Por Freya Brown, via Antiimperialism.org, traduzido por Bérnie Dias
Introdução
O presente artigo me pega desprevenida em meio a leitura do livro Materialismo e Empiriocriticismo e de textos que uso de suporte, como Lênin e a filosofia: materialismo, dialética e a crise nas ciências e Com Lênin contra Hegel? “Materialismo e Empiriocriticismo” e as mutações do marxismo ocidental. Nisso me surge uma necessidade: mostrar esse texto ao público marxista brasileiro. Não faço isso por acreditar ter achado um texto irrefutável, mas por ter achado um texto que se propõe em uma linguagem razoavelmente simples responder algo que deveria ser básico aos marxistas, esses que, em matéria de teoria fazem questão de bradar o uso das palavras “materialismo”, “histórico” e “dialético”. Notem, raras são as vezes que se é proposto responder de forma certeira quando questionados os significados dessas palavras ou de seus elementos, quando damos sorte alguém ainda tenta explicar dialética (mas me pergunto se isso realmente seria sorte, dadas as respostas infundadas que tantas vezes escuto sobre).
Então, e para não muito me prolongar, acredito que eu tenha traduzido esse texto por dois motivos:
1) Ele é um texto bem escrito e consegue passar sua mensagem por inteiro; 2) Esse texto nos recorda da defesa ao materialismo, essa parte duramente mais atacada do Marxismo nos dias atuais;
Por Freya B.
Se há algo que pode ser identificado como “Marxismo”, é o método Marxista, tanto na prática teórica quanto na política. No nível da teoria, esse método marxista é o materialismo dialético – ou, se preferirmos, uma dialética materialista (enfatizando que o que torna uma teoria materialista são as mecânicas da própria dialética). Quando esse método é aplicado para construir uma teoria da “formação social”, obtemos o que chamamos de materialismo histórico. Sendo um método materialista, o marxismo presumivelmente tem algo a ver com o “material”. Mas o que isso significa? O que se segue é uma breve discussão de três concepções equivocadas e relacionadas do que um marxista entende por “material”: 1) que o “material” se refere apenas a objetos físicos; 2) que o “material” é sinônimo de “econômico”; 3) que o “material” se refere a coisas que são “pré-sociais”, no sentido de existir “antes” das relações sociais. Os problemas com todas essas noções serão discutidos, seguidos por uma breve descrição de uma alternativa.
O “material” como objetos físicos
Um equívoco comum sobre o que constitui o “material” é que este se refere apenas a objetos físicos e às propriedades físicas desses objetos. Em grande medida, esse equívoco é auxiliado pelo próprio Marx. Por exemplo, Marx ocasionalmente se refere à produção de mercadorias como “produção material”, no sentido de que as mercadorias são “coisas” físicas. Marx também se refere ocasionalmente à produção de não mercadorias, como serviços, como “produção não material”. Além disso, Marx às vezes rotula as propriedades físicas de um objeto (por exemplo, sua composição química) como suas “propriedades materiais”. Mas isso realmente significa que o materialismo de Marx – o materialismo do qual extraímos quando empregamos uma dialética materialista – se preocupa apenas ou principalmente com as coisas físicas e suas propriedades inerentes? Apesar da própria inconsistência de Marx em sua terminologia, à luz da lógica geral que emerge da obra de Marx (especialmente nos Grundrisse e em O capital), temos que responder a essa pergunta com um retumbante não. Este caso pode ser demonstrado com bastante facilidade.
A produção de mais-valia ocupa espaço considerável nos quatro volumes d’O capital. A mais-valia, claramente declarada, é uma relação social em que os capitalistas – que controlam os meios de produção – empregam trabalhadores que só têm sua força de trabalho para vender, e em que os capitalistas forçam os trabalhadores a trabalhar por mais tempo do que o necessário para reproduzir a própria existência dos trabalhadores. Nesses termos, a mais-valia é algo que podemos tocar ou ver? Certamente podemos ver/tocar os objetos nos quais a mais-valia está incorporada. Também podemos ver claramente os efeitos da mais-valia – a acumulação de riqueza nas mãos de poucos e o empobrecimento da maior parte da humanidade. Mas a própria mais-valia… isso é algo que podemos realmente dizer que é um objeto físico? Definitivamente não; em última análise, a mais-valia não é uma “coisa”, mas uma relação entre pessoas. A mais-valia pode ser considerada uma propriedade física de um objeto, inerente à sua composição? Não; embora a mais-valia tenha uma medida (tempo de trabalho), ela não pode ser medida no nível das propriedades físicas de uma mercadoria. Como Marx brinca: “Até hoje nenhum químico descobriu o valor de troca [ou mais-valia para esse assunto – F.B.] na pérola ou no diamante”. As mercadorias podem incorporar mais-valia, mas apenas porque são produzidas dentro de uma relação social entre trabalhadores e capitalistas. A relação é objetivada na “coisa”, mas a relação em si não é uma “coisa”.
