A pobreza da geopolítica: ação imperialista e “guerras híbridas” na Venezuela contemporânea

Por Gustavo Melo Novais da Encarnação Lopes

O presente artigo tem como objetivo a análise da ação imperialista recente, praticada pelos Estados Unidos da América e direcionada para a Venezuela. Inicia-se realizando uma breve explanação histórica sobre o controverso conceito de guerra e de como esse conceito não pode ser descontextualizado da dinâmica geral da luta de classes visto que, na atualidade, é impossível desassociar as motivações para esses conflitos das vantagens econômicas que são obtidas por meio deles para os países que estão na centralidade do processo de acumulação de capital. A partir dessas reflexões, discute-se o fenômeno chamado de “guerra híbrida”, cujas limitações são constatadas quando se observa de perto o caso da Venezuela.

 I. Introdução 

A Venezuela, caracterizada como um país periférico-dependente, o que significa estar presente em uma posição marginal no processo de acumulação capitalista em escala mundial, possuindo a sua estrutura econômica subdesenvolvida e os seus setores produtivos estratégicos estrangulados pela centralidade da economia mundial, vem sendo, recentemente, alvo de recorrente ação imperialista, com destaque para a participação dos Estados Unidos da América (EUA).

Essa ação imperialista se caracteriza pela combinação de uma gama de fatores associados à política de guerra perpetrada pelos países centrais e, no caso específico do país caribenho (vitimizada por tal ação), a guerra econômica, materializada pelas sanções, bloqueios e locautes orquestrados interna e externamente, e a desestabilização política, a partir de financiamentos de instituições voltadas para a “promoção da democracia” e dos “valores humanitários”, que se traduzem pela interferência em processos eleitorais e pelas tentativas de golpe. Nesse bojo, existe uma corrente que busca interpretar não somente o caso venezuelano, mas também os diversos processos de guerra, golpe, intervenção e insurreição ao redor do mundo a partir do conceito de “guerra híbrida”. 

O argumento defendido no presente artigo vai no sentido da compreensão de que, apesar de tratar de alguns fenômenos reais, existe uma limitação conceitual, hermenêutica e analítica bastante acentuada, que se traduz a partir do descuidado com a dinâmica da luta de classes no âmbito dos Estados nacionais.

Para isso, o artigo se divide em cinco seções, contemplando essa concisa introdução e as considerações finais, além de uma seção que aborda o debate sobre a dinâmica histórica de guerra no seio da acumulação capitalista, uma seção que realiza uma contextualização crítica sobre as “guerras híbridas”, “revoluções coloridas” e “guerras não-convencionais” e, finalmente, uma seção sobre as ações recentes do imperialismo estadunidense em relação a Venezuela.

 II. A guerra: breve discussão história sobre um conceito

A guerra é um dos processos sociais mais complexos e mais antigos que compõem as relações entre seres humanos, sejam elas geograficamente limitadas a partir da interação conflituosa entre Estados-nação, como durante a formação das “pazes” que antecederam os firmamentos europeus no século XVII (Fiori, 2021), ou a partir de conflitos mais amplos, envolvendo diversas formações sociais na disputa por uma participação mais privilegiada no tabuleiro geopolítico e na economia mundial.

Mesmo antes da compreensão da guerra como fenômeno que construiu, dialeticamente, as relações entre os Estados dentro do Sistema Internacional (SI), situada, nesse sentido, durante a duração da Era Moderna, a guerra já constituía uma dinâmica propulsionadora de mudanças territoriais, culturais e nas formas de produzir riqueza da humanidade. Para Fiori (2018a, p. 76)

A pesquisa antropológica e arqueológica tem acumulado evidências de que a “violência” nasceu junto com os primeiros primatas, e foi companheira inexorável do homo sapiens, através de todo seu processo evolucionário. Primeiramente, na forma de violência “intersocietária”, entre grupos nômades de até 50 membros, e progressivamente entre tribos e etnias que reuniam até 500 ou mil coletores caçadores.

Seguindo a tradição da Escola dos Annales, sobretudo os escritos elaborados por Giovanni Arrighi (2013), Fiori (2018a), é sustentado que a guerra moderna compõe uma gama de fenômenos associados à longa duração histórica do processo de constituição do modo de produção capitalista em escala mundial, pelo menos desde a chamada Paz de Vestefália, ocorrida no ano de 1648 e utilizada, recorrentemente, como marco para o estudo das Relações Internacionais. 

Durante esse processo de constituição dos Estados westfalianos ocorreram diversos conflitos que, por mais que estivessem situados dentro da limitação geográfico-histórica do que se concebeu chamar por Europa Ocidental, surtiram grande influência ao redor do mundo como um todo, levando em consideração que já no início do século XVI os processos de colonização das Américas e de escravização de seres humanos provenientes de diversas regiões do continente africano já tinham ocorrido e foram, nesse sentido, aprofundados pela necessidade de acumulação.

Alguns historiadores (Kennedy, 2017; Arrighi, 2013; Hobsbawm, 2022) contribuíram para a compreensão de que não é possível sustentar um argumento no sentido da dissociação entre a acumulação capitalista e a expansão territorial a partir da guerra. Apesar de partirem de posicionamentos teórico metodológicos distintos (sem demérito para suas possíveis divergências), esses autores compreenderam com o devido escrutínio que a guerra e a acumulação de capital fizeram parte de um mesmo processo ou uma mesma dinâmica a partir da influência das leis da dialética. 

Como sustenta Fiori (2018a, p. 77), “[…] a guerra se transformou – a partir do século XVI – em ‘peça sistêmica’ e ‘mola propulsora’ do processo de expansão do poder e do território dos estados e do próprio sistema estatal como um todo dentro e fora da Europa”. Nesse sentido, a compreensão desenvolvida no presente artigo deriva do fato de que “os fenômenos econômicos, sociais e políticos, mesmo quando espontâneos, afiguram, resultam de mutações quantitativas e qualitativas que se entretecem e se encadeiam” (Bandeira, 2016, p. 25)

Essa dinâmica, que aqui será chamada de Economia Política da Guerra (EPG), faz referência às indissociáveis vantagens econômicas que os conflitos trazem para os países que estão na centralidade do processo de acumulação de capital em escala global. Essas vantagens abarcam não somente os países que venceram de facto a contenda, mas que de alguma maneira lucraram ou obtiveram um posicionamento geopolítico privilegiado a partir da situação belicosa. 

Quando se olha, por exemplo, para os EUA como peça fundamental para as relações geopolíticas globais na contemporaneidade, nota-se que somente entre o período que compreende a independência do país (1776) e o final do século XX, foi iniciado um novo conflito a cada três anos (Fiori, 2018a, p. 91). Com isso, os EUA obtiveram vantagens cabais para a sua constituição como hegemon mundial, sobretudo a partir das duas Grandes Guerras ocorridas entre 1914 e 1945. Para Fiori (2023, p. 17), 

O primeiro ensinamento é que o objetivo de todas as guerras nunca foi a ‘paz pela paz’, mas sim a conquista de uma ‘vitória’ que permitisse ao ‘ganhador’ impor a sua vontade aos derrotados, junto a seus valores, suas instituições e suas regras de comportamento, a serem aceitos e obedecidos a partir da vitória consagrada pela assinatura dos ‘acordos’ ou dos ‘tratados de paz’, que passam a regular as relações entre vencedores e perdedores. 

É importante frisar, a partir desse ponto, que as transições hegemônicas têm sido realizadas com base na ocorrência de conflitos gerando uma espécie de caos no SI, sucedido por um reordenamento internacional. Passando pelos quatro grandes hegemons (Arrighi, 2013) temos como exemplo a queda da hegemonia das cidades-estados da Itália setentrional, a reorganização das Províncias Unidas – região que hoje compreende os Países Baixos – e a sua mobilização para a “paz de 1648”, a transição hegemônica para a Grã-Bretanha, sobretudo a partir do desenvolvimento da primeira Revolução Industrial entre os anos de 1780 e 1820, culminando na colocação dos Estados Unidos como dinamizador da ordem internacional já no século XX. 

Não há como desconsiderar, inter alia, que não houve ascensão hegemônica sem que houvesse a relação direta entre a financeirização das relações mercadológicas, a arrecadação de tributos para as campanhas de guerra e a posterior dominação (de fato e de direito) dos territórios envolvidos nos conflitos. Nesse sentido, mister é a necessidade de convencimento da população quanto à viabilidade do conflito, que pode ser realizada a partir do convencimento ideológico ou da coação propriamente dita (a partir dos aparelhos repressivos de Estado). Para Martins (2018, p. 183), “o Estado tem a função de apresentar os interesses privados como se fossem coletivos, baseando-se, para isso, em última instância, no monopólio da violência”. 

Por isso, não há como descontextualizar a guerra da dinâmica geral da luta de classes. Qualquer tipo de interpretação que tente retirar o foco central da luta de classes no desenvolvimento dos conflitos entre os Estados incorrerá no equívoco de tratar os fenômenos como se a guerra pairasse sobre o que ocorre nos processos de acumulação nas esferas dos Estados nacionais. Nesse bojo, Lênin (2011, p. 230) lança uma pergunta retórica crucial: “[…] no terreno do capitalismo, que outro meio poderia haver, a não ser a guerra, para eliminar a desproporção existente entre o desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital, por um lado, e, por outro, a partilha das colônias e das esferas de influência do capital financeiro?”.

Um outro ponto importante a ser frisado é a motivação que leva os Estados que participam da dinâmica do SI – e de uma consequente Ordem Internacional – ao conflito. Se tivermos como exemplo os posicionamentos belicosos da Igreja Católica e de seus ideólogos, pelo menos desde Santo Agostinho (Fiori, 2018a, p. 80), tem-se como resultado o argumento da “guerra justa”, ou seja, aquela guerra em nome de algo metafisicamente maior. Esse “algo maior”, que nas entrelinhas pode ser associado com determinado princípio, virtude ou vocação, determina duas coisas: primeiro, uma delimitação ética (Fiori, 2018a) das motivações que levam à guerra e, por consequência, em segundo lugar, a delimitação do outro (que será combatido) a partir da não adequação àquele algo metafísico.

Nesse sentido, é com base em determinada “ética internacional” que justifica a guerra, obviamente, sem prejuízo para os feitos relacionados ao desenvolvimento durante o século XIX, que os EUA vão formular a sua postura de liderança de forma consolidada entre os demais países do SI no século XX. 

O marco temporal supracitado, sem coincidências, refere-se à ocorrência das duas Grandes Guerras já mencionadas. Nesse ínterim, vários processos de ordem internacional ocorreram: a reorganização do Sistema Financeiro Internacional a partir dos Acordos de Bretton Woods, firmados em 1944, que colocariam os EUA numa posição de grande privilégio internacional, como menciona o economista americano Barry Eichengreen (2012), muito por conta da hegemonia do dólar; a divisão da Europa a partir do desmembramento do Império Austro-Húngaro (dando origem à Hungria, à Áustria, à Tchecoslováquia e à Iugoslávia) e do antigo Império Russo (dando origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas [URSS], à Finlândia, à Polônia, à Lituânia, à Letônia e à Estônia) durante a Primeira Guerra Mundial e a remarcação das fronteiras de alguns países na Europa Ocidental e Oriental com o final da Segunda Guerra Mundial; e, finalmente, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 1945, que veio para substituir a quase inoperante Liga das Nações (1919-1942). Este último marco histórico envolve a necessidade de consolidar o desenvolvimento e a harmonia entre as nações e trazer a paz para o SI.

A “paz”, assim como a guerra, também é um dos objetivos mais controversos da história. Sem ter como horizonte a exaustão do assunto, muito bem discutido por Fiori (2021), alguns apontamentos se fazem necessários. Os EUA, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, na sequência história denominada por Pax Americana, já se empenham na Guerra da Coreia (1950-1953), tendo como objetivo o controle da sua influência na região do pacífico – mesmo após, diga-se de passagem, o crime contra a humanidade cometido a partir do lançamento das bombas atômicas e nucleares em Hiroshima e Nagasaki no ano de 1945. A interferência dos EUA nesse conflito teve como um dos critérios, inter alia, a manutenção da paz na região a partir da contenção do expansionismo chinês.

Outro exemplo emblemático pode ser encontrado na Guerra do Vietnã (1955-1975), da qual os EUA saíram derrotados e em que o argumento central, novamente, envolvia a lógica difusa de manutenção da paz e de controle do “expansionismo comunista” em território asiático. Nesse sentido, é importante destacar que logo antes desse período o “mundo ocidental” presenciou o auge da ideologia macarthista, que culminava na necessidade de contenção da “ameaça vermelha”. 

É justamente durante o século XX, que a paz estará vinculada, pari pasu, à supremacia dos valores liberais defendidos pelos EUA, a se notar a condição sacrossanta da propriedade privada, a “liberdade” irrestrita das relações mercadológicas – que vêm incidindo negativamente sobre os chamados países periféricos pelo menos desde o século XVI – e a canonização do direito burguês como ferramental ideológico capitalista. 

É também com base nesse argumento – de manutenção dos valores ocidentais e de combate ao comunismo – que a política externa estadunidense foi construída em direção aos países da América Latina (AL). Tirando alguns episódios de intervenção direta perpetrados pela CIA, como nos casos da Guatemala (1954) e da República Dominicana (1961), os EUA se fizeram presentes, seja por meio de apoio de inteligência (tático-militar), de direcionamento de recursos financeiros ou da combinação de ambos, em parte considerável das ditaduras militares instaladas na região entre as décadas de 1950 e 1980. Os objetivos, de fato, relacionavam-se com a perpetuação da “América para os americanos” e da contenção de potenciais mudanças em governos desenvolvimentistas que ascendiam ao poder. 

A partir da queda da URSS e da proclamação antidialética de Francis Fukuyama em sua tese teleológica vulgar de “fim da história” (Anderson, 1992), a necessidade de justificar a intervenção dos EUA sobre os demais países passa por uma reformulação. Reformulação essa que, pelo menos desde a Guerra do Afeganistão (1979-1989), envolvia a luta contra o “fanatismo ou fundamentalismo religioso”, mas, em síntese, tinha como pano de fundo e motivação primordial a geopolítica do petróleo e o controle das regiões de influência para a obtenção de recursos energéticos. A invasão ao Iraque durante a Guerra do Golfo (1990-1991), que deixou um saldo de mortes de milhares civis em pouquíssimos dias como consequência dos ataques aéreos, patrocinada, inclusive, pela ONU, também teve como objetivo a manutenção da paz e da ordem internacional. 

Somente no ainda breve século XXI, pode-se fazer referência à Guerra no Iraque (2003-2011), à Guerra do Afeganistão (2001-2021) e à Guerra na Líbia (2001), com a participação dos EUA justificada sob as mais diversas matrizes argumentativas: existência de armas químicas, tráfico internacional de drogas, terrorismo etc. Em suma, para conseguir a paz, a guerra se fazia necessária.

É nessa “dialética da guerra e da paz” que os EUA vêm construindo a sua influência internacional, situada no âmbito da EPG, e perpetuando uma hegemonia em decadência. Nesse sentido, na contemporaneidade, não há a necessidade de manutenção de forças militares norte-americanas ocupando e combatendo diretamente em regiões fora da limitação geográfica da fronteira dos EUA. E, por isso, não é de hoje que existem diversas formas de interferência com foco na submissão direta de um Estado soberano. A dominação ideológica através dos grandes meios de comunicação, a se notar os jornais de repercussão mundial, a televisão e o próprio cinema, foram e continuam sendo utilizados como ferramental de alienação, incentivo ao consumo e de adequação a determinado padrão ético e moral.

O apoio já mencionado a facções de extrema direita (como no caso da Venezuela, apontada mais adiante) em países periféricos também ocorre com certa regularidade, seja por meio de financiamentos diretos, pela CIA, um dos aparelhos de guerra mais sujos dos EUA, seja por meio da atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs), que fomentam a reorganização política em determinada formação social (Salgado, 2021).

Recentemente, os conceitos de guerra não-convencional e guerras por procuração vivenciaram um renascimento em decorrência dos conflitos ocorridos no Oriente Médio, no norte do continente africano e na América Latina. Esses tipos de conflito, que não envolvem a participação direta dos Estados patrocinadores, ocorrem pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial. Porém, com o advento da revolução da microeletrônica e a ascensão tecnológica obtida por meio da massificação do acesso a computadores e mídias sociais, houve uma agudização da utilização dessas modalidades. Sendo assim, é frequente a confusão no que se refere à associação entre esses conceitos e a prática material dos EUA vis-à-vis os seus alvos, incorrendo, inclusive, na total ignorância em relação às dinâmicas internas (políticas, econômicas e culturais) desses últimos.

É nesse contexto que surge o debate sobre a chamada “guerra híbrida”, conceito aprofundado pelo internacionalista russo Andrey Korybko cuja parte substancial da pesquisa versa sobre os conflitos territoriais envolvendo a Rússia e a Ucrânia a partir do ano de 2013.  A guerra híbrida começaria com uma “revolução colorida”, caracterizada pela insuflação de determinado problema social a partir da ação de ONGs e movimentos sociais financiados diretamente por fundações internacionais ligadas ao governo americano e a grandes corporações transnacionais. As características desse debate e as suas limitações serão abordadas na seção seguinte.

 III. Guerras híbridas: um conceito insuficiente

As guerras híbridas, de acordo com Korybko (2018, p. 33), se caracterizariam pelo “caos administrado”. Os objetivos seriam: derrubar governos instituídos e causar instabilidade política em determinadas regiões que não estejam aliadas de forma política, ideológica e ou econômica aos EUA e parte dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com fins de submeter esses Estados às vontades dos países centrais. A partir das revoluções coloridas (Korybko, 2018), conceito já tratado na seção anterior, seriam formados grupos de adesão aos ideais norte-americanos e contrários aos interesses nacionais. Na sequência das revoluções coloridas, as guerras não-convencionais (Korybko, 2018), envolvendo grupos mercenários e milícias privadas, entrariam no jogo político para dar continuidade à desestabilização.

Esse segundo conceito é muito importante para o argumento desenvolvido em torno das guerras híbridas, tendo em vista que quando há o insucesso das revoluções coloridas, as guerras não convencionais vão operar para tirar a estabilidade de facto dos governos contrários aos interesses norte-americanos. Um exemplo de guerra não-convencional envolve a contratação de mercenários, que podem ser ex-militares ou membros das forças policiais que agem como entes privados dos aparelhos repressivos de Estado. Outro exemplo é a formação de milícias que surgem a partir da interferência externa, mas com certa aparência de organicidade.

Sobre as vantagens dessa tática, Korybko (2018, p. 41) sustenta que “[…] as forças convencionais do Estado-alvo nunca podem ter total certeza da medida em ou de por quanto tempo são capazes de controlar e resguardar vários territórios ou infraestruturas contra-ataques, nutrindo assim incerteza sobre quando e onde mobilizar as suas unidades. Isso, por sua vez, é usado para afetar o campo das decisões do ciclo OODA, evitando assim uma ação decisiva e impedindo sua eficiência”. O autor e os defensores do conceito de guerra híbrida vão dizer que essa é uma nova forma de praticar a guerra sem que haja necessidade da interferência direta dos países hegemônicos. Porém, há uma dinâmica que é marginalizada na análise das guerras híbridas. Essa dinâmica, como mencionada na seção anterior, envolve a luta de classes, bem como as contradições geradas a partir do próprio desenvolvimento do capitalismo.

O autor vai afirmar, acertadamente, que não se pode interpretar as posições geopolíticas dos EUA no século XX e no presente século sem que sejam levadas em consideração as influências derivadas das teorias geopolíticas clássicas (Korybko, 2018, p. 19). Mais recentemente, uma das estratégias de atuação dos EUA envolveria a ação dentro de entidades políticas já instáveis (a partir de uma diversidade cultural, étnica e social), com o objetivo de alcançar alvos em proximidade de tais entidades (como era o caso dos Balcãs e da extinta URSS). Essa estratégia deriva da linha de pensamento desenvolvida por Zbigniew Brzezinski, ex-Conselheiro de Segurança durante a presidência de Jimmy Carter (1977-1981).  

Então, a agudização dessas contradições seria utilizada pelos EUA em busca de diversos objetivos, dentre eles: a obtenção de maior prestígio e influência geopolítica na região alvo; acesso às fontes de recursos naturais e energéticas anteriormente não alcançadas pelo governo americano; ampliar o espectro da acumulação nacional a partir da espoliação de outras formações sociais. 

Ao contrário das intervenções convencionais, como ocorreram nos casos do Iraque, do Afeganistão e do Panamá (Korybko, 2018, p. 35), os EUA começaram a agir, em determinados territórios estratégicos, a partir das proxy wars, ou guerras por procuração, com o objetivo de velar a sua participação, dando a aparência de que os processos conflituosos surgiram no bojo dos Estados nacionais, sem quaisquer tipos de interferência de origem internacional. Isso estaria em consonância com a posição de dominação do espectro total dos EUA (Korybko, 2018, p. 38), cujos objetivos envolveriam a persuasão nos processos de paz, a decisão em situações de guerra e a proeminência em qualquer forma de conflito. 

Um outro ponto acertado pelo autor refere-se aos distúrbios aos pleitos eleitorais perpetrados pelos EUA em diversos Estados-alvo, como é o caso da Venezuela (Salgado, 2021; Rovai, 2007) sob a liderança de Hugo Chávez (1998-2013), com o objetivo de minar qualquer possibilidade de mudança política que contrarie os interesses yankes. Esses boicotes eleitorais podem começar a se desenvolver a partir da ação política de ONGs estrangeiras ou simplesmente a partir do financiamento realizado pelo governo americano. 

Porém, para Korybko, esse processo só seria possível por meio da disseminação de informação e contrainformação (envolvendo, inclusive, as fake news) entre a população a partir de táticas de “guerra neocortical reversa” (Korybko, 2018, p. 59), além de “técnicas não violentas e inovadoras para a revolução colorida” (Korybko, 2018, pp. 63-65). Ademais, são desconsideradas as contradições internas do Estado-alvo, que, por óbvio, não são formuladas somente a partir da intervenção estrangeira, seja ela de qualquer espécie, consubstanciando a falta de escrutínio sobre a situação da luta de classes no país vítima. Ao mesmo tempo, o conceito de ideologia, fundamental para a análise marxista, é marginalizado na teoria, causando um vácuo explicativo quanto à ação e efetividade dessas “operações psicológicas”. 

Em suma, Korybko desconsidera tanto as teorias clássicas do imperialismo e as suas asserções sobre a dinâmica de acumulação e guerra (Lênin, 2011; Bukharin, 1984; Hobson, 1981), quanto as interpretações mais recentes sobre o fenômeno (Harvey, 2005; Wallerstein, 2004; Callinicos, 2009), que envolvem não somente a análise da dinâmica da economia mundial como consequência da luta de classes nos países imperialistas abarcando, inclusive, o sucesso ou insucesso das suas ações com base na estrutura interna dos países-alvo.

Nesse sentido e, para elucidar a limitação do conceito abordado durante a presente seção, será apresentado brevemente o caso das tentativas de intervenção, tentativas de golpe e guerra econômica postas em prática pelos EUA em relação à Venezuela contemporânea, e como esse processo segue a dinâmica de ação imperialista estadunidense para o país, pelo menos, desde o final do século XX.

 IV. Venezuela: Guerras híbridas ou continuidade da ação imperialista?

No dossiê Venezuela e as guerras híbridas na América Latina, publicada pelo Instituto Tricontinental (2019), são abordadas algumas das violências recentes sofridas pela Venezuela em decorrência da ação imperialista dos EUA. Apesar de utilizarem o conceito de guerra híbrida no título, as menções são bem difusas e se configuram mais como uma análise de impacto do que a realização de uma correlação teórica entre a conjuntura do país e as revoluções coloridas sucedidas por guerras não-convencionais.

 A Venezuela é alvo, pelo menos desde o início do século XX, de grandes atenções por parte dos países da centralidade do capitalismo. Isso se deu tanto em função da sua posição geográfica privilegiada, implicando em interesses geopolíticos, quanto pela sua abundância em recursos naturais, com destaque para o petróleo. Estima-se que, hoje, a Venezuela possua a maior reserva em petróleo bruto do mundo, superando os países do Oriente Médio. 

Apesar disso, apresenta “todas as características estruturais de uma economia subdesenvolvida” (Furtado, 2008, p. 36). Por conta de sua abundância petrolífera, atraiu países cujas indústrias já possuíam um grau relevante de desenvolvimento, como as de origem estadunidense, por exemplo. Nesse contexto o país foi fruto de intensa exploração tanto em relação aos recursos naturais, quanto em relação à utilização da própria terra, culminando no desenvolvimento de uma burguesia rentista e reacionária no país. 

Mesmo após a derrocada da ditadura na Venezuela com o estabelecimento do Pacto de Punto Fijo (1958), a dinâmica do país não foi alterada e, mesmo apesar de possuir potencialidades visíveis quanto ao seu desenvolvimento, esse processo nunca pode ser logrado. Além do domínio da indústria nacional e de uma legislação que não protegia os interesses do país, havia uma adesão direta da burguesia venezuelana em relação à política externa estadunidense. Esse contexto culminou na mudança de dois panoramas: um primeiro, mais radical, e um segundo mais moderado. 

O primeiro se deu após a eleição de Hugo Rafael Chávez Frias, em 1998, abarcando não somente uma reorganização da linha de atuação do país frente ao imperialismo dos EUA, mas também mudanças de teor jurídico-político que viriam a implicar na forma como a extração de petróleo e acumulação capitalista se dariam naquele Estado, inclusive se relacionando com a promulgação de uma constituição no ano de 1999. A eleição de Chávez foi possível, dentre outros fatores, por dois motivos principais: exaustão da dinâmica política puntofijista e diversas revoltas ocorridas a partir da política-econômica neoliberal implementada no país a partir da década de 1980, a exemplo do Caracazo

As mudanças colocadas em prática por Chávez afetaram, decerto, os interesses das burguesias locais e do imperialismo norte-americano. Como resposta, pode-se observar uma série de tentativas de intervenção e de desestabilização do governo bolivariano, avançando inclusive para a gestão de Nicolás Maduro, após a morte do ex-militar, no sentido de suscitar a miséria política e econômica do país.

Os EUA, que se colocam como “o povo escolhido”, a partir da derrocada da URSS vão renunciar à “ideia de uma hegemonia ética e cultural universal e optam pelo uso da força e das armas, se necessário, para impor seus interesses em todos os tabuleiros geopolíticos e geoeconômicos do mundo. Mesmo que seja através da mudança de governos e regimes que sejam considerados uma ameaça política ou econômica aos interesses norte-americanos” (Fiori, 2018b, p. 399). 

Isso é perceptível pelo engajamento direto na derrubada de governos em diversas regiões do mundo, como no Iraque, em 2003, no Haiti, em 2004, em Honduras, em 2009, na Líbia e na Síria, em 2011, na Bolívia e na Nicarágua, em 2019 (Emersberger e Podur, 2021, p. 14), dentre tantos outros de menor repercussão internacional, quanto pela escalada discursiva em relação à Venezuela durante o Governo Trump, com a afirmativa do então presidente sobre as intenções dos EUA em relação à “tomada do petróleo venezuelano”.

É particular o interesse dos EUA na Venezuela que, como aponta Salgado (2021, p. 22), foi alvo de discussão em diversos escalões do governo americano: “ao navegar pelo site do Wikileaks, é possível perceber a importância que a política externa dos EUA deu à Venezuela durante o período em estudo, uma vez que uma pesquisa simples demonstra existir mais de 9.424 documentos diplomáticos sobre a Venezuela, mais do que qualquer outro país da América Latina, com exceção do Brasil, que conta com 9.633 documentos”.

As sanções econômicas e, pari pasu, a ação da mídia, da burguesia interna e dos conglomerados empresariais internacionais, estão dentro da postura imperialista estadunidense, pelo menos, desde o século XX e, no caso específico da Venezuela, pelo menos desde o final da década de 1990. 

Se formos analisar as intervenções mais explícitas dos EUA no país durante esse período, podemos ter como um número geral pelo menos seis tentativas (Emersberger e Podur, 2021), tendo início no ano de 2002 e culminando no reconhecimento ilegítimo e ilegal de Juan Guaidó (2019), então líder da oposição na Assembleia Nacional, como Presidente da República Bolivariana da Venezuela pelos EUA e parte considerável dos países do ocidente, incluindo alguns sul-americanos. Três dessas tentativas serão expostas aqui, sinteticamente. 

No início do ano de 2002, após o estabelecimento de alguns decretos ordenados por Chávez, legais e em consonância com as Leis Habilitantes que, dentre outras coisas, alteravam a dinâmica da distribuição de terras e o processo tributário vinculado ao setor petrolífero, a oposição ao Governo Chávez começou a realizar movimentações internas com o objetivo de derrubar o governo bolivariano. Após a demissão de alguns funcionários de alto escalão da Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA), anunciada no programa Aló, Presidente, a oposição, em conjunto com um fragmento do setor militar, organizou uma marcha em direção ao Palácio de Miraflores reivindicando que Chávez saísse do poder. 

Após diversas manobras, Chávez foi retirado do poder e sequestrado por dois dias, assumindo o então presidente da Federación de Cámaras y Asociaciones de Comercio y Producción (Fedecámaras), Pedro Carmona (que, inclusive, dissolveu a Assembleia Nacional e autorizou um número significativo de prisões ilegais de cunho político). Como aponta Salgado (2021, p. 86), houve participação ativa dos EUA (que estavam, por óbvio, descontentes com as Leyes Habilitantes chavistas) a partir do financiamento direto da oposição no ano de 2001. 

Esse golpe que, como Rovai (2007) aponta, teve participação direta da mídia (comandada por Gustavo Cisneros que, inter alia, é dono de um dos maiores conglomerados de telecomunicação da América Latina), de corporações dos mais variados âmbitos e do setor militar, não teve o seu sucesso prolongado em decorrência de parte substancial da população venezuelana que apoiava o Governo Chávez e se mobilizou de diversas formas (no geral, pacíficas) tendo como objetivo o retorno do ex-comandante à presidência. 

Mister aqui é a preponderância da complexidade da luta de classes na Venezuela que, mesmo diante da organização da oposição internamente e da atuação (direta e indireta) dos EUA, culminou na impossibilidade de concretização de um golpe que, dentre outras coisas, colocaria novamente o país caribenho à serventia da dinâmica de acumulação (de capital e território) imperial. Assim, a dinâmica fatalista e conformista que envolve algumas interpretações sobre a ação das “revoluções coloridas” é posta em xeque.

Ainda no ano de 2002, uma segunda tentativa de golpe, orquestrada na forma de locaute, foi realizada contando com apoio tanto da oposição (Rovai, 2007) quanto de ONGs vinculadas ao governo estadunidense (Salgado, 2021). Do locaute emergiu, por parte da oposição, a tentativa de organizar um referendo revogatório para retirar Chávez do poder. 

Esse referendo, segundo Salgado (2021, p. 109), foi financiado, parcialmente, pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Como aponta Salgado (2021, p. 117), 

[no] documento […] Estratégia de Direitos Humanos para a Venezuela […] é possível perceber [que] os EUA tinham a intenção de organização a oposição para os colocar em melhores condições de vencer pleitos eleitorais, buscando otimizar as campanhas eleitorais, as estratégias de comunicação e o processo eleitoral. Para tal, foi destinada uma soma de mais de 700 mil dólares para ‘fortalecer a sociedade civil e as instituições democráticas’.

Mais uma vez, o apoio da população venezuelana ao projeto chavista se mostrou presente, e a oposição, mesmo com apoio internacional, não obteve o resultado esperado. Apesar disso, a partir desse momento, como demonstra Salgado (2021), a oposição começa a se articular de forma mais organizada, possuindo como uma das características principais a associação aos interesses estadunidenses e a ausência explícita de qualquer projeto de superação das contradições estruturais da Venezuela. 

Por fim, entre 2015 e 2017 várias sanções econômicas foram implementadas com objetivo de enfraquecer economicamente a Venezuela, como demonstrado por Sachs e Weisbrot (2019). Como elucidado na obra Sanções econômicas como punição coletiva: o caso da Venezuela, os indicadores econômicos do país decresceram bruscamente durante o período supracitado e os cinco anos subsequentes, surtindo impactos profundos na alimentação, saúde e moradia das venezuelanas e venezuelanos. As sanções podem ser, nesse sentido, caracterizadas por tentativas de desestabilização a partir da prática de guerra econômica com fins de dominação, já demonstradas anteriormente por Lênin (2011) e Harvey (2005).

Essas sanções, somadas aos efeitos deteriorantes de longa duração na economia do país, tiveram como motriz discursiva a “ajuda humanitária ao povo venezuelano” e o desrespeito aos princípios democrático-liberais por parte de Nicolás Maduro. Como apontam Emersberger e Podur sobre a postura da mídia internacional durante o período (2021, p. 161), 

The New York Times followed up with four more editorials about Venezuela between March 31 and August 30—just before and after four months of violent protests: “Venezuela’s Descent Into Dictatorship” (March 31); “Pressuring Venezuela’s Leader to Back Down” (April 4); “Mr. Maduro’s Drive to Dictatorship” (August 3); “Exporting Chaos to Venezuela” (August 17). None of the editorials had a harsh word to say about the opposition, even though it was not clear which side had killed more people during the protests. It was very clear, however, that protesters were responsible for some grisly atrocities. Also note the Times’s determination to stick the “dictator” label on Maduro. The August 3 editorial said that Maduro “belongs” in the same “rarefied company” as Bashar al-Assad and Kim Jong-un.4 And even though the August 17 editorial expressed nervousness over the Trump administration’s military threats against Venezuela, it continued to demonize Maduro’s government— which is what made those threats possible.

Ainda assim, como demonstram Salgado (2019) e Emersberger e Podur (2021), a população venezuelana vê com maus olhos o apoio da oposição às sanções econômicas impostas pelos EUA e, em 2019, a “maior referência”, o líder oposicionista Juan Guaidó, era desconhecido por 81% dos venezuelanos. 

V. Considerações finais

É importante considerar minimamente, para qualquer análise dentro do escopo das Ciências Humanas e Sociais, a conjuntura social do objeto em questão que, dentro da literatura marxista, se relaciona com a luta de classes. Assim, por mais que a Venezuela venha sendo uma vítima recorrente das ações imperialistas, situação que se concretiza (em decorrência das sanções econômicas) pelo aumento na mortalidade populacional em 31% entre 2017 e 2018 (aproximadamente, 40.000 mortes), pelas mais de 300.000 pessoas em situação de risco por conta da falta de remédios, pela desestruturação do setor elétrico e da infraestrutura de transportes (Sachs e Weisbrot, 2019), deve-se ter cuidado com o tipo de análise que é realizada. 

Esse cuidado deve ser tomado para não cair na armadilha reacionária que delimita que qualquer tipo de movimentação dentro de um Estado esteja, necessariamente, associado à ação estadunidense (onde estaria, então, a ação da classe trabalhadora?). Isso porque, processos como o Caracazo e as reivindicações da classe operária (Bischain, 2014) durante o Governo Chávez fazem parte de uma dinâmica que envolve a piora das condições de subsistência do proletariado sob o capitalismo. Por isso, a análise rigorosa da geopolítica e da economia mundial perpassa, necessariamente, pelo escrutínio das relações sociais e materiais no campo nacional e internacional, levando em consideração as suas interconexões e contradições, potencialidades e limitações. 

*Gustavo Melo Novais da Encarnação Lopes é pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (LABMUNDO-BA). Doutorando em Administração (NPGA-UFBA). Mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFBA).

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