da constituição da ideologia dominante antes de tudo. O que temos visto ocorrer na filosofia, essa reorganização e esse pôr em ordem das práticas e ideias sociais dentro de uma unidade sistemática sob a sua Verdade, tudo isto que temos visto ocorrer aparentemente muito longe do real, na abstração filosófica, podemos ver produzir-se, de forma certamente comparável e quase sobreponível, mas não simultânea, à luta de classes ideológica. Nos dois casos trata-se de reorganizar, desmembrar, recompor e unificar, sob uma orientação definida, toda uma série de práticas sociais e de suas ideologias correspondentes, para levar ao poder, através dos elementos subordinados, uma determinada Verdade, que lhes imponha uma determinada orientação, garantindo esta orientação com aquela Verdade. Se esta correspondência é exata, podemos induzir dela que a filosofia, que continua à sua maneira a luta de classes na teoria, que essa luta de classes na teoria, responde a uma exigência fundamentalmente política. A tarefa que lhe está consignada e delegada pela luta de classes, e mais diretamente pela luta de classes ideológica, é a de contribuir para a unificação das ideologias numa ideologia dominante e de garantir esta ideologia dominante como Verdade. Como contribui para isso? Pois justamente propondo-se pensar as condições teóricas de possibilidade de reduzir as contradições existentes e portanto de unificar as práticas sociais e a sua ideologia. Trata-se de um trabalho abstrato, de um trabalho de pensamento, trata-se de um trabalho de pensamento puro, de uma teorização pura, a priori portanto. E o resultado é pensar, sob a unidade e a garantia de uma mesma orientação, a diversidade das diferentes práticas e das suas ideologias. Ao satisfazer esta exigência, que ela vive como uma exigência interna, mas que lhe surge dos grandes conflitos de classe e dos grandes acontecimentos da história, que faz a filosofia? Produz todo um dispositivo de categorias que permitem pensar e que colocam num lugar determinado as diferentes práticas sociais sob as ideologias, isto é, no lugar que devem ocupar para desempenhar o papel que delas se espera na constituição da ideologia dominante. A filosofia produz uma problemática geral, isto é, uma maneira de expor e, portanto, de resolver os problemas que podem surgir. Enfim, a filosofia produz uns esquemas teóricos, umas figuras teóricas que servem de mediadores para ultrapassar as contradições, e de elo para tornar a ligar os diferentes elementos da ideologia. Além disso, garante (ao atuar como dominadora das práticas sociais assim reordenadas) a Verdade desta ordem, enunciada sob a forma da garantia de um discurso racional.

Creio que, então, pode representar-se a filosofia da seguinte maneira: não está fora do mundo, fora dos conflitos e dos acontecimentos históricos. Na sua forma concentrada, a mais abstrata, a das obras dos grandes filósofos, é algo que está ao lado das ideologias, como uma espécie de laboratório teórico onde experimentalmente se põe na ordem do dia, na abstração, o problema fundamentalmente político da hegemonia ideológica, isto é, da constituição da ideologia dominante. É aí que se afinam as categorias e as técnicas teóricas que tornarão possível a unificação ideológica que é um aspecto essencial da hegemonia ideológica. Porque o trabalho efetuado pelos filósofos mais abstratos não fica letra morta: o que a filosofia recebeu da luta de classes como exigência, devolve-o sob a forma de pensamentos que vão trabalhar nas ideologias para unificá-las e transformá-las. Da mesma maneira que se podem observar empiricamente na história as condições de existência impostas à filosofia, de igual modo se podem observar empiricamente os efeitos da filosofia sobre as ideologias e as práticas sociais. Basta pensar no racionalismo do século XVII e na filosofia das Luzes, para utilizar dois exemplos conhecidos: os resultados do trabalho de elaboração filosófica dão-se na ideologia e nas práticas sociais. Estas duas etapas da filosofia burguesa são outros dos momentos constitutivos da ideologia burguesa em ideologia dominante. Esta constituição fez-se na luta, e a filosofia desempenhou nela o seu papel de cimento teórico para a unidade desta ideologia. Porque se tudo o que se acaba de dizer pode ser mantido e, sobretudo, se tudo o que se acaba de dizer foi possível dizê-lo pela revelação que Marx nos fez da natureza de uma sociedade de classes, do papel do Estado e das ideologias nas superestruturas, a questão da filosofia marxista torna-se, então, ainda mais paradoxal. Porque se a filosofia desempenha, em última instância, o papel de laboratório de unificação e de cimento teórico para a ideologia dominante, qual é o papel dos filósofos que recusam servir à ideologia dominante? Qual é o papel de um homem como Marx, que declara no Posfácio à segunda edição alemã que o seu livro, O capital, é “uma crítica que representa uma classe que tem por missão derrubar a classe dominante e suprimir todas as classes”? Dito em outras palavras: se o que propus pode ser pensado, como pode considerar-se possível uma filosofia marxista?

Para compreender essa possibilidade como tal, como possibilidade, basta refletir sobre o fato de a expressão “ideologia dominante” não ter sentido se não se contrapõe a outra expressão: a ideologia dominada. E isto resulta da própria questão da hegemonia ideológica. O fato de, numa sociedade dividida em classes, a classe dominante dever forjar uma ideologia que seja dominante (para se unificar a si mesma e por sua vez a impor às classes dominadas) é um processo que se desenvolve com bastante resistência. Em particular porque, para além da ideologia da antiga classe dominante, que ainda subsiste, na sociedade de classes existe o que Lênin chamava de “elementos” de outra ideologia distinta, a da classe explorada. A ideologia da classe dominante não se constitui como dominante senão contra os elementos ideológicos da classe dominada. Voltamos a encontrar essa oposição mesmo no interior da filosofia como um dos elementos do problema hegemônico que é a filosofia, essa guerra de todos contra todos, essa guerra perpétua que é o efeito e o eco que a luta de classes provoca na filosofia, e daí as posições antagônicas das ideologias antagônicas estarem representadas no próprio interior da filosofia. A filosofia que trabalha no seu laboratório teórico a favor da hegemonia ideológica da classe ascendente ou dominante, sem dar conta disso, defronta os seus próprios adversários geralmente em nome do materialismo. Em princípio ocorre com a filosofia algo semelhante ao que ocorre numa sociedade de classes: tal como a unidade e a luta da classe explorada se organizam sob o domínio de classe, também as formas do partido filosófico que representam a classe dominada se organizam em formas que constituem a filosofia em filosofia, e portanto sob as formas da questão da hegemonia ideológica. Tal como toda a história da filosofia ressoa surdamente com o eco dos explorados ou dos opositores. Alguns, como os materialistas do século XVIII, chegaram a opor o seu próprio sistema de Verdade aos representantes da classe dominante. Mas mais do que os materialistas do século XVIII (que não representavam os explorados, mas uma nova classe exploradora, tratando então a burguesia de realizar uma aliança com a aristocracia segundo o modelo inglês), os que talvez devem interessar-nos são aqueles que quase conseguiram (ou que conseguiram) dar à sua oposição a forma de uma filosofia produzida como tal “filosofia”. No meu caso investigaria de bom grado Epicuro e Maquiavel, para citar apenas estes, mas se o faço, é só para tentar compreender Marx, isto é, o seu silêncio.

No fundo, todo o paradoxo de Marx radica aqui. Ele, que tinha recebido uma formação de filósofo, recusou escrever uma filosofia. Ele, que quase nunca falou de filosofia (mas que tinha feito oscilar toda a filosofia tradicional ao escrever na XI tese sobre Feuerbach a palavra “prática”), praticou, contudo, a filosofia que nunca havia escrito ao escrever O capital. E ao escrever O capital, Marx deu-nos, como ninguém antes, a chave para começar a compreender o que se joga no interior da filosofia, ou seja, para começar a escrever algo como uma teoria da filosofia. E depois dele, tanto Engels como Lênin não escreveram mais do que críticas ou fragmentos isolados. De novo então, como compreender este paradoxo? Poderíamos compreendê-lo a partir das propostas que temos feito?

Vou tentar expor o que penso a respeito disso sem ocultar que com isto me arrisco a enunciar uma hipótese muito audaciosa. Mas creio que vale a pena correr o risco.

Quando observamos a história do movimento operário marxista através do prisma das formas filosóficas com que ele se identificou, encontramo-nos perante duas situações perfeitamente típicas. Na primeira situação encontramo-nos com Marx, Engels, Lênin e Mao, que, de um modo ou outro, sempre deram a impressão de desconfiar de tudo o que possa parecer-se com uma filosofia produzida como tal, “filosofia” nas formas da hegemonia ideológica que analisamos. Pelo contrário, na segunda situação, encontramo-nos com homens como Lukács, ainda que não seja determinante, e sobretudo Stálin (que efetivamente foi a abertura de todas as grandes vias de uma filosofia marxista produzida como “filosofia”). Stálin fê-lo ao retomar algumas frases infelizes de Engels sobre a “matéria e o movimento” etc., e ao orientar a filosofia marxista na via de uma ontologia ou metafísica materialista, na qual as teses da filosofia seriam realizadas através da matéria. É claro que Stálin não teve a grande prudência de Marx, Lênin e Gramsci, e daí que as posições filosóficas de Stálin tenham estado na origem da sua linha política e das suas práticas terroristas, embora não seja difícil mostrar que essas posições filosóficas stalinistas não só não são estranhas à linha política do stalinismo, mas também lhe tenham sido muito úteis. Mas também não seria difícil mostrar que, no interior da profunda crise stalinista, da qual começamos agora a libertarmo-nos, as posições filosóficas de Stálin foram as que puseram em marcha a “filosofia” marxista.

Tudo se passa, pois, como se experimentalmente a história do movimento operário marxista tivesse dado razão, num ponto contudo obscuro, a Marx, Lênin e Gramsci, contradizendo Plekhánov, Bogdánov e sobretudo Stálin. Tudo se passa como se (devido à extrema preocupação, a par da grande discrição, nas suas intervenções diretamente filosóficas, ao lado da constante prática de uma filosofia que nunca quiseram escrever), Marx, Lênin e Gramsci tivessem sugerido que a filosofia de que necessitava o marxismo não era uma filosofia produzida como “filosofia”, mas uma nova prática da filosofia.

Para compreender a razão de base de tudo isso, pode-se partir da nota de Marx que opõe, no Posfácio à segunda edição alemã, duas concepções da dialética e dá a entender que é fácil passar da segunda à primeira. Na primeira concepção, a dialética serve – cito – “para glorificar a ordem das coisas existentes”; trata-se, pois, de algo apologético e ao serviço da classe dominante. Na segunda, a dialética é “crítica e revolucionária”. É esta última concepção a única que pode servir ao proletariado. Resumindo, poderia dizer-se que é correto pensar que Stálin tenha recaído na primeira concepção e que Marx, para se proteger deste perigoso extremo, se agarrou firmemente à segunda concepção e nunca escreveu sobre filosofia como “filosofia”.
Marx considerou, evidentemente, que produzir uma filosofia como “filosofia” era uma forma de entrar no jogo do adversário; que, inclusive sob a forma de oposição, era entrar no jogo da questão hegemônica e contribuir, indiretamente, para forçar a ideologia burguesa a dar por válida a sua forma de expressão filosófica; que era comprometer o futuro – e portanto também o presente da ideologia proletária, revesti-la de formas que eram exigidas pela questão da hegemonia ideológica burguesa; e que, por último, era arriscar-se a cair, em filosofia, no partido de Estado.

Porque a história das relações da filosofia com o Estado, que também captou o filósofo francês P. Nizan, é uma longa história. Dela falava eu, por outro lado, quando me referia à questão da ideologia dominante. A ideologia dominante é a da classe dominante, portanto, da classe que detém o poder do Estado. De Platão a Descartes, Spinoza, Kant, Hegel, inclusive Husserl, a questão do Estado é uma obsessão para a filosofia, em geral sob a forma de um apelo nostálgico dirigido pelo filósofo ao Estado para que este julgue por bem escutar aquele, quando não sob a forma do sonho do filósofo-chefe-de-Estado.

Por outro lado, com um instinto político muito seguro, Marx tinha uma ideia clara da importância da questão política e filosófica do Estado. Não pensava somente no Estado burguês existente (daquele que Dietzgen – com a aprovação de Engels – dizia, numa frase dura e célebre, que os professores de Filosofia eram seus lacaios). Não pensava somente no Estado burguês, “a primeira potência ideológica”, como dizia Engels, capaz de impor a forma da sua ideologia a toda produção filosófica. Marx viu muito mais longe.

Pensava na forma do Estado futuro, a que teria de construir-se após a Revolução, de que a experiência da Comuna lhe havia dado uma primeira ideia e que deveria ser não um Estado, mas uma “comunidade” ou, segundo a expressão de Engels, “um Estado que seja um não-Estado”. Em resumo: uma forma totalmente nova que produziria o seu desaparecimento, a sua extinção. Naturalmente, este ponto de vista estratégico de Marx, que subvertia toda a ideia que normalmente se tinha (e que ainda hoje se tem) do Estado, não era uma quimera, mas que repousava sobre uma profunda convicção de Marx: a de que o proletariado, tal como havia sido produzido e concentrado pelo modo de produção capitalista, tal como estava educado pelas grandes lutas de classes, possuía em si mesmo recursos totalmente estranhos ao mundo burguês, em primeiro lugar o recurso de inventar formas de organização saídas da base, tais como a Comuna de Paris e os Soviets de 1905 e 1917, que são um bom exemplo de formas de organização adequadas para fazê-las existir à margem do Estado. Naturalmente, esta visão estratégica de Marx, que previa a destruição do Estado, afetava toda a superestrutura, incluindo as ideologias (e portanto a ideologia dominante, totalmente inseparável do Estado). Não se exclui (pelas razões que interligavam a filosofia tradicional com o Estado e pelas razões que faziam Marx prever a abolição do Estado) que Marx tenha tido sempre a mesma desconfiança a respeito da filosofia e do Estado. Não se tratava de um repelir anarquizante do Estado, apesar de certas afinidades de Marx com os anarquistas, tal como não se tratava de um repelir da filosofia; tratava-se, pelo contrário, de uma profunda desconfiança em relação a uma instituição, o Estado, e uma forma de unificação da ideologia dominante: a filosofia. Ambas pareciam profundamente ligadas entre si, enquanto comprometidas no mesmo mecanismo de dominação da classe burguesa. Pela minha parte, creio que é aqui que radica a razão pela qual Marx se absteve de toda a filosofia produzida como “filosofia”, para não cair na “glorificação do estado de coisas existente”.

Se isto é verdade, Marx legou aos marxistas (cruelmente instruídos pela contraexperiência da ontologia stalinista) uma tarefa de particular dificuldade. Uma vez que, tal como legou ao movimento operário a tarefa de inventar as novas formas de comunidade que transformariam o Estado em algo supérfluo, Marx também legou aos filósofos marxistas a tarefa de inventar novas formas de intervenção filosófica que acelerassem o fim da hegemonia ideológica burguesa. Em suma: a tarefa de inventar uma nova prática da filosofia.

Para nos apoiarmos, por comparação, no Estado revolucionário, que deve ser um Estado que seja um “não-Estado”, isto é, um Estado que tenda à sua aniquilação, a ser substituído por formas livres de associação, pode se dizer, do mesmo modo, que a filosofia que é a obsessão de Marx, Lênin e Gramsci deve ser uma filosofia que seja uma “não-filosofia”, isto é, que deixe de ser produzida na forma de uma filosofia, cuja função de hegemonia teórica desapareça, para dar lugar a novas formas de existência filosófica. E tal como a livre associação de trabalhadores deve, segundo Marx, ocupar o lugar do Estado para desempenhar um papel totalmente diferente do Estado (não um papel de violência e repressão), pode se dizer que as novas formas de existência da filosofia ligadas ao futuro destas livres associações deixarão de ter por função essencial a constituição da ideologia dominante (com todos os compromissos e as explorações que lhe estão associadas) para contribuir para a liberalização e o livre exercício das práticas sociais e das ideias humanas.

E tal como as perspectivas sobre o Estado, esta tarefa da filosofia marxista não é uma tarefa para um futuro longínquo. É uma tarefa de agora mesmo para a qual os marxistas devem se preparar. Marx foi o primeiro a dar-nos o exemplo pondo em prática a filosofia de forma desconcertante e nova, recusando produzir uma filosofia enquanto “filosofia”, mas praticando-a na sua obra científica, crítica e política. Em suma, inaugurando uma nova relação, “crítica e revolucionária” – são as suas palavras –, entre a filosofia e as práticas sociais, que é aquilo que está em jogo e é o terreno privilegiado da luta de classes. Esta nova prática da filosofia serve a luta de classes proletária, sem impor-lhe uma unidade ideológica opressiva (sabemos onde radica essa opressão), mas criando-lhe as condições ideológicas para a liberação e o livre desenvolvimento das práticas sociais.


Veja também: https://lavrapalavra.com/produto/lenin_e_a_filosofia/

Notas:

(1) Conferência pronunciada na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Granada pelo Prof. Louis Althusser da Escola Normal Superior de Paris, no dia 26 de março de 1976.

(2) N.E. Referência à frase escrita na placa na entrada da Academia de Platão: “Aqui só entram geômetras”.

(3) N.E. Termo usado por Platão para designar um tipo de conhecimento, particularmente conhecimento de assuntos matemáticos e técnicos.

(4) N.E. Prefácio à Contribuição à crítica da economia política, de 1859.

 

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