Uma vez que a mais-valia e outras relações sociais ocupam muito do tempo de Marx, e ainda porque Marx desdenha de fato de procurar respostas para questões sociais no nível das propriedades físicas, pode-se argumentar que, apesar de suas próprias reivindicações, Marx não era um materialista. Se o materialismo significa necessariamente que alguém está focado em objetos físicos e suas propriedades, então talvez essa afirmação esteja certa. No entanto, em nossa opinião, faz mais sentido ter uma definição menos estreita do “material”. As coisas físicas são materiais, mas as relações sociais também. As relações entre as pessoas existem além do reino da vontade individual e existem externamente aos nossos pensamentos. Nesse sentido, são materiais. De fato, o materialismo de Marx, por razões que serão discutidas mais adiante, está consideravelmente mais interessado nas relações sociais do que nos objetos/propriedades físico/as.
O “material” como o “econômico”
Outro equívoco frequente sobre o materialismo marxista, novamente compreensível até certo ponto, é que o “material” é basicamente sinônimo de “econômico”. Não é preciso muita imaginação para ver como se poderia chegar a tal conclusão depois de estudar Marx. Notavelmente, a magnum opus de Marx é de fato uma crítica da economia política e pode ser justificadamente considerada uma grande obra da economia política por si só. Marx também procurou explicar o movimento dos eventos históricos principalmente por meio da luta de classes, com as classes certamente sendo fundadas em uma relação econômica. A teoria marxista também contém termos francamente carregados, como “base” e “superestrutura”. Quando entendida adequadamente, essa metáfora estrutural pode nos ajudar muito quando tentamos conceituar a relação precisa entre as muitas facetas da sociedade. Mas uma leitura grosseira e superficial da dinâmica da “base-superestrutura” – que vê a superestrutura como de alguma forma “ilusória” ou menos importante – pode facilmente levar a conclusões reducionistas. Tal interpretação grosseira recebe credibilidade (indevida) por algumas das obras anteriores de Marx, onde a redução econômica está claramente presente. As interpretações populares de Marx também não ajudaram. O peso da Segunda Internacional, da qual os “marxismos” econômico-reducionistas [usarei economicistas na ao traduzir daqui em diante] em grande parte derivam, ainda pesa sobre nós hoje (“como um pesadelo”, alguns diriam).
Ao ponto: é comum que muitos que reivindicam o marxismo (pelo menos tacitamente) assumam que, porque Marx gastou tal esforço iluminando as relações econômicas da sociedade capitalista, então, para algo ser “material”, ser “real” no sentido marxista, deve ser econômico. Em outras palavras, presume-se efetivamente que o materialismo de Marx o levou ao econômico porque o econômico é o que é “material”. Há, consequentemente, uma tentativa de explicar tudo em termos econômicos. As categorias que Marx expôs em O capital (por exemplo, valor, mais-valia, divisões sociais do trabalho) são aplicadas ou adaptadas a tudo sob o Sol, inclusive a muitos lugares aos quais provavelmente não pertencem. Cada característica da “superestrutura” deve ter alguma correspondência direta com uma categoria econômica. Alternativamente, coisas que não podem ser facilmente dadas explicações econômicas são ignoradas. Mesmo teorias pouco ortodoxas que criticam, expandem e modificam a economia política de Marx – por exemplo, o movimento “salários para o trabalho doméstico” na Itália e o trabalho feminista que surgiu a partir disso – ainda parecem se sentir pressionadas a reduzir as coisas a uma explicação econômica, como se elas devessem fazê-lo para serem adequadamente “materialistas” e bem fundamentadas.
É claro que devemos reconhecer que, no nível da totalidade (a “formação social”), Marx considera as relações econômicas fundamentais para os sistemas sociais. Este é um dos componentes do materialismo histórico que o separa de outras teorias sociais. Em contraste, no entanto, a maioria dos teóricos que reivindicam o marxismo tenta analisar todos os fenômenos políticos, ideológicos, culturais, etc., como se fossem meros reflexos das relações econômicas ou fossem redutíveis às relações econômicas em algum sentido. Novamente, um exemplo clássico seria a insistência entre as feministas socialistas e o movimento “salários para o trabalho doméstico” de que o gênero deve ter se originado em uma divisão do trabalho e deve continuar a ser fundado em tal divisão, como se apenas isso tornasse a opressão “material”. Mas há muitos outros exemplos – pode-se, basicamente, pegar um punhado de literatura marxista e encontrar esses padrões.
A diferença entre a afirmação de que o econômico é fundamental no nível da formação social e dizer que política, ideologia, cultura etc. são meros reflexos das práticas econômicas ou são simplesmente epifenômenos destas últimas, é um tópico que merece sua própria longa discussão. Por enquanto, vamos focar em outro ponto importante. A tendência de reduzir fenômenos “superestruturais” a termos econômicos é em grande parte um produto dos marxistas que querem parecer muito materialistas (e confundir o econômico com o “material”). Infelizmente, porém, essa redução econômica é de fato idealista! Essa afirmação certamente parecerá ridícula no início, mas é a verdade. A razão é: materialismo e idealismo não são tanto conjuntos específicos de conclusão, mas abordagens metodológicas. Como veremos, a redução econômica tão comum entre aqueles que reivindicam o marxismo é um produto da lógica que é fundamentalmente idealista em sua estrutura, apesar de superficialmente “inverter” o idealismo hegeliano. Para ser mais preciso, colocar a dialética idealista de Hegel “de pé” e terminar com uma explicação econômica de tudo deixa inalterada a estrutura idealista da dialética.
A noção de que as explicações econômico-reducionistas ou funcionalistas das práticas sociais são de fato idealistas (apesar de sua fachada “materialista”) não é original, mas foi bem articulada por Louis Althusser no ensaio Contradição e Sobredeterminação. Embora menos popular do que Aparelhos Ideológicos de Estado e outros trabalhos mais lidos de Althusser, Contradição e Sobredeterminação merece ser revisitado porque, embora possa ser tecnicamente menos rigoroso do que ensaios posteriores, é indiscutivelmente mais poderoso e expressa algo mais profundo.
Althusser argumenta que uma dialética materialista não é diferenciada de uma idealista (por exemplo, a dialética idealista de Hegel) por uma mera mudança em sua aplicação. A concepção popular de que, para Hegel, a dialética descrevia o mundo da Ideia, onde, para Marx, a dialética é aplicada ao mundo real, é basicamente irrelevante para a questão de se ser materialista ou não. Para Althusser, a dialética não pode ser simplesmente extraída de Hegel e aplicada a propósitos “materialistas” – o idealismo está embutido na própria estrutura da dialética de Hegel. Assim, a geração de uma dialética materialista requer modificação dessa estrutura, em vez de uma mudança em onde a dialética é aplicada.
O argumento de Althusser pressupõe alguma familiaridade com o pensamento de Hegel, portanto, antes de elaborar, é útil resumir brevemente os conceitos hegelianos que Althusser critica. Em particular, a compreensão de Hegel da natureza do ser é o que está sob escrutínio. Essa dialética do ser é apresentada por Hegel em Lógica e em Fenomenologia do Espírito, e pode ser resumida assim:
Para Hegel, o ser passa por três “momentos” ou “estágios”…
1. Ser-em-si (ou Imediatidade): Primeiro, consideramos o ser por conta própria, isolado de todos os outros seres. Por si só, o ser é inexpressivo para Hegel. Assim, pode parecer que Hegel concorda em certo sentido com Immanuel Kant: que um ser em si – um ser considerado inteiramente por si só – não pode ser conhecido. No entanto, Hegel acreditava que um ser-em-si é incognoscível por uma razão diferente. Kant acreditava que a razão pela qual não podemos realmente conhecer um ser-em-si é porque não podemos ter acesso direto a ele; as características do objeto devem passar por nossas percepções e são inevitavelmente modificadas no processo. Para Hegel, por outro lado, um ser-em-si não pode ser conhecido porque não há nada a saber sobre ele. Ser considerado por si só é completamente vazio e sem forma. Hegel, portanto, postula uma identidade original do ser e do nada. Nesta primeira “etapa” da dialética, há uma unidade perfeita, pois ainda não há “coisas” a serem diferenciadas umas das outras, mas por causa disso, ser é completamente indescritível.
2. Ser-para-outro (ou mediação): Embora Hegel primeiro afirme que o ser não é nada, sabemos, é claro, que, na realidade, existem coisas que podem ser diferenciadas umas das outras. Assim, Hegel deve sair dessa simples identidade de ser e nada de alguma forma. A maneira como ele faz isso é através da noção de tornar-se. Para Hegel, já no momento do “ser-em-si”, já no momento em que afirmamos o ser em geral, está implícito nisso um estado de desenvolvimento mais determinado. Dizer que um ser existe implica determinação; o que um ser sem forma tem “em-si”—o que um ser “em-si” está se tornando, é ser determinado. E criticamente, um ser se torna determinado quando é colocado em relação com outras coisas. Dizer que existo, por exemplo, é dizer que não sou outra coisa. Dizer que tenho cabelo castanho implica uma relação com os outros, ou seja, que não tenho cabelo vermelho, preto ou loiro. Dizer que sou mulher implica uma relação com homens, etc. Nesse segundo “momento” da dialética, o ser torna-se diferenciado. Coisas diferentes existem, e elas existem através de suas relações com outras coisas. Ser se torna para outro. Para Hegel, esta é também a aparência de sujeito e objeto. O objeto existe para o sujeito e assim o último passa a dominar sobre o primeiro.
3. Ser-em-si-e-para-si (ou imediatismo mediado): No mesmo sentido que o momento de “ser-para-outro” nega a falta de forma e o vazio do “ser-em-si”, “ser-em-si-e-para-si” nega o estado de “ser-para-outro”. Nesse terceiro momento da dialética, desaparece a dominação do objeto pelo sujeito. O sujeito é visto como a forma alienada do objeto e vice-versa. As coisas são diferenciadas umas das outras, mas no sentido de que são formas diferentes de uma essência unificada. Esse estado pode ser equiparado à realização da “Ideia Absoluta”, um ponto que nunca é alcançado, mas, no entanto, a dialética descreve o movimento em direção à realização do “Absoluto”, a identidade última do pensamento e do ser.
Sem dúvida, há aspectos da dialética de Hegel que Marx herda, e aqueles que estão bastante familiarizados com a filosofia marxista reconhecerão aspectos cruciais do pensamento de Marx neste resumo de Hegel. No entanto, também existem componentes da dialética de Hegel que podem ser seriamente criticados – e de fato devem ser, se quisermos nos libertar do idealismo.
Primeiro, embora seja um equívoco pensar que a dialética de Hegel acaba precisamente no mesmo lugar de onde começa, ainda podemos notar que há algo bastante circular nessa estrutura. O ponto de partida é um estado de unidade simples: o ser não é nada. Passamos por um momento de diferenciação, onde o ser se torna determinado por meio de sua relação com os outros seres. Mas esse estado é de fato um “momento”- ele existe para ser negado por um retorno à imediatidade. Essa imediatidade é (paradoxalmente) mediada, no sentido de que o ser não é mais sem forma e vazio, mas seres diferentes são simplesmente as formas alienadas um do outro.
Segundo, porque nessa dialética o estado futuro é visto como implícito no estado anterior – e é por isso que Hegel diz que uma semente é uma “planta em si” e por que “em si” (an sich) às vezes é traduzido como “implícito” em algumas traduções de Hegel – o passado é apenas a sombra do presente, o presente a realização do que já estava implícito no passado. Todo o desenvolvimento de uma coisa é visto como procedente de seus primórdios simples; o movimento dos eventos é o movimento próprio de uma contradição simples.
Ambas as noções relacionadas alimentam diretamente o conceito de Hegel de “totalidade”. Para Hegel, a totalidade é um todo unificado composto de muitas contradições. Aplicada à história e às ciências sociais, uma sociedade ou “formação social” é uma totalidade na medida em que é uma unidade de muitas contradições. Nesse nível, o conceito de “totalidade” é algo que Marx compartilha com Hegel. Mas para Hegel, a totalidade é um “todo orgânico”, o que significa que todas as muitas contradições e muitas determinações que compõem a totalidade são de fato reflexos de uma essência unificada: a própria totalidade, a “Ideia”, a “Verdade” de um determinado período de tempo. Como Althusser elabora,
“Essa verdade é ainda mais clara na Filosofia da História. Também nela se encontram as aparências da sobredeterminação: não é toda sociedade histórica constituída de uma infinidade de determinações concretas, das leis políticas à religião, passando pelos costumes, usos, regimes financeiro, comercial, econômico, sistema de educação, artes, filosofia etc.? No entanto, nenhuma dessas determinações é, em sua essência, exterior às outras, não só porque elas constituem todas juntas uma totalidade orgânica original, mas ainda e acima de tudo porque essa totalidade se reflete num princípio interno único, que é a verdade de todas essas determinações concretas. Assim Roma: sua gigantesca história, suas instituições, suas crises e seus empreendimentos não são mais do que a manifestação no tempo e depois a destruição do princípio interno da personalidade jurídica abstrata. Esse princípio interno contém nele como ecos todos os princípios das formações históricas superadas, mas como ecos de si mesmo, e é por isso que ele também não tem senão um centro, que é o centro de todos os mundos passados conservados em sua recordação é por isso que ele é simples. (…)
Basta então perguntar-se por que os fenômenos de mutação histórica são pensados por Hegel mediante esse conceito simples de contradição, para colocar justamente a questão essencial. A simplicidade da contradição hegeliana não é possível, com efeito, a não ser pela simplicidade do princípio interno, que constitui a essência de todo período histórico. É porque de direito é possível reduzir a totalidade, a infinita diversidade de uma sociedade histórica dada (a Grécia, Roma, o Sacro Império Romano, a Inglaterra etc.) a um princípio interno simples, que essa mesma simplicidade, adquirida assim de direito à contradição, pode se refletir aí. É preciso ser ainda mais claro? Essa redução mesma (cuja ideia Hegel tomou emprestada de Montesquieu), a redução de todos os elementos que fazem a vida concreta de um mundo histórico (instituições econômicas, sociais, políticas, jurídicas, costumes, moral, arte, religião, filosofia, até os acontecimentos históricos: guerras, batalhas, derrotas etc.) a um princípio de unidade interna, essa redução só é possível com a condição absoluta de considerar toda a vida concreta de um povo como a exteriorização-alienação (Entãusserung-Entfremdung) de um princípio espiritual interno, que jamais é, em última análise, senão a forma mais abstrata da consciência de si desse mundo: sua consciência religiosa ou filosófica, ou seja, sua própria ideologia. Percebe-se, penso eu, em que sentido a “ ganga mística” afeta e contamina o “núcleo” – visto que a simplicidade da contradição hegeliana nunca é senão a reflexão da simplicidade desse princípio interno de um povo, ou seja, não de sua realidade material, mas de sua mais abstrata ideologia. (…) É preciso compreender de uma vez que todas essas arbitrariedades (mesmo iluminadas por instantes por visões verdadeiramente geniais) não estão milagrosamente confinadas só à “ concepção do mundo”, só ao “sistema” de Hegel, mas que elas se refletem de fato na estrutura, nas próprias estruturas de sua dialética, e particularmente essa “contradição” que tem a tarefa de mover magicamente para seu Fim ideológico os conteúdos concretos desse mundo histórico.” [Grifos constam na tradução em inglês.]
Em termos mais claros, a leitura da história de Hegel admite superficialmente a complexidade de uma formação social, suas determinações econômicas, políticas, ideológicas, culturais, etc. Porém, essa complexidade é efetivamente apenas um “momento” a ser negado pela redução de todas essas determinações a um princípio singular e interno. O desenvolvimento de uma sociedade é visto como o movimento próprio de uma contradição simples. É isso que leva Hegel a um território especulativo e idealista. E, como é esperançosamente um pouco claro agora, essa redução da complexidade da sociedade a um princípio simples decorre logicamente da estrutura da própria dialética, onde o presente e o futuro estão implícitos no passado, e onde a diferenciação é apenas a alienação (temporária) de uma essência singular e unificada.
Essa discussão sobre Hegel pode parecer uma longa digressão, mas aqui está o ponto: a redução econômica que está presente nos primeiros trabalhos de Marx, em uma parte substancial do trabalho de Engels e no trabalho de muitos marxistas subsequentes é funcionalmente idêntica ao idealismo hegeliano. A afirmação de que Marx e Engels “inverteram” a dialética de Hegel pode ser ainda mais verdadeira do que os marxistas grosseiros que repetem essa frase podem perceber – mas é verdade no sentido de que ao ter “invertido” a dialética os “marxistas” economicistas de Hegel não fizeram nada para alterar a estrutura idealista da dialética! Na visão economicista, que busca explicar todas as facetas da sociedade como se devessem ter alguma correspondência direta com as práticas econômicas, a sociedade é vista como uma totalidade orgânica da mesma forma que no pensamento de Hegel. A sociedade é vista como composta de muitas determinações e muitas contradições, mas cada uma dessas determinações é um reflexo de uma essência econômica. Toda complexidade se reduz ao automovimento de uma contradição simples: no caso do capitalismo, a contradição entre capital e trabalho. Ao “inverter” a dialética hegeliana, os termos mudam, mas conceitualmente e em função a história é a mesma. O “modo de produção” (no sentido estreito e economicista do termo) representa a “Ideia”, e o Comunismo substitui a “Ideia Absoluta”. A história é o automovimento [self-movement] da humanidade em direção ao Comunismo, um “objetivo” já implícito no presente e até mesmo no passado, e esse movimento [motion] é impulsionado unicamente pela contradição de classe.
É por isso que o “material” no sentido marxista não pode ser confundido com o “econômico”. Ao reduzir todas as coisas a termos econômicos em um esforço para ser muito “materialista”, os reducionistas econômicos ironicamente caem nas armadilhas do idealismo hegeliano. A visão de que todos os fenômenos sociais são essencialmente o autodesenvolvimento do econômico é tão inútil quanto a noção de que toda a sociedade é o produto da “Ideia”, em grande parte porque a lógica que justifica essas visões é a mesma. Para que haja um materialismo marxista (e argumentamos que há), esse materialismo deve se distinguir da lógica reducionista subjacente presente em Hegel e em grande parte do trabalho daqueles que reivindicam o marxismo. Assim, devemos reconhecer que o que é “material” pode ser diferente de econômico e pode ter sua própria lógica que não é redutível à prática econômica.
O “material” como o “pré-social”
Talvez o equívoco mais nefasto sobre o materialismo marxista seja que o “material” se refere ao que existe independentemente da sociedade, ou seja, ao que é “pré-social”. Parte desse argumento já está em frangalhos, pois, como observamos acima, Marx passa a maior parte (efetivamente todo?) de seu tempo discutindo coisas que ele claramente vê como socialmente construídas (para usar a terminologia moderna). Enquanto isso, Marx é consistentemente desdenhoso de localizar explicações para fenômenos sociais no nível da biologia ou química ou geralmente fatores “pré-sociais”. No entanto, a ideia do “material” como aquilo que existe antes das relações sociais ainda é um pouco comum entre aqueles que reivindicam o marxismo.
Talvez esse conceito persista em parte porque pode estar intimamente relacionado à redução econômica generalizada que acabamos de discutir. Observamos que muitos que reivindicam o marxismo sentem o desejo de reduzir as coisas a termos econômicos para parecerem “materialistas”, mas por quê? Além da própria ênfase de Marx na economia política, uma explicação pode ser que, se o “material” significa o “pré-social”, então um “materialista” nesse sentido pode dar preferência à economia. No pensamento de alguns que reivindicam o marxismo, a economia é fundamental para a formação social e/ou todos os fenômenos sociais são reflexos do “econômico”, porque a economia é o que sacia as necessidades humanas, que são biológicas, portanto “pré-sociais”, portanto “materiais”. Muitos seguidores de Marx, incluindo Engels, postulam que o ponto de partida para Marx era o reconhecimento de necessidades biológicas, como comer, e porque o biológico é o ponto de partida, é por isso que a economia é vista como “determinada”. Como Engels colocou,
“Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião etc; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento econômico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, das têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente”.
A simples “inversão” do idealismo hegeliano é aqui justificada por um apelo ao “pré-social” (ou seja, as necessidades biológicas de comida, água, abrigo, etc.) e, portanto, pretende ser “materialista”. Já vimos por que é absurdo afirmar que uma mera “inversão” do hegelianismo é materialista em qualquer caso. Contudo ainda devemos criticar a noção de que Marx via a “base econômica” como fundamental porque seu ponto de partida era, para dizer grosseiramente, a biologia humana.
Primeiro, podemos simplesmente notar a fraqueza absoluta de tal ponto de vista. No grande esquema das coisas, muito pouco da atividade humana é dedicada à mera saciedade das necessidades biológicas básicas. Ninguém pode negar que, para sobreviver, os corpos precisam de sustento. Mas as atividades sociais, mesmo econômicas, são realmente redutíveis à produção de tal sustento? Mesmo a produção de alimentos não pode realmente ser explicada simplesmente por um apelo à biologia. O corpo pode sobreviver tecnicamente em condições extremamente nuas e severas. Como explicamos quase nada sobre a produção de alimentos, como realmente acontece na sociedade, apontando para a necessidade de sobrevivência? O mesmo poderia ser dito para a produção de outras necessidades. O corpo pode precisar de proteção contra os elementos em muitos tipos de condições, mas a produção de camisetas realmente tem muito a ver com a sobrevivência? Além disso, como todos sabemos, a atividade econômica se estende muito além da produção de alimentos e outras coisas que são consideradas necessidades. Por exemplo, a produção de computadores e outros eletrônicos são claramente extremamente importantes no sistema capitalista moderno. Entretanto, certamente ninguém precisa biologicamente de um computador. Se nossa visão é que a economia é fundacional puramente porque as economias produzem o que é biologicamente necessário para sobreviver, temos um modelo muito limitado, de fato, quase risível.
Na verdade, para ver a “base econômica” como fundacional no nível da formação social, não há necessidade de apelar para nada “pré-social”. Isso fica bastante claro por Marx na introdução dos Grundrisse:
A produção, por sua vez, fornece correspondentemente o material e o objeto para consumo. Um consumo sem objeto não é consumo; portanto, sob esse aspecto, a produção cria, produz o consumo. Mas não é somente o objeto que a produção cria para o consumo. Ela também dá ao consumo sua determinabilidade, seu caráter, seu fim. Assim como o consumo deu ao produto seu fim como produto, a produção dá o fim do consumo. Primeiro, o objeto não é um objeto em geral, mas um objeto determinado que deve ser consumido de um modo determinado, por sua vez mediado pela própria produção. Fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente. Por essa razão, não é somente o objeto do consumo que é produzido pela produção, mas também o modo do consumo, não apenas objetiva, mas também subjetivamente. A produção cria, portanto, os consumidores. A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade ao material.” [Grifo da autora]
Em outras palavras, sim, as pessoas têm corpos com certas necessidades que existem independentemente da sociedade, mas por si só isso tem pouco ou nenhum significado social para Marx. Mesmo a mais básica das necessidades, como comer, não pode realmente ser considerada “pré-social” porque comer como realmente existe na sociedade é fundamentalmente mediado por relações sociais, é uma prática que é produzida. A produção — nesta discussão nos Grundrisse, o componente predominante da “base econômica”— cria necessidades (que vão desde a necessidade de comer até a necessidade de ter computadores em uma sociedade lotada de informação) que devem ser satisfeitas com os bens produzidos. É por isso que Marx vê o econômico como fundacional, não por causa de um apelo à biologia ou qualquer coisa “pré-social”.
A razão pela qual Marx é tão adverso a apelar para o “pré-social” tem a ver com um componente fundamental da ontologia de Marx. Embora seja perigoso ler demais as categorias hegelianas no marxismo, como discutimos acima, também seria um grave erro oscilar na direção totalmente oposta e afirmar que Marx não herdou nada de Hegel. Uma das coisas mais importantes que Marx extrai de Hegel (embora não sem modificação) é a noção de que os seres são determinados por meio de suas relações com outros seres. Esse princípio ontológico é claramente refletido em todo o corpo de trabalho de Marx. Por exemplo, em Trabalho Assalariado e Capital, Marx escreve: “Uma máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar algodão. Apenas em determinadas relações ela se torna capital. Arrancada a estas relações, ela é tão pouco capital como o ouro em si e para si é dinheiro, ou como o açúcar é o preço do açúcar”. Essa noção também aparece nas obras mais maduras de Marx, nominalmente, capital vol. I: “O capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, intermediada por coisas”. Para Marx, isso não se aplica apenas a categorias da economia política, mas é um princípio ontológico mais amplo. As relações em que algo está envolvido definem o que é. Quando as “relações internas” que compõem um fenômeno mudam, o que esse fenômeno é muda. Quando uma coisa é removida das relações que a definem, ela deixa de ser o que era.
Podemos até seguir essa dialética mais longe do que Marx se importa. Uma máquina de fiar algodão deixa de ser capital quando é removida das relações capitalistas. Mas continua sendo uma máquina de fiação de algodão por causa de outra relação em que está envolvida: é produzida para fiar algodão e, presumivelmente, na sociedade em que essa máquina é produzida, há algodão a ser fiado. O que acontece quando a máquina de fiar algodão é arrancada dessa relação, ou seja, quando é arrancada de uma sociedade que produz algodão? Permaneceria um aparelho de algum tipo, mas deixaria de ser uma máquina de fiar algodão. Se esse aparelho fosse colocado em uma sociedade que não produzisse algodão e não tivesse conhecimento do processo de fiação de algodão, claramente não seria uma máquina de fiação de algodão nessa sociedade. Seria outra coisa: talvez a sociedade encontrasse outro uso para ele, ou seria uma anomalia, ou lixo. O ponto é que, novamente, uma máquina de fiação de algodão é apenas uma máquina de fiação de algodão por causa de uma relação particular em que está envolvida. E poderíamos regredir ainda mais. O que aconteceria se uma coisa fosse arrancada de todas as relações (deixando de lado que isso seria impossível)? Na estrutura dialética de Marx, deixaria de ser qualquer coisa, ou pelo menos qualquer coisa socialmente significativa.
É por essa razão que Marx cita favoravelmente a afirmação de Spinoza de que “toda determinação é uma negação”. Para Marx, todas as categorias sociais são o que são por causa das relações sociais em que existem – essas relações são internas ao que os seres sociais são. Portanto, embora seja verdade que, em uma estrutura marxista, características como anatomia ou química existem materialmente, na ausência de relações sociais, essas características não têm nenhum significado social. Voltando ao nosso exemplo anterior, é verdade que os seres humanos têm corpos que exigem sustento, mas abstraídos das relações sociais, isso não significa nada para Marx. O que somos é fundamentalmente marcado por relações sociais; assim, em uma estrutura marxista, qualquer afirmação sobre como os seres humanos são deve ser acompanhada por uma explicação de como chegamos a ser assim, quais relações sociais nos produziram dessa maneira. É por isso que Marx está bastante despreocupado com o “pré-social”- em uma estrutura dialética e materialista, não há nada realmente a dizer sobre o “pré-social”,
Por essas razões, quando um marxista fala sobre a “base material” de uma coisa, ele não pode realmente estar falando sobre algo que existe antes das relações sociais. Para um marxista, o “pré-social” é uma abstração vazia que não pode ser sensivelmente tratada como a “base” para qualquer fenômeno social. Na verdade, o que se entende por “base material” é o conjunto de relações sociais que são fundamentais para alguma característica da sociedade ou para alguma ideia. A noção de que algo deve existir independentemente da sociedade para ser “material” no sentido marxista é francamente uma leitura horrenda do que torna o pensamento de Marx – e o marxismo em geral – distinto e poderoso.
O que é o materialismo Marxista?
O significado real do “material” dentro do marxismo é mais amplo, mas também mais simples do que qualquer uma das concepções acima. Uma dialética materialista postula, em primeiro lugar, que o pensamento e o ser são unificados e que eles se interpenetram (eles se influenciam), mas também que são distintos. O ser existe fora do pensamento e o movimento do ser não segue necessariamente nenhuma lei do desenvolvimento do pensamento. O “material” é esse ser que existe externo ao pensamento e é distinto do pensamento. Tudo o que existe fora do pensamento é “material” no sentido marxista.
Essa distinção pode parecer banal, mas na verdade importa (sem trocadilhos). Ao postular uma distinção rudimentar entre o mundo material e o mundo do pensamento, rejeitamos qualquer movimento necessário em direção à identidade do pensamento e do ser, e ajudamos a evitar o idealismo de Hegel que via o mundo externo como necessariamente procedendo de acordo com um desenvolvimento no pensamento. Em suma, a distinção entre o material e o pensamento nos permite reconhecer que não podemos apenas pensar nosso caminho em direção ao comunismo, e centra nossos próprios pensamentos em um contexto específico, evitando proposições arrogantes e trans-históricas.
Seguindo isso, na visão marxista, os objetos físicos, suas propriedades, nossos corpos, “natureza”, etc. são todos materiais, mas também o são as relações sociais. E porque uma dialética materialista postula que as relações em que algo está envolvido tornam essa coisa o que ela é, os marxistas estão principalmente preocupados com as explicações sociais para os fenômenos sociais. As categorias “pré-sociais” não podem, na ontologia marxista, ser a base de um fenômeno social. Assim, na terminologia popular, todas as facetas da sociedade são socialmente construídas para um marxista. No entanto, essas construções sociais também são materiais. Eles não são meramente o produto de “ideias”, como muitos afirmam ser o “construtivismo social”; em vez disso, essas construções existem fora de nossos pensamentos e independentemente da vontade individual. Classe, raça, sexo/gênero, nação, etc. são todos produzidos, isto é, construídos, e são materiais. É isso que significa o materialismo marxