Por Joan Copjec, via “Sex and nothing: bridges from psychoanalysis and philosophy”, traduzido por Amanda Alexandroni
Capítulo do livro: “Sex and nothing: bridges from psychoanalysis and philosophy” de Alejandro Cerda-Rueda
I. Introdução
Neste texto, Copjec debate os termos nos quais a psicanálise compreende o sexual, criticando a substituição do termo “sexo” por “gênero” e rebatendo o argumento da suposta binariedade dessa teoria. A autora resgata, por meio destes debates, a importância de conceber o lugar do sexual na psicanálise como o de um impasse radical.
II. O jogo dos números
Em meados da década de 1970, um aquecimento global começou a derreter a resistência gélida das feministas à psicanálise, graças à publicação na Inglaterra do livro de Juliet Mitchell, “Psicanálise e Feminismo”; ao surgimento na França do grupo “Novas Feministas Francesas”, e ao trabalho nos Estados Unidos da Shoshana Felman, que construiu um argumento convincente a favor de um “Freud Francês” amigável ao feminismo. Por quase uma década, o feminismo psicanalítico floresceu como um dos discursos mais empolgantes e produtivos de seu tempo. Embora não fossem completamente acríticas em relação à teoria do Freud, as feministas ainda sim tiveram profunda consideração pelo fato de que essa teoria foi única ao conferir um status fundamental à diferença sexual e à sexualidade feminina, assim como em fazer das novas experiências das mulheres um problema de extrema importância, capaz de pôr em questão alguns dos pressupostas básicos subjacentes às teorias filosóficas do sujeito e às teorias políticas da comunidade.
Em meados da década de 1980, contudo, sinais de outra mudança no clima da relação entre feminismo e psicanálise já eram aparentes. Teresa de Lauretis, em seu livro inovador, “Tecnologias de Gênero”, articulou o slogan sob o qual os ventos sopraram contrários aos dois discursos, quebrando sua breve aliança: “Uma teoria feminista de gênero indica para uma concepção de subjetividade como múltipla, ao invés de dividida” (De Lauretis, 1987, p. x). As consequências dessa formulação e o interesse crescente que ela suscitou em um rigoroso questionamento da psicanálise não podem ser subestimadas. Em muitos de nós, todavia, surgiu uma sensação desconfortável de que algo estava sendo perdido nessa adoção precipitada da recém-definida categoria de gênero. Como “o fim da meta final da revolução feminista” – pelo menos conforme definido por Shilamith Firestone, “não apenas a eliminação do privilégio masculino, mas da própria distinção dos sexos – parecia se aproximar, alguns passaram a questionar se a diferença sexual seria tão eliminável quanto (esperamos) as diferenças de classes podem ser, e se seria desejável retirar a importância da primeira (Firestone, 1972, p. 10-11).
1) Minha aversão apenas aumentou. Para ser franca, não pretendo opor-me completamente à teoria de gênero, a qual oferece uma importante análise de como as normas sociais e estereótipos modelam as formas como aparecemos para nós mesmos e como consideramos os outros. Portanto, embora eu continue usando o termo “teoria de gênero” ao longo deste capítulo, minha crítica é mais direcionada à parte desta argumentação que reduz a diferença sexual a uma distinção biológica e quer discutir seu papel na teoria da formação do sujeito. Na primeira metade da década de 1980, quando essa polêmica começou a ganhar terreno, a categoria psicanalítica da diferença sexual tornou-se suspeita e foi amplamente abandonada em favor da categoria neutralizada de gênero. Sim, neutralizada; esse é o ponto de vista que vou insistir. Para isso, foi precisamente o sexo da diferença sexual que cai quando esse termo é substituído por gênero. A teoria de gênero não apenas tirou o termo diferença sexual do ‘centro das atenções’; ela removeu o sexo do sexo. Embora os teóricos de gênero continuem falando sobre práticas sexuais, eles pararam de questionar o quê constitui o sexual. Não sendo mais objeto de uma investigação teórica séria, o sexo simplesmente voltou a ser o que era na linguagem comum: uma característica secundária (quando aplicada a sujeitos) ou (quando aplicada a ações) limitado a um subconjunto extremamente restrito – e sem-vergonha. Em síntese, a teoria de gênero reduziu o sexo ao torná-lo um predicato e confiná-lo a um domínio específico da vida.
O afastamento da teoria freudiana do sexo e da diferença sexual implicou que muitas das importantes questões colocadas por ela parecessem estar ultrapassadas, evaporadas de sua urgência. Tomemos, por exemplo, a esgotada crítica do “pan-sexualismo” de Freud. Esse ataque, que Freud teria superestimado a importância do sexo, encontrando-o em todos os lugares, como a causa onipresente de tudo, é impressionante em sua obtuosidade. Observando, corretamente, que Freud estava determinado a pensar sexo e causa juntos, seus acusadores negligenciaram a consideração de que esta reconceitualização dos dois à luz um do outro não deixaria nenhum deles intocados, mas iria, na verdade, mudar nosso senso comum de ambos. O conceito freudiano de sobredeterminação trouxe à tona esse fato, mas isso também caiu em ouvidos moucos, os quais no final, ouviam apenas um excesso: isto é, que a causa das nossas ações nunca são únicas, mas sempre múltiplas. O que deveria ter ficado claro desde a exposição de Freud é que a sobredeterminação não pode ser entendida adequadamente a menos que seja reconhecida a subdeterminação do sujeito. Como sujeitos, não podemos regredir de condição em condição até chegar em alguma instância final que opera sozinha, em uma hora difícil e solitária que determinará nossas ações. Nenhuma necessidade externa ou interna guia os sujeitos, que são, portanto, suscetíveis a encontros fortuitos que interrompem qualquer traçado linear da sua deriva ao longo da vida, em direção a uma série de relações que não fazem sentido de olhar como uma sequência “isso segue aquilo,” porque as relações são definidas por atraso, antecipação, simultaneidade e consciência inconsciente. É precisamente aí, onde ele notou a subdeterminação do instinto animal, que Freud achou necessário inventar o conceito de pulsão, que nunca se tratou de uma pulsão… x, y ou z, nunca conectada por uma necessidade a um objeto particular. O essencial não é simplesmente a substituição de causas por apenas uma, mas também o fato de que o sexo não pode ser localizado em nenhum lugar, em nenhum fenômeno positivo. Se o sexo aparece em todo lugar, é porque não tem um domínio próprio. Freud argumentou que o sexo não pode ser encontrado nem no domínio da biologia nem no da cultura, e no entanto, ele nunca atribuiu a ele um domínio separado e próprio. Ele se manifestou a Freud primeiramente em fenômenos negativos: lapsos, atos falhos, interrupções que indicavam uma descontinuidade na cadeia usual, inesperados deslocamentos na linearidade.
2) A fuga para o múltiplo, concebido como instâncias discretas, teve, é claro, outras inúmeras consequências adversas à teoria da sexualidade. Se a diferença sexual tornou-se problemática para a teoria de gênero é porque a primeira foi presumida como heterossexista. Ela dividia os sujeitos em dois gêneros e implicava uma necessária e/ou natural relação entre eles. (Você vê o que acontece quando você deixa de reconhecer que o sexo emerge como uma teoria de subdeterminação). Por que – a teoria de gênero pergunta – deve ter apenas dois gêneros de pessoas, dois sexos, ao invés de um infinito número deles? Gosto de pensar nisso tal como a distribuição do sexo ao estilo Oprah Winfrey: “Você ganha um sexo e ganha um sexo e ganha um sexo”, no qual o sexo é distribuído a cada um e pode ser possuído tal como um carro ou outro pedaço de propriedade. Mas propriedade, Proudhon ensinou a nós, é roubo, então não estaríamos indo muito longe se acusássemos teóricos de gênero de nos roubar o sexo ao convertê-lo em gênero. Sexo não é uma propriedade ou um predicado do sujeito; ele expropria o sujeito dele menos, desaprisiona sua interioridade ao vinculá-lo em algo comum, ou seja: o gozo.
Gozo? Essa é a forma que Lacan define esse conceito não muito bem entendido do seu Seminário Mais Ainda: gozo é uma “instância negativa” que se opõe à divisão, distribuição, ou retribuição. A palavra deriva de um antigo termo jurídico, usufruto, que concede a alguém o uso de seus meios, permite usufruí-los, mas não adquirir o título legal sobre ele e nem usá-lo até o esgotamento. Para evitar um maior desperdício dessa dimensão comum que nós como sujeitos gostamos, continuemos nossa análise sobre os pressupostos básicos da teoria de gênero.
Primeira questão: automaticamente muitos é superior a dois? Muitos é mais numeroso, é verdade, mas evitemos uma multiplicação precipitada que simplesmente deixaria de lado questões que precisam ser feitas. A proliferação de tipos de sujeito não representaria um retrocesso do pensamento mais do que um avanço teórico? Uma analogia: Freud concebeu as pulsões como fundamentalmente divididas em duas. Apesar de ele nunca ficar totalmente satisfeito com a forma como definiu essa dualidade. Seus contemporâneos entusiastas, entretanto, contribuíram para “melhorar” sua teoria, multiplicando as pulsões de tal forma que cada ação que o sujeito pudesse se envolver fosse explicada pela existência de uma pulsão separada. (Não importa, de novo, que a pulsão nunca foi concebida como pulsão a x, y ou z). Rapidamente tornou-se evidente, entretanto, que essa questão do que causa cada ação não foi respondida pela proliferação ad hoc das pulsões; ela foi apenas adiada. A proliferação de gêneros repete o mesmo erro; multiplica ao invés de pensar. Múltiplo tortuoso ao invés de dividido; por que não múltiplo, porque dividido? A primeira alternativa evita pensar a diferença em favor de simplesmente adicionar um elemento anterior indefinidamente: 1+1+1… De onde vem todos esses uns individuais? O que fazem deles individuais? Em larga medida, eles surgem da observação do senso comum de que existem indivíduos, existem diferenças, o que gera um princípio ontológico (a ontologia do múltiplo) a ser defendido, com poucas questões feitas. É simplesmente dado que um indivíduo vem de si mesmo, que não importa o que faz da desse sujeito esse sujeito particular, é feito tão per se. Essa é a posição nominalista da qual dependem largamente os teóricos de gênero (Gracia, 1994; Corbin, 2007). Permanece um sério problema : os “1” são totalidades para si mesmos e os “+” indica que essa relação foi expropriada deles, justamente a relação que o gozo fornece.
É impossível não simpatizar, até certo ponto, com o raciocínio por trás da fuga da teoria de gênero ao múltiplo, sua tentativa de se livrar de um único abrangente e envolvente no qual todas as diferenças seriam incluídas e consideravelmente reduzidas a variações locais e menores na natureza que as unifica. Estamos certos em resistir a rótulos e marcadores de identidade que poderiam nos congelar em formas essencializadas de ser ou nos agrupariam sob categorias abstratas que não têm existência real, mas apenas conceitual. Mas esse voo não nos leva longe e é necessário traçar outro caminho. Felizmente, temos à nossa disposição um arsenal filosófico que nos foi legado pela – e isso irá te surpreender – longa elaboração do conceito central do monoteísmo: o conceito do Um. A questão dos monoteístas foi de honrar – não apenas teologicamente, mas filosoficamente – a possibilidade de que um Deus pudesse servir como o Deus de todos os povos espalhados pela terra. É fácil ser cínico acerca desse esforço, vê-lo como nada mais que uma máscara de doutrina para ambições políticas da única Igreja determinada a consolidar seu poder e ganhar domínio sobre exércitos foragidos e terras. A filosofia de Guilherme de Occam e outros nominalistas medievais ofereceu aos céticos em relação à Igreja um instrumento afiado para rasgar essa máscara e expor as pretensões da Igreja. Eles declararam que não há nenhuma outra unidade a não ser a unidade numérica, seres individuais por si mesmos e para si mesmos. Não se faz necessário postular um princípio em separado ou outra realidade, pois tudo que torna um homem individual um homem o faz como um indivíduo concreto. Não há universais, não há um homem universal, não há espécies ou gêneros; tais entidades carecem de existência e são simplesmente conceitos fabricados pela nossa mente – ou, de forma mais cínica, pelas mentes que querem ganhar poder sobre nós por meio dessas fabricações.
O efeito de perfuração da posição dos nominalistas produziu, à primeira vista, um apelo radical, mas, em última análise, argumentaremos que a posição dos seus adversários – os realistas, liderados por Duns Scotus – é, na verdade, mais radical. Os realistas sustentavam que as espécies e o gênero não eram grupos arbitrários de indivíduos, mas entidades reais. Argumentando passionalmente pela realidade do universal, eles insistiram em definir uma unidade não-numérica. Ou seja: uma unidade ou Um que não poderia ser contado como um, já que não é determinado, mas aberto e não identico a si mesmo. Por essa razão, um universal real não é capaz de determinar a natureza particular de qualquer indivíduo, e nenhum indivíduo poderia exibir a natureza do princípio, seja este o princípio da humanidade ou Deus.
Filósofos islâmicos medievais contribuíram para o monoteísmo com a conceitualização convincente acerca do conceito do real e uma não-numérica unidade de Deus, que foi expressa de forma sucinta na formulação “Não há Deus, senão Deus”. Deus aparece duas vezes negado nesta formulação. A primeira negação o desloca completamente do âmbito dos seres vivos, da existência humana; e por isso produz a dimensão apofática de Deus que é, portanto, inacessível aos seres individuais em sua não-determinação (Lacan, 1988, p. 158). A segunda negação anuncia a aparição de Deus na dimensão humana, mas o faz sem cancelar a primeira negação. O ser divino aparece em cada ser vivo individual no núcleo mais íntimo desse ser, como o eterno “singular”, a hecceidade ou Anjo de seu ser individualizado; dessa forma, os indivíduos manifestam Deus, mas, de novo, negativamente. A segunda negação nega a superioridade de outra ordem, a exterioridade de um Deus fundador, que afirma não haver outro mundo além deste. “Não há Deus, senão Deus” nega a possibilidade de qualquer indivíduo exibir ou encarnar Deus que ultrapasse a pluralidade de indivíduos como um todo e a cada um individualmente. Consideremos a piada famosa de Marx de que em nenhuma vez ele encontrou nas ruas o homem universal, mas apenas o homem concreto. Os filósofos islâmicos e realistas islâmicos argumentariam, em vez disso, que o universal manifesta-se no homem concreto na medida em que faz parte deles. E ainda sim, esta parte é peculiar não apenas na medida em que é maior do que o indivíduo do qual faz parte, mas também, na medida em que se manifesta negativamente como algo retirado, não concebível ao indivíduo.
A todos os indivíduos subsumidos por um universal abstrato podemos atribuir predicados que os identifiquem: ele ou ela é (em sua natureza) X: homo faber, um animal político; um ser pensante. Contudo, o universal real não responde a este modelo de essências e atributos ou predicados que sustenta o universal abstrato; ao invés disso, o universal real coloca todos esses predicados em questão. Pois, se fosse verdade que a natureza de Deus, ou do homem, ou dos poloneses estivesse realmente presente nesta pessoa aqui e também pudesse estar presente em outra ali, não saberíamos realmente dizer – os realistas argumentam – qual é a natureza de Deus, do homem ou dos poloneses. O universal real retira dos seres individualizados qualquer predicado que lhes possa ser universalmente aplicado. No entanto, o real universal não é um fugitivo do Um, ou uma fuga para o múltiplo, um cético em relação ao grupo pertencente. Ao invés disso, ele postula o Um fugitivo, um Um que foge de si mesmo enquanto ao mesmo tempo multiplica presenças singulares. Poderíamos dizer que o universal real é um excedente vivo capaz de negociar com as circunstâncias históricas, não uma abstração adicionada a um mundo já existente.
Esta discussão parece ter nos levado muito longe da psicanálise, mas minha proposta é que esta última sustenta uma posição realista. É por meio da sua teoria do sexo, posteriormente elaborada também como pulsão, que a psicanálise universaliza a natureza humana como aquilo que não tem natureza ou cuja natureza é radicalmente plasticizada. Desprovida de instinto. Ou seja, se o sexo na psicanálise é um universal, ele o é se não precisamente no sentido de como os realistas medievais entendiam, num sentido que deve muito à polêmica medieval contra o nominalismo. A presença paradoxal em cada sujeito de um excesso opaco, de um núcleo íntimo e inalienável que não pode ser possuído ou abrangido pelo sujeito individual é, como o universal real, uma parte maior do que o indivíduo que o “contém”. Raramente é dado o crédito a Freud por antecipar a acusação que ele bem sabia que aguardava sua incursão na psicologia de grupo – ou seja, que essa incursão era uma incursão ilegítima da psicanálise em um território alheio à sua especialidade. No início da Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud alerta seus futuros críticos ao insistir que um princípio definidor da psicanálise sempre foi de que a divisão entre a responsabilidade individual e do grupo ocorre dentro do próprio sujeito individual. Se a psicologia de grupo foi, de fato, um objeto próprio e legítimo da sua ciência, foi por que ela definiu o indivíduo como uma entidade conjunta, ao mesmo tempo psíquica e social. Para Freud, não havia um sujeito solitário e completamente autônomo, pois cada sujeito individual “continha” um excesso de sociabilidade em um sentido muito preciso, que está bastante alinhado com o universal real dos realistas medievais. Lacan deu a esse excedente de realidade o nome de gozo, precisamente para sublinhar sua natureza coletiva ou comum. Definido por Lacan como “uma herança que [o sujeito] pode gozar”, pode usar, mas não “esgotar”, o gozo é uma realidade social a qual cada sujeito tem um direito não exclusivo (Lacan, 1999, p. 3). O gozo emerge em relação aos outros e é desfrutado em relação a eles, como propriedade comum.
O que importa neste contexto é: o um da qual parte a teoria da sexualidade é o um real, um que é paradoxal, na medida em que não está no um em si mesmo. Esse um se opõe diretamente ao múltiplo com o qual os nominalistas dirigem seu caso de amor. A partir desse ponto de partida, podemos deixar mais claro que o dois que está em jogo no sexo não se enquadra naquele número limitado ao qual os nominalistas se opõe. A diferença sexual não é concebida como uma redução do múltiplo a um múltiplo menor – apenas dois – porque o dois não é simplesmente um segundo, adicionado ao primeiro. Ou seja: está errado se pensa que um mais um lhe dará o dois da diferença sexual.
Se o dois da diferença sexual foi pressionado pela teoria de gênero para dar lugar à multiplicidade de posições de gênero, foi para respeitar a variabilidade histórica e a construção do sujeito. Embora se reconhecesse que a diferença sexual era concebida pela psicanálise não como um dado biológico, mas como um efeito de uma técnica ou aparelho específico – nomeadamente a linguagem -, a nova onda das feministas preocupava-se com o fato de a concepção estruturalista da linguagem ser a-histórica e produzir efeitos que fossem invariáveis. Por essa razão, o aparelho (l’appareil) de linguagem foi removido do seu papel de forjador do sexo e substituído por tecnologias ou dispositifs historicamente variáveis – isto é, a complexa maquinaria de práticas sociais e conhecimentos, relações de poder, normas e ideias – responsáveis por contruir posições e relações de gênero.
Entretanto, o recurso das tecnologias de gênero rapidamente enfrenta um problema: o determinismo tecnológico. Como garantir que o que aparece da máquina não foi simplesmente colocado nela, que o sujeito do gênero não foi completamente despojado de autonomia? Este problema foi resolvido pela bem conhecida e anódina verdade: as tecnologias precisam ser continuamente reimplantadas, repetidas, mas a repetição sempre falha porque nada pode ser repetido da mesma maneira duas vezes. Ou seja: não existe repetição (Zupančič, 2008). Foi nessa negação da repetição que a teoria de gênero apostou sua esperança, pois a condenação da repetição significava que a variação era inevitável e essa margem de variação, essa pequena diferença, foi colocada como lugar da resistência, plataforma de lançamento de milhares de pequenas diferenças.
O epílogo de Temor e Tremor relata uma anedota divertida à qual Kierkegaard responderia implicitamente no livro imediatamente subsequente, Repetição. “Heraclito, o obscuro” teve um discípulo que se inspirou tanto na fina tese de seu mestre de que “não se pode banhar-se no mesmo rio duas vezes” que ele mesmo não conseguiu evitar de enfeitá-la ainda mais: “não se pode fazê-lo nem mesmo uma vez” (Kierkegaard, 1983, p. 123). Em algum lugar Lacan, ao falar de Heráclito, refere às “águas turvas desse [último] ocultismo”, talvez pensando não apenas no Jung, mas também no antigo epíteto associado ao nome de Heráclito, pois Lacan acena afirmativamente para o argumento de Kierkegaard ao contar a anedota do discípulo excessivamente zeloso. Qual é exatamente o ponto de Kierkegaard? Que esse discípulo minou inadvertidamente o propósito de seu mestre; pois se nos contentamos com a rejeição da repetição como impossível, não podemos – como pretendia Heráclito – afirmar movimento e mudança. O que a negação direta da repetição obscurece é um fato importante; se não houvesse repetição, então a negação eleática do movimento (com a qual Kierkegaard abre Repetição) seria válida. Mas não é válida; há movimento, há mudança, e esses são possíveis porque há repetição.
A teoria de gênero baseia-se na impossibilidade de que algo possa alguma vez ser “repetido ao contrário”, ou seja, que um ato ou experiência que em alguma vez ocorreu possa ocorrer ou ser experimentado da mesma forma novamente. Os gregos chamam, isso que os teóricos de gênero negam, de recordar. Kierkegaard, entretanto – e Freud, depois dele – distinguem a lembrança da repetição, que procede na direção oposta, “recordando para frente” um evento que nunca ocorreu ou uma memória que não “despertou […]…uma experiência” (Kierkegaard, 1983, p. 131). Um dos primeiros exemplos de Freud sobre esse processo esclarece o que está em jogo na repetição em oposição à recordação (Freud, 1950a [1895]/1966, p. 356). Emma sofre de fobia ao entrar sozinha em lojas. Acontece que a origem da fobia não reside num único incidente, mas em dois incidentes considerados em conjunto. No primeiro, um lojista agarra seus genitais através de suas roupas. Um observador externo poderia dizer que ela foi submetida a um assédio sexual neste incidente; mas Emma não era uma observadora externa, e ela mesma, jovem demais para saber qualquer coisa sobre sexo, não poderia e não experienciou a agressão como sexual. Um tempo depois, passada a idade da puberdade, Emma novamente entra em uma loja sozinha. Dessa vez, dois assistentes de loja riem das suas roupas. Enquanto um observador externo não veria neste incidente nenhum indício de agressão sexual, Emma, que relembra a cena anterior mais adiante, vivencia aquela cena anterior como se fosse a primeira vez e sente um súbito “alívio sexual”.
Esse exemplo canônico de repetição é também – e significativamente – uma ilustração do que Freud chama de “início di-fásico da sexualidade”. O que é notável neste exemplo é o fato de o sexo parecer não estar localizado em nenhuma das cenas ou fragmentos apresentados na análise. No primeiro, sexo está ausente da experiência, enquanto no segundo, está ausente das ações que ocorrem. Poderíamos ficar tentados a apresentar novamente a velha acusação de pansexualismo, ou a atualizá-la, acusando Freud de perpetrar uma espécie de “ilusão cinematográfica”, não ao unir dois quadros estáticos em uma linha do tempo abstrata e homogênea para criar a ilusão de movimento, mas fazendo algo similiar: unindo duas cenas perfeitamente inocentes em uma mesma linha do tempo abstrata para criar a ilusão de sexo. Bastaria parar a projeção e ambos – o movimento e o sexo – desapareceriam, como uma miragem.
Para salvar ambos, teríamos que seguir o conselho de Deleuze e reconhecer que os instantes ou “quadros” não são estáticos, imóveis, mas antes, seções móveis, fragmentos, precisamente na medida em que são figuras incompletas – “em processo de formação ou dissolução” – de transformação. Este simples reconhecimento faz da sequência de fragmentos uma “análise imanente do movimento”, ou – no exemplo de Emma – do sexo, no qual o movimento ou sexo aparece como o elo ativo entre os instantes e cenas (Deleuze, 1986, p. 6). Essa análise é considerada imanente por Deleuze porque se agarra às figuras e cenas na medida em que se desdobram no tempo, como figuras e cenas finitas. Ou talvez devêssemos dizer: porque apreende o finito de maneira imanente. Propomos este refinamento a fim de destacar que uma análise imanente considera o finito não como algo limitado a um período de tempo específico ou circunscrito cronologicamente, mas como algo que, em sua singularidade inerente, não tem termo, e como tal, repele a circunscrição.
Se o finito, tratado de forma imanente, não é definido por um limite que o demarca temporalmente, ele, no entanto, e por essa mesma razão, fica sujeito a um outro tipo de limite. Não por aquele que o separa como um segmento do tempo em curso, mas aquele que mergulha em seu meio. Este último limite injeta no ser finito uma heterogeneidade que o divide internamente – ou melhor – o divide em duas fases. O sujeito finito – sujeito ao tempo – está sujeito ao atraso e não ao imediatismo do tudo-de-uma vez, ou seja, a uma ruptura, então, no tudo de uma vez.
É importante insistir nesse ponto para evitar a suposição automática de que os intervalos ou rupturas são características apenas de uma noção abstrata de tempo, noção essa que deve sua natureza ao fato de quebrar o fluxo vital do tempo em partes descontínuas de tempo morto. Supõe-se que uma noção de tempo não abstrata e imanente restauraria o fluxo contínuo, eliminando as interrupções. Na verdade, porém, o sujeito finito não está imediatamente presente em um desenrolar de eventos contínuo, mas em rupturas, atrasos, obstáculos, pontos parados, para os quais Freud constantemente chamou atenção através da invenção de uma série de conceitos, incluindo: “período de latência” que divide as duas cenas da sexualidade no caso Emma; “não excitabilidade periódica”, que interrompe o funcionamento psíquico; e o “sistema mnemônico” que ele instalou entre a percepção e a consciência, separando-os, interrompendo sua continuidade. Em seu “Projeto para uma psicologia científica”, Freud descreve as percepções como efêmeras demais para deixar qualquer vestígio, o que significa que o sistema perceptivo permanece imaculado, inocente e perpetuamente pronto para receber quaisquer impressões, enquanto a consciência é concebida como uma defesa tardia contra as memórias inconscientes que já foram registradas. Embora este modelo seja um pouco alterado em “Uma nota sobre o bloco mágico”, a disjunção entre percepção e consciência mantém-se proeminente e leva Freud à sua conclusão firmemente declarada: “esse método descontínuo de funcionamento do sistema percepção-consciência está na base do conceito de tempo” (Freud, 1925a/1961, p. 231). (Dado seu comprometimento prematuro e contínuo com esses modelos de um tempo fora do comum, é surpreendente que Freud tenha sido alguma vez associado a uma teoria do desenvolvimento biológico contínuo). O ponto crucial é este: Freud dá à sexualidade a mesma estrutura que dá à temporalidade do funcionamento psíquico. Esta relação não baseia-se em mera analogia; nenhum termo – tempo ou sexo – tem prioridade sobre o outro. Os dois são co-originários. O sujeito é sexuado na medida em que é finito, sujeito ao tempo. Ou: o sexo não pertence à essência do sujeito, mas à sua historicidade; define sua vida de prazer/desprazer na medida em que ela é finita, sujeita às vicissitudes do tempo.
Na lógica temporal do funcionamento psíquico, assim como na lógica sexual brilhantemente iluminada pelo caso Emma, dois incidentes ou momentos de tempo são divididos por uma pausa; o segundo repete o primeiro, mas não exatamente. Essa não coincidência é o que desencadeia a negação ingênua e historicista da repetição; “não-exatamente” não é o suficiente pela perspectiva historicista. Para Freud, no entanto, as coisas vão por outro caminho; é a não coincidência, a falta de sincronia que a repetição repete. A Emma pós-púbere encontra na cena anterior algo – chamado sexo – que falta, embora sua descoberta seja anacrônica, já que o sexo não faltou para a Emma pré-púbere tal como para o observador distante que a Emma mais velha virá a ser. “O anacronismo” – ou heterogeneidade temporal – é, além disso, duplicado, pois não apenas o passado acaba sendo infectado pela sensação de um presente deslocado (introduzindo assim uma sexualidade prematura, que chega muito cedo para ser sentida), mas o presente também parece ser infectado por um sentido deslocado do passado (criando uma experiência tardia de sexo como uma espécie de resquício da cena anterior). Cedo demais/tarde demais: esses são os tempos da sexualidade, bem como os tempos do próprio tempo.
Os anacronismos produzidos pelo início bifásico do tempo testemunham mais acertadamente a persistência das pausas em detrimento do fluxo entre cada uma das duas cenas, precisamente porque o que é produzido não é um fluxo de tempo homogêneo. Emma não torna o seu eu mais velho presente para o que não poderia estar presente para o seu eu mais jovem (não há aqui nenhum sentido de maturação ou educação contínua), nem reconstitui o que não era como o que é agora. Cada cena é, portanto, internamente perturbada, na medida que Emma se lembra mais adiante do que não aconteceu ainda como o que já aconteceu.
Contudo, em vez de uma dupla falha de ignição, testemunhamos aqui o verdadeiro início da sexualidade. Emma está sexuada. O evento do tempo sexual acontece e para prová-lo há uma explosão repentina – um agora – na liberação sexual. Esse agora, essa explosão, acontece numa fração de segundo, um segundo que divide em vez de reunir as duas cenas. Enquanto isso, o movimento, a passagem ou fluxo, não se dá entre as duas cenas, mas dentro de cada uma delas. As duas cenas da loja permanecem o antes e o depois daquilo do que as dividem e as impede de fluir juntas, mas cada uma sofre uma alteração não pela outra, mas em relação à outra. Como resultado disso, cada cena se abre, perde sua contenção em si mesma. Novamente é preciso ter cautela para entender que isso não significa que uma cena venha a conter a outra. Em vez disso, em ambos os encontros de Emma – com o dono da loja no primeiro caso, e com os atendentes no segundo – tornam-se irredutíveis ao momento presente em que ocorrem. E é exatamente aí que a continuidade entra, encontra seu fundamento: a cena posterior encontrará na anterior seu ponto de gênese – embora isso não esteja no que aconteceu lá, mas no que não aconteceu.
Respeitar a história é permanecer consciente ao fato de que não apenas o passado impacta o presente, mas também que o presente influencia o passado. Ambos colaboram entre si, fluem um para o outro, mas nunca se fundem completamente. Há continuidade temporal, mas apenas porque há rupturas temporais. O sujeito é finito, no tempo, apenas porque está dividido por ele, fora de sincronia com ele. Apostando tanto nas negações da divisão e da repetição, a teoria de gênero, eu diria, baseia-se não apenas em uma não abstrata e neutra noção de sujeito, mas também em uma noção abstrata de tempo.
III. Foucault entra na mistura
Tendo expressado algumas das minhas objeções à virada em direção à teoria de gênero na década de 1980, gostaria de reiniciar a discussão a partir de um momento histórico diferente: o período da década de 1920, quando eclodiram debates acalorados em torno da teoria freudiana da castração como essencial para a formação do sujeito sexuado. O que muitos no incipiente campo da psicanálise – incluindo Ernest Jones, Helene Deutsch, Melanie Klein, e Karen Horney, entre outros – acharam desagradável foi a universalidade da castração, sua indiferença à anatomia dos sujeitos que supunha-se que ela traria à existência. Se a castração visa o falo e a menina não tem um, segundo o raciocínio, então a teoria não lhe faz justiça e deve ser modificada para levar em consideração suas diferenças anatômicas e biológicas em relação ao menino. Juliet Mitchell resumiu esses primeiros debates da seguinte maneira:
A oposição à Freud via o conceito do Complexo de Castração como depreciativo às mulheres […]. As mulheres, por assim dizer, precisavam ter algo próprio. O problema sutilmente se desloca do que distingue os sexos para o que cada sexo tem de valor que lhe pertence exclusivamente. Nesse contexto, e na ausência do papel determinante do complexo de castração, é inevitável que haja um retorno à explicação biológica da qual Freud deliberadamente se afastou (Mitchell, 1982, p. 20).
A primeira coisa a ser notada é que essa oposição inicial a Freud estava direcionada especificamentea à sua concepção “monocêntrica” do sexo, ou seja, sua tese de que sexo e a diferença sexual só poderiam ser pensados com base no Um (Benslama, 2006). Há apenas uma libido, Freud insistiu, e é a masculina. Abandonando essa tese contra-intuitiva como uma praga, seus oponentes acabaram reduzindo a diferença sexual à diferença pré-linguística e bruta entre os órgãos sexuais de meninos e meninas. A segunda coisa a ser notada é que a mudança de sexo para gênero, que ocorreu durante os debates no final da década de 1980, resultou em um erro simétrico. A eliminação da diferença sexual em favor de um estudo das tecnologias sociais de construção de gênero deixou a biologia completamente para trás e produziu sujeitos sem nenhum verdor, sujeitos sem corpos ou, mais precisamente, sujeitos sem órgãos sexuais (no sentido do que a psicanálise os definiria).
Devido ao fato de que grande parte do trabalho na construção social de gênero baseou-se, para sua inspiração, no argumento de Michel Foucault contra a psicanálise em História da Sexualidade (Volume 1), justifica-se uma segunda análise do argumento. Foucault, confrontado pelas exigências estudantis de “liberação sexual” durante e após os argumentos de Maio de 1968, propôs neste trabalho mostrar que esta demanda por liberação sexual era politicamente equivocada, o grito de guerra de uma revolta falha alimentada, em grande parte, pela “hipótese repressiva” de Freud. Diante dessa dura acusação, é necessário ser preciso acerca do que o pai da psicanálise realmente disse sobre repressão: ele disse, especificamente, que ideias são suscetíveis à repressão e, uma vez reprimidas, buscam retornar à consciência; mas isso deixa aberta a questão se o sexo é reprimido. No O avesso da Psicanálise, seminário de 1969-1970 que ele ministrou em resposta às mesmas manifestações de 1968, Lacan destacou que a afirmação completa de Freud era que, em oposição à ideias, as únicas que podem ser reprimidas, o afeto (ou gozo, no vocabulário de Lacan) é deslocado (Lacan, 2007, p. 144). Qual o propósito dessa distinção? Ela nos permite observar que o afeto não é inacessível à consciência, não escapa ao sujeito da mesma forma que faz uma ideia reprimida. Pois, se há sempre a chance de uma ideia reprimida conseguir entrar e ser reconhecida pela consciência, não há nenhuma chance de que o gozo seja algo além de deslocado em relação à consciência; ele nunca encontrará um lugar próprio na consciência. É essa distinção crucial que direciona o aviso de Lacan de que, ao exibirem sua sexualidade, os estudantes estavam, na verdade, permitindo-se serem escravos de um regime que os manipulavam (Lacan, 2007, p. 208). Se eles procuravam uma sanção na teoria freudiana do sexo para essas autoexibições, para suas tentativas de “exteriorizar” seu gozo, estavam batendo na porta errada. E também estava Foucault quando tentou atribuir uma parte significativa de culpa pela preocupante ascenção da scientia sexualis (a higiênica, confessional, deixe-tudo-sair do sexo) na porta da Bergasse 19. O sexo nunca poderá ser exibido porque não é nada além de deslocamento oscilante e perturbador que desequilibra permanentemente a identidade do sujeito. Em síntese, Foucault atribuiu a Freud uma posição que ele nunca sustentou, e depois atacou-a, argumentando que, longe de exigir liberação das algemas do poder, o sexo opera em solidariedade com ele; o sexo, a noção de sexo, insistiu Foucault, está totalmente saturada de poder.
Na verdade, Lacan e Foucault estava no mesmo lado em relação à forma como o sexo havia se tornado – erroneamente – um fator político durante este período e ao papel que estava sendo atribuído a ele no novo paradigma da dominação humana. Ambos advertiram os estudantes de que a demanda por liberação sexual não se opunha ao poder, mas, ao contrário, operava em seu favor. No que discordavam era na definição do significado do sexo, tal como concebido pela psicanálise. Lacan argumentou fortemente que o sexo não é reprimido no sentido dinâmico, que o mecanismo da repressão não se aplica a ele, e que por esse motivo, não fazia sentido dizer que o sexo procurava ser libertado da repressão. Lacan, por isso, incentivou os estudantes a não sacrificar seu prazer exibindo-o para aqueles no poder, expondo-o como se isso fosse um predicado – mais: o maior deles – da sua identidade. Na visão de Foucault, o sexo era nada mais que uma construção fictícia de poder que servia para vincular os sujeitos a identidades unificadas, determinadas e normativas. A oposição política ao biopoder deve assumir a forma, portanto, não de libertação de identidades sexuais suprimidas, mas de liberar-se dela, libertando-se da classificação pelas categorias. Assim, enquanto Lacan e Foucault foram aliados em sua oposição à exigência por liberação do sexo, alegando que esta exigência era um artifício do poder, Lacan colocou toda sua energia em mostrar que a sexualidade, ou mais precisamente, o gozo, não respondia à oposição liberação/repressão e castigou o gozo reestruturado pela exigência da liberação sexual como uma farsa, enquanto Foucault perseguiu a ideia de que sexo e a exigência por liberação, de ser conhecido, de afirmar a própria identidade, estavam inextricavelmente interligados.
Porém a alegação histórica original pela qual História da Sexualidade é hoje mais conhecida é a seguinte: ocorreu uma mutação no final do século XVIII que culminou naquilo que Foucault chamou no final desse livro de “biopoder”. A mutação específica que deu origem a esse novo regime ocorreu, em suas palavras, no “modo de relação entre a história e a vida”. Porque, enquanto a vida anteriormente era vista como fora da história, “em seu elemento biológico”, ela agora também estava colocada “dentro da historicidade humana, [onde era] penetrada pelas técnicas e poderes desta última” (Foucault, 1978, p. 143). Autor de uma introdução a “Sonho e Existência” de Ludwig Binswanger, Foucault endossou o argumento apresentado por Binswanger, especificamente que “a vida considerada como função [como instinto] não é a mesma do que a vida considerada como história”; as duas são, por sua própria natureza, incomensuráveis e é “sua incomensurabilidade que justifica a existência de ambos os conceitos, cada um dentro de sua esfera” (Foucault & Binswanger, 1993, p.102). Esse “cada um dentro de sua esfera”, a separação absoluta dos termos, é colocada em perigo toda vez que sua incomensurabilidade é ignorada, pois neste ponto, um dos termos começa inexoravelmente a anexar o outro. Foucault fornece essencialmente uma ilustração histórica da tese de Binswanger em História da Sexualidade quando argumenta que biopoder é a anexação da vida pelo poder e que essa particular forma de negar a incomensurabilidade da vida e da história foi “um elemento indispensável no desenvolvimento do capitalismo” (Foucault, 1978, p. 141)
A tomada das funções vitais pela história humana (essa última consistindo não apenas de técnicas e poder, mas também em linguagem e significado, tudo que constitui o vivido da experiência da vida) é o inevitável resultado do “novo modo de relação” que apaga a radical distinção entre funções vitais e experiência vivida. Mas porque há, de fato, uma divisão radical, porque os termos são incomensuráveis – como Foucault, seguindo Binswanger, afirma – aquilo que finge forjar uma relação entre os termos, ou forja uma relação fraudulenta, deve em si mesmo ser fraudulento ou, como Foucault colocou, “uma miragem” (Foucault, 1978, p. 157). No relato de Foucault, a “miragem” que nos permite permanecer cegos à incomensurabilidade da vida e da história humana é precisamente o sexo, na medida em que desempenha uma função sintética: “[A] noção [biopolítica] de ‘sexo’ tornou possivél juntar, numa unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações, e prazeres, e permitiu fazer uso dessa unidade fictícia como um princípio causal, um significado onipresente, um segredo a ser descoberto em toda parte” (Foucault, 1978, p. 154). (Uma vez mais o mal compreendido conceito de panssexualismo é tratado com desprezo).
Foucault está reivindicando, efetivamente, que a scientia sexualis, tentou fazer a ciência das relações, da junção de termos incomensuráveis e disjuntos. Se a entidade fictícia, sexo, foi concebida como uma “coisa com propriedades intrínsecas e leis próprias” (Foucault, 1978, p. 154), essas propriedades eram aquelas que definiam uma suposta comunidade entre termos distintos e incompatíveis, e suas leis eram aquelas que tornavam as relações entre eles previsíveis. O estabelecimento de uma comunidade e de relações previsíveis apoiavam a crença de que a vida poderia ser gerida e feita para produzir maiores ganhos; também sustentavam o desenvolvimento de técnicas que colocavam essa crença em prática.
Essa tese histórica, por mais ousada e complexa, baseia-se, no entanto, em uma observação bastante comum. Foi frequentemente observado que as oposições binárias, ao afirmarem se opor a dois termos, tendem na verdade a negar o poder negador de um desses termos. Assim neutralizando, o segundo termo, ou o termo marcado, perde seu valor independente e é absorvido, suprimido pelo primeiro termo, não marcado. Vimos que nos debates que ocorreram na década de 1920 sobre a sexualidade feminina, a oposição entre biologia e formas simbólicas desabou em favor da biologia, enquanto o oposto aconteceu nos debates sobre teoria de gênero nos anos 1980: a biologia ou a vida vital foi subsumida nas formas simbólicas e produziu sujeitos descorporificados ou corpos sem órgãos sexuais. Não é preciso acrescentar que a oposição masculino/feminino é o exemplo mais conhecido disso, pois nessa suposta oposição, o termo feminino foi frequentemente mostrado como tendo apenas o valor de uma exceção menor, facilmente absorvida pelo termo não marcado, o termo masculino que representa ambos. O que foi novo ou único para a biopolítica, então, foi a invenção de algo chamado sexo, que permitiu que a própria vida fosse subsumida pela história. Antes disso, o sangue e a consanguinidade cumpriram um papel relevante nas maquinações do poder, mas com a invenção da miragem sexual, as lealdades hereditárias e as consanguíneas tenderam a ser minimizadas – se não foram completamente eliminadas. O biopoder e a economia globalizada do capital passaram a depender de uma noção mais individualizada de sujeito, menos sobrecarregada pela antiga ordem de lealdades hereditárias. A invenção do sexo, diz Foucault, ajudou na construção de uma noção completamente individualizada do sujeito, uma noção que fez desaparecer o universal realista. Ou: questões de biopoder na era do sujeito múltiplo e não do sujeito dividido.
Em uma entrevista que concedeu à televisão francesa apenas alguns antes anos da publicação da História da Sexualidade, Lacan fez uma afirmação tão diametralmente oposta à de Foucault que paralisa: “Voltar ao zero, então, sobre a questão do sexo, já que de qualquer forma, esse foi o ponto inicial do capitalismo: livrar-se do sexo” (Lacan, 1990, p.30). (Declarando de outra forma, como argumentarei, a mensagem de Lacan é esta: o capitalismo fez o sexo – aquilo que no sujeito é mais do que o sujeito – desaparecer). A entrevista de televisão foi exibida durante o tempo que o próprio estava voltando ao zero, voltando às bases em seu Seminário Mais, ainda (1972-1973) sobre sexo, relação sexual e sexualidade feminina. Em retrospecto, todo o seminário pode ser lido como um ataque preventivo a má interpretação feita por Foucault sobre a problemática freudiana do sexo. Responsável por despertar grande parte do interesse feminista na psicanálise nos anos 1970 na França, e depois, na América Anglo-Saxônica, o seminário está repleto de avanços conceituais que não foram tão desafiados pelos teóricos de gênero na década de 1980 ao rejeitarem a psicanálise e a diferença sexual, mas foram ignorados ou deixados de lado. A formulação pela qual Mais, ainda tornou-se notório é a que afirmava “Não há relação sexual” (Il n’y a pas de rapport sexuel), embora o significado dessa afirmação tenha sido imediatamente banalizado, tornando-a não merecedora da atenção que recebeu. Aceito como um esforço de expor o fato de as relações sexuais serem inevitavelmente carregadas de compromisso e decepções e, em última análise, condenadas ao fracasso, esta formulação negativa foi abraçada como uma incontestável e pessimista verdade, e a admissão do seu fracasso, foi celebrada como uma sabedoria política sóbria.
É um pouco surpreendente que esse impulso de trivialização não ter sido contido ao pararmos para perguntar por que essa psicologia barata escolheria se expressar nessa forma particular, isto é, como uma negação da frase impessoal, il y a (existe), uma frase cheia de ressonância filosófica. Na filosofia, essa frase é regularmente empregada para afirmar não algo, mas o fato de que esse algo é, que existe. Em sua estrutura, assim, a frase parece acrescentar aos seres um suplemento do Ser. Tudo acontece como se o verbo ser ficasse tão atrofiado que precisasse ser sustentado por um suporte protético do Ser. Dada essa perspectiva filosófica, fica claro que a declaração de Lacan de que não há relação sexual, não nega que tais relações existam, mas sim, afasta o suporte do Ser, que serve para “pré-compreender” essas relações, transformando-as em prescrições ou fórmulas.
Se não há nenhum apoio ou suporte, nenhuma “pré-compreensão ontológica” do ser, nenhum Ser comum a todos, isso significa – nesse caso – que os sexos são incomensuráveis, que eles não tem nada, nenhum Ser, que lhes seja comum. A noção de sua complementaridade, que poderia concebê-los como duas partes de uma humanidade comum, é assim, fortemente rejeitada e a observação freudiana de que homens e mulheres parecem estar psicologicamente separados é levada ao extremo: homens e mulheres são considerados como pertencentes a diferentes espécies. Deve-se notar, além disso, que o abandono do Ser protético está relacionado a um segundo gesto ao qual Lacan se refere explicitamente como o “decepamento do predicado” (Lacan, 1999, p. 11). O texto de Lacan é particularmente recôndito nesse ponto, embora o argumento permaneça intacto. Aqui, com um pouco mais de elaboração, está o que diz. Recusando no primeiro gesto o suporte de um ser comum, ou ao recusar dizer “um ser é”, o que implicaria que “esse ser é uma coisa que é, que essa existência é algo que existe” (Corbin, 1998, p. 208), podemos assim “cortar o predicado”, dizer, por exemplo, que “o homem é” sem dizer o quê. Agora, se “homem é” pode ser considerado um enunciado completo, que não requer um predicado para completá-lo, isso ocorre porque o verbo “ser” não é mais compreendido como simplesmente uma cópula que liga o sujeito a um termo de predicado. A remoção da prótese, que assim permite decepar o predicado, atesta, pelo contrário, que o estatuto do verbo “ser” é verbal, ativo, que ser é agir. Dizer o “homem é” sem sentir que é preciso dizer que ele é uma coisa ou outra é reconhecer que sua existência não é uma coisa, mas um ato de vir a ser. Aqueles que pensam que Lacan se afastou da tradição freudiana para algum território filosófico estrangeiro fariam bem em reler o ensaio de Freud sobre “Feminilidade”, no qual o mesmo ponto é defendido: “em conformidade com sua natureza particular, a psicanálise não tenta descrever o que é uma mulher – ‘esta seria uma tarefa que dificilmente poderia realizar’ – mas investiga como ela vem a ser” (Freud, 1933a/1957, p. 116). Como ela vem a ser, não como ela é construída como mulher pela sociedade (como esta observação foi interpretada erroneamente).
IV. O mito da terceira substância
O infame mito de Aristófanes dos dois sexos como duas metades de um todo eternamente em busca um do outro, é ridicularizado e deslocado pelo Lacan no Seminário Mais, ainda por um contra-mito jocoso da “terceira substância”. Lacan começa, aparentemente resignado, observando: “Hoje em dia, bem, simplesmente não temos tantas substâncias. Temos a substância pensante e a substância extensa” (Lacan, 1999, p. 21). Essa afirmação é uma verdade sem controvérsias; Descartes reduziu o número de substâncias a duas, e os herdeiros da sua simplificação têm estado intrigados desde então com o problema de como juntá-las. Feita essa afirmação anódina, no entanto, Lacan torna-se ainda mais audacioso, declarando em seguida que para a psicanálise duas substâncias simplesmente não são suficientes. Para compensar esse déficit, ele postula, portanto, uma terceira, que batiza de substância gozante (la substance jouissante).
Se ele não tivesse precedido esse mito com uma advertência contra transformar automaticamente substantivos em substâncias, se ele não tivesse acabado de argumentar efetivamente que o ser não é uma substância, mas um ato, poderíamos ter ficado tentados a pensar que Lacan estava afirmando aqui que o gozo é uma substância que pode ser adicionada às outras duas para formar uma ligação entre elas, aquela que desapareceu pelo menos desde Descartes. Lacan estaria então cometendo diante de nossos olhos o crime com o qual Foucault estava se preparando para acusar a psicanálise: o crime de inventar uma coisa chamada sexo que funcionaria como uma miragem, como um ponto de fuga onde a incomensurabilidade radical entre o que pode ser pensando, experienciado, vivido historicamente e o funcionamento vital de nossos corpos seria ofuscado. Mas Lacan tentou nos vacinar contra essa leitura equivocada de gozo ou, em última instância, do sexo, no sentido Freudiano. Freud, já sublinhamos, afirmou que a sexualidade do sujeito não era determinável nem pela ciência física nem pelo estudo psicológico do comportamento social; a sexualidade não pode ser apreendida, no senso Freudiano, nem como anatomia nem como convenção (Freud, 1933a/1957, p. 114). Contudo, nem o gozo nem a sexualidade são concebidos como uma terceira coisa, como o elo que falta para suturar natureza e cultura, prazer e sentido, como cura para a divisão que os separa.
O contra-mito da “terceira substância” desafia o mito dos sexos separados ansiando serem reunidos novamente, invocando a própria “contra-mitologia” de Freud sobre pulsão. Em uma leitura superficial, a amplamente desconsiderada e metapsicológica “teoria da pulsão” pareceria menos desafiar do que satisfazer o anseio de reunir o que foi separado, pareceria confirmar a tese de Foucault de que o conceito de sexo era justamente o tipo de legitimação que o biopoder necessitava para subsumir as funções vitais na vida política. Escutemos, com a acusação de Foucault em mente, essa definição familiar de pulsão dada por Freud: pulsão “aparece para nós como um conceito fronteiriço entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos oriundos de dentro do corpo que alcançam a mente, como uma medida de exigência de trabalho imposta à mente como consequência da sua conexão com o corpo” (Freud, 1915c/1957, p. 122). Essa definição pode ser mal interpretada e sugerir que a pulsão, que ocupa a fronteira entre o psíquico e o somático, é o elo perdido que os liga um ao outro.
Contudo, o mito da terceira substância rejeita a interpretação equivocada da pulsão freudiana acima mencionada, relegando-a ao museu do curioso, e destrói a noção de que o sexo é um terceiro termo separado que faz com que a incomensurabilidade dos termos binários desapareça. Se realmente considerarmos o posicionamento de Freud acerca da pulsão como arcaico, somos obrigados a considerar a substância do gozo como anterior às “substâncias” que emergem ao longo de sua fronteira. Em outras palavras, a ruptura traçada pela pulsão precede e dá origem àquilo que ela rompe. No entanto, o sexo ou substância de gozo, é responsável não apenas pela disjunção radical entre as duas entre si, mas também pela disjunção interna de cada um. Sexo, dessa maneira, se apropria da dimensão substancial, ou fechada em si mesma, de cada uma das chamadas substâncias. Antes de seguir, contudo, quero afirmar novamente o mais claro possível o argumento até agora: enquanto Foucault argumentou que o biopoder, auxiliado pela teoria freudiana de sexo, elimina o espaço vazio entre vida como função e vida como experiência histórica, ou entre vida e lei, eliminando assim o espaço político em que cada ação humana é possível, Lacan argumenta o oposto: Freud concebe sexo como aquilo que ocorre e mantém aberto esse espaço.
Se o ser como tal é sexuado, se o ser – definido como um ato – está intrinsecamente ligado ao gozo, como sustenta Lacan, devemos procurar por evidências dessa afirmação em cada uma duas substâncias que são “hoje em dia” assumidas para esgotar o campo de ser. Lacan volta-se primeiro para a substância pensante para examinar o que acontece com ela quando Freud aparece em cena vendendo sua teoria da sexualidade. Descartes, que a batizou de res cogitans definiu a função da “substância pensante” como a formulação de ideias claras e distintas, fato que faz com que a instrução que Freud dava a seus pacientes – não que eles devessem pensar claramente sobre o que os afligia, mas que deviam, na verdade, dizer qualquer bobagem que lhes viesse à mente – parecer escandalosa. Ideias indistintas e absurdos desordenados adquirem com Freud um valor que deixaria Descartes perplexo. Mas por que? Em “Projeto para uma psicologia científica”, em uma declaração que altera profundamente a res cogitans, Freud afirmou que “é em relação a um próximo (Nebenmensch) que um ser humano aprende a conhecer” (Freud, 1950a [1895], p, 331). A premissa freudiana é que ao pensar, o incentivo para a atividade que nós chamamos de pensamento, está associada a esses próximos, que foi – Freud afirma – nosso primeiro objeto de satisfação. Esse objeto primário é, contudo, enigmático, permanece conosco para sempre não como uma memória familiar e afetuosa, mas como uma coisa, um resíduo que escapa ao julgamento.
Essa coisa, esse res, é exatamente aquilo que vai dessubstancializar a substância pensante. Tal como na clássica noção de uma substância subjacente, também se diz que essa coisa permanece conosco para sempre, que nunca nos abandonará, e portanto, será a condição de nossa permanência ou persistência como sujeito pensante. E, no entanto, embora a substância subjacente garanta a auto-identidade do sujeito, essa coisa é, pelo contrário, a fonte da contínua afânise da identidade, sua contínua obliteração. É uma estranha irmandade que se tem com o Nebenmensch, pois, ao escapar da apreensão, recusa a oferecer qualquer critério para essa irmandade. Isso levanta uma questão chave, com a qual o próprio Freud abordará apenas mais tarde no seu ensaio “O inconsciente”. Por que experienciamos esse semelhante humano como um semelhante, como um ser estranhamente próximo, como internamente inalienável, ao invés de simplesmente como um estranho? Por que experienciamos isso, pergunta Freud nesse ensaio, não como uma segunda consciência, mas como fazemos, ou seja, como uma parte tão íntima (embora inassimilável) da nossa própria consciência que só pode nos ocorrer como um excedente de nós mesmos e não como separado de nós? Por que nos consideramos, na nossa diferença de nós mesmos, não como dois, mas como um, ainda que paradoxalmente, um mais-que-um?
Nós não devemos deixar que a resposta que Freud dá a essa questão nos distraia do pensamento radical por trás da sua proposição em primeiro lugar. Pois não apenas Freud faz a questão prosseguir a partir do ponto que Lacan vai enfatizar no seminário Mais, Ainda e em outros lugares – que a razão, para a psicanálise, não está separada, mas intimamente “ligada ao gozo” (Lacan, 1999, p. 112) – ele também entende imediatamente esse “primeiro objeto de satisfação” como uma perturbação a qualquer distinção fácil entre as outras consciências – a comunidade de pensadores, com a qual o pensamento nos põe em contato e a singularidade de nosso processo de pensamento.
O infame pronunciamento do seminário Mais, Ainda, “não há relação sexual”, tem pouca chance de ser compreendido se tomado isoladamente do seu companheiro menos cooptável, “Y a d’l’Un” (existe algum Um) (Lacan, 1999, p.23). Chegamos assim novamente à questão do um, que localizaremos mais uma vez em Freud antes de discutir seu papel no seminário Mais, ainda. Anteriormente, destacamos o fato de que a psicanálise é avessa à celebração de qualquer um abrangente ou unificador. Essa aversão é evidente, em particular, no início de O mal-estar na civilização, onde Freud expressa forte resistência à noção equivocada de um colega sobre “unicidade”. O colega e amigo, Romain Rolland, havia escrito em defesa do que ele chamou de “sentimento oceânico”, ou seja, “um sentimento de vínculo indissolúvel, de ser um com o mundo externo” (Freud, 1930a/1961, p. 65). Em um primeiro passo, Freud contesta a atribuição que Rolland faz desta ideia ao sentimento, insistindo que ela lhe parece, antes, como sendo da “natureza de um percepção intelectual” (Freud, 1930a/1961, p. 66). A noção da unicidade oceânica, Freud afirma, parece ser uma abstração, na medida em que não carrega, como todas as abstrações, nenhuma convicção. Assim como Kant desqualifica a lei moral como um “sentimento superior [não-patológico]”, descartando-o como um mero “análogo” do sentimento, Freud também desqualifica a “unicidade oceânica” do domínio dos sentimento, embora admita que possa ter algum “tom de sentimento”. Essencialmente, ele argumenta que a ideia abstrata de Rolland não pode implicar a existência do um, que não tem realidade no mundo empírico; em síntese, Freud vê a ideia de “unicidade oceânica” como uma generalidade, um universal abstrato e, como tal, a descarta.
Essa rejeição – que parece ser uma simples rejeição nominalista – não é, contudo, o fim da discussão, mas a abertura para a articulação freudiana de uma outra noção de unicidade na qual o contorno de uma posição realista é visível. Recusando-se a validar a noção de unicidade oceânica de seu amigo, Freud, contudo, recorre à sua própria teoria para mostrar como essa noção, embora equivocada, pode ter encontrado aí alguma confirmação. Parece que há algo na noção de unicidade que Freud não está disposto a desqualificar, mas sim, querer preservar, deixando clara a sua própria posição. Ele começa admitindo que, embora tendamos a pensar a nós mesmos como “autônomos e unitários, nitidamente separados de todo o resto”, sua própria teoria mostrou por que uma completa separação de nós mesmos em relação ao mundo não é possível, porque “nós não podemos cair fora do mundo”, como ele diz. Sua resposta baseia-se no argumento que ele desenvolveu em “O Eu e o Id”: o Eu não é, de fato, autônomo, mas isso não acontece porque esteja ligado a um todo externo e superior com o qual se sinta unido. Pelo contrário, é porque o Eu está ligado – ou semi-ligado – ao Id; o Eu é “continuado para dentro, sem nenhuma delimitação precisa, em uma entidade inconsciente[…] designada como Id” (Freud, 1923b/1961).
Freud, em síntese, rejeita o sentimento oceânico com o argumento de que ele não é realmente um sentimento, não é realmente um afeto, mas um conceito abstrato, e ele o desloca, remetendo-nos ao Id, o verdadeiro lugar do afeto, que por definição escapa à captura conceitual, permanecendo assim, na maior parte, inconsciente. Em determinados momentos, como os de estar apaixonado, o Eu pode tomar consciência da sua relação com o Id, mesmo que interprete erroneamente essa relação como uma experiência de fusão, de borrar as barreiras entre ele mesmo e a pessoa amada. Essa experiência, Freud insiste, não é confiável, mas ela nos esclarece sobre a origem da ideia equivocada de Rolland de estar envolvido em uma unicidade imersiva. Mas uma vez que essa confusão é deixada de lado, o que fica da noção de unicidade na explicação alternativa de Freud e como ela se difere da de Rolland? Freud mantém a convicção de Rolland de que o sujeito nunca está realmente sozinho e autônomo, mas contesta apenas que ele experimenta a si mesmo corretamente dentro de um exterior maior; o sujeito freudiano aparece ao lado de algo maior que não apenas não o engloba, mas também não parece ter nenhum limite, não constituindo um objeto em nenhum sentido. Em vez de pairar acima, a maior parte é envolvida ou involuída, “continuada para dentro”, situada entre o Eu e seu resto, seu remanescente. Se a experiência do amor permite ao Eu tomar consciência de sua relação com o Id, do afeto inconsciente que normalmente fica oculto atrás da fachada do Eu, então talvez tenhamos que concluir que a experiência de unicidade é, na realidade, uma experiência da própria divisão do sujeito, sua própria separação de si mesmo. Pois como poderiam instâncias tão heterogêneas, Eu e Id, ser outra coisa que não disjuntas? No amor, essa disjunção não poderia ser abolida (aliás, tal ideia, Freud diz aqui claramente, vai contra “toda as evidência de nossos sentidos”), mas deve ser alterada; a divisão entre Eu e Id torna-se próxima, uma proximidade afetiva na qual o Eu é despertado para sua abertura passiva ao Id ampliado; mais do que uno consigo mesmo porque é capaz de ser algo além de si mesmo. Através dessa relação íntima, o Eu perde sua rigidez e é capaz de desenhar seus contornos na sua relação com o mundo externo.
O sujeito aqui adquire um “senso interior” de si mesmo, ou uma auto-unidade, que é indistinguível do sentido de auto-divisão. Enquanto isso possa parecer a alguns à primeira vista como (irremediavelmente) um paradoxo, após reflexão não pode haver dúvida de que explica os paradoxos concretos em que se manifesta constantemente. Porque o sentimento de pertencer a um “nós” raramente impede os sujeitos individuais de se considerarem exceções, embora exceções não contestem a validade do “nós” aos quais pertencem. “Eu” e “nós” permanecem na experiência diária como antinômicos, em tensão por definição, embora essa essa tensão não signifique uma contradição: a um “eu” ou “nós”.
V. Compacidade: a zona erógena
O paradoxo de Aquiles e a tartaruga de Zenão entra na discussão de Lacan acerca da diferença sexual no seminário Mais, ainda para ilustrar as diferenças radicais que dividem homens e mulheres: rápido versus devagar; sucessivos meio-passos versos movimento contínuo; homem versus besta. Mas isso de alguma forma foge ao ponto, pois, por mais diferentes que Aquiles e a tartaruga sejam um do outro, eles não seguem simplesmente em direções opostas. Pelo contrário, eles constituem séries convergentes, uma vez que cada um progride na direção do mesmo limite, o qual eles eventualmente alcançam – mesmo que não se encontrem lá. No limite, Aquiles não alcançará a tartaruga, mas a ultrapassará. Assim, acabam-se nossas esperanças românticas de uma fusão extática. Os dois permanecem psicologicamente em fases diferentes, mantendo as diferenças um do outro. Qual é, então, o sentido de notar a convergência deles?
Desde Zenão estamos acostumados a conceber o limite apenas negativamente, como inalcançável, como definindo uma impossibilidade de movimento. Contudo, Deleuze, em seu livro sobre Leibniz, fala sobre séries convergentes que tendem a um limite, mas nem sempre possuem um termo final, em termos positivos que implica intensidades (Deleuze, 1993, p.47). As séries convergentes – que tendem a ir na direção de um limite comum sem se encontrarem, na medida em que um número infinito de pontos as separa permanentemente – criam uma condição positiva, que tem um nome técnico na matemática chamado compacidade. Lacan falou dessa condição em Mais, ainda: “Eu vou propor aqui o termo ‘compacidade’. Nada é mais compacto do que uma falha (Lacan, 1999, p, 9). O que Lacan está se referindo como “falha” é chamado de limite em outros contextos. Uma falha ou limite define um local ou espaço apertado, como Lacan reconhece quando afirma que “o espaço do gozo […] se revela compacto” (Lacan, 1999, p.10). Poderíamos dizer, portanto, que um espaço compacto é uma zona erógena, ou seja: a compacidade serve aqui para explicar a noção de erogenicidade. Lacan constrói esse argumento mais ou menos explicitamente quando fala de uma forma bastante peculiar sobre a cama, como se não estivesse falando simplesmente de um objeto mundano, mas sim de um conceito psicanalítico. De fato, nós temos que ler esse seminário como uma conversação de cama, um espaço de encontro erórico, em um conceito que descreve-o precisamente como compacto, um espaço em que duas pessoas “se apertam fortemente” ou: experimentam o gozo (Lacan, 1999).
A primeira coisa a se notar é que essa compacidade é um espaço de impossibilidade, impossibilidade de união ou encontro, e ao mesmo tempo, um lugar onde alguma coisa fora do comum acontece: uma erupção de gozo. Isso chama atenção à verdade na qual a psicanálise sempre insistiu: o gozo sexual – o gozo – emerge de um encontro com o impossível, depende de um limite. Freud, por exemplo: “um obstáculo é necessário para elevar a libido” (Freud, 1912d/1964, p. 187). O que impede esse insight freudiano de ser reduzido a um observação psicológica de que a libido é desencadeada por um obstáculo – seja pela timidez do outro, pelo tabu social ou familiar, ou pelo mero acaso – que impede a abordagem amorosa do sujeito com o outro, é o fato de que, na compreensão psicanalítica, o obstáculo (o limite ou impossibilidade) que separa o sujeito do outro não é ultrapassado ou dissolvido, mas permanece totalmente intacto. É isso (isto é, a impossibilidade) e não sua superação, que incendeia o gozo.
Esse ponto pode ser retomado com a nossa referência anterior ao semelhante, à Coisa, mencionado no “Projeto para uma psicologia científica”. Freud bloqueia inadvertidamente nossa curiosidade teórica e, assim, nosso entendimento desse conceito, ao defini-lo prematuramente no texto como o primeiro objeto de nossa satisfação. Contudo, de acordo com a teoria que ele desenvolverá aqui e em outros lugares, não há objeto de satisfação antes da perda do objeto, não há mãe antes de sua retirada. Por isso, não é que o primeiro objeto de satisfação é posteriormente perdido, mas que esse objeto é perdido antes de existir como objeto. Disso, nós concluímos que é a condição de objeto como inexistente que causa satisfação ou gozo. Nos termos utilizados no “Projeto para uma psicologia científica”, o semelhante humano, ou a Coisa, foge ao julgamento; o pensamento encontra um limite, uma impossibilidade além da qual nós não podemos ir. Do outro lado desse limite não há nada, nenhum objeto existente, nada a pensar. Deste lado, contudo, não existe apenas uma experiência de um impasse absoluto, de negação de pensamento. Há também afirmação na forma de satisfação em um objeto inexistente, em um objeto que escapa o julgamento da existência.
Deleuze atribui ao Leibniz um argumento que ilumina o caminho que Freud irá percorrer: “Devo ter um corpo porque um objeto obscuro vive em mim […]. A originalidade de Leibniz é enorme. Ele não está dizendo que apenas o corpo explica o que é obscuro na mente. Pelo contrário, a mente é obscura, as profundidades da mente são escuras, e essa natureza obscura explica e requer um corpo” (Deleuze, 1993, p. 85). A mente encontra um limite, um obstáculo que não é nada mais (ou menos) do que um objeto inexistente, uma escuridão. No entanto, esse objeto obscuro não apenas controla os poderes da mente; ele também incita a uma convicção inabalável: deve haver um corpo. O corpo não invade a mente, e, assim, a obstrui, nem a mente colide com o corpo em sua densidade impenetrável. Mente e corpo não se encontram, pelo contrário: a mente encontra um objeto obscuro que não é nem puramente interno nem puramente externo a ela, e é este objeto que persuade a mente de que alguma outra coisa deve existir.
Leibniz não define esse objeto obscuro que separa/junta o res cogitans e o res extensa como “satisfatório” ou como o objeto-causa de gozo. Caberá à psicanálise elaborar esse ponto obscuro na mente em termos de libido ou pulsão, como a fronteira da experiência vivida e a vida biológica. Pode-se encontrar, contudo, entre os filósofos mais antigos – nomeadamente, os seguidores medievais de Avicena, para quem o conceito de tal fronteira ou barzahk (em árabe) cumpriu um papel importante em seu pensamento – um certo precedente direção na qual Freud desenvolveria a noção leibniziana de escuridão mental. Para esses filósofos medievais, o limite separava/juntava o divino e o sensível, mas precisamente porque esse limite passava não apenas entre estes dois mundos, mas também através do sensível, ele (o limite ou barzak) foi muitas vezes concebido nos termos da dialética do amor erótico, como junção/separação dos amantes. E para Ibn Arabi, pelo menos, o real objeto de amor era considerado não o que foi obtido, isso é, não o amado como tal, mas sim “algo inexistente […]. O objeto da adesão amorosa no momento em que o amante alcança a união é novamente algo inexistente, a saber, a continuação e perpetuação da união” (Corbin, 1969, p. 155). Ou seja, o que um ama no outro é “não é um dado existente in actu”, mas também não é um mero nada (Corbin, 1969, p. 154). Ibn Arabi aproxima ainda mais esta visão da mancha negra leibniziana ao insistir que “o amor [que] está mais perto do amante do que sua veia jugular”, é tão “excessivo em sua proximidade que funciona […] como um véu” (Corbin, 1969, p. 156).
VI. O retorno ao dois
O dois da diferença sexual deve ser pensado nesses termos. Não como dois separados e opostos, não “aquela partição binária que se pensa mais espontaneamente como [uma] ‘diferença sexual”’ (Derrida, 1991, p. 386), uma “sexualidade pré-dual”, “mais originária que a díade” para cuja doxa sempre parece reduzir a diferença sexual (Derrida, 1991, p. 387-388). Mais originário que a díade é o corte, a separação, que não é uma divisão em duas “determinações” (Bestimmtheiten), ou em duas partes determinadas, nem mesmo uma intervenção ou corte no originário (Derrida, 1991, p. 393). Pois, no final, esse um não é aquilo que está dividido, mas sim aquilo que é formado a partir da divisão (como vimos em nossa leitura da disputa de Freud com seu colega Rolland). Por ser assim formado, esse um é paradoxal, um um cortado, separado desde o início de algum suposto todo; um é do discurso Lacaniano, a, ou 1=a.
O argumento de Derrida em “Geschlecht: Sexual difference, ontological difference” é que Heidegger escolheu o termo neutro O ser para essa forma de ser que coloca sua própria existência em questão, em vez de homem (mensch), não para rejeitar o status ontológico da diferença sexual, mas para distingui-lo da compreensão comum da diferença sexual como estruturalmente diádica. Isso faria a posição de Heidegger paralela à de Freud, que (como já comentamos) afirmava categoricamente (contra protestos feministas) que só havia uma libido e ela era masculina. Isso também aproxima a posição de Heidegger da de Lacan, que, além de caracterizar a mulher como não-toda, também falava sobre o gozo feminino apenas no futuro condicional. Seria equivocado, acredito, interpretar a relação da feminilidade com a futuridade como a abertura de um horizonte no qual um dia poderia aparecer um outro gozo equivalente ou superior ao masculino. A futuridade do gozo feminino não é somente algo a se chegar, mas algo que, em seu não-chegar, sua futuridade, age agora para romper qualquer fundamento que possa ser atribuído ao sexual como tal.
Finalmente, conforme Heidegger foi sendo introduzido a essa conversão, eu vou terminar salientando que Lacan certa vez lançou o termo “ser-em-direção-ao-sexo”, claramente referenciando o “ser-em-direção-à-morte” de Heidegger, para presumidamente deslocar depois. A cunhagem do novo termo vai além de uma simples substituição terminológica, parecendo exigir repensar os argumentos que liderou a frase original. Onde Heidegger junta a ansiedade ao encontro com a morte, por exemplo, Lacan insiste que o que entendemos por ansiedade é, no lugar, um encontro com o gozo. Como notou Alenka Zupančič, seria um erro concluir que nomear de sexo ao invés de morte pinta um quadro mais rosado do limite que o sujeito encara, dada a associação psicanalítica de sexo e morte. A redução da diferença entre o filósofo e o psicanalista a uma questão de níveis de pessimismo ou otimismo não apenas trivializa sua diferença, mas de novo gasta com a necessidade de pensar o que quer dizer o apelo psicanalítico de que os seres falantes são sexuais. Talvez a mais significativa agenda por trás dessa frase um pouco zombeteira de Lacan é a criação de um novo entendimento do comum, um que preserva a assimetria dos diferentes caminhos que a vida sexual aproxima – uma assimetria que a referência à morte não disponibiliza – preserva o comum em si mesmo, isto é, preserva o ponto final. Como um impasse radical. Antagonismo irredutível.
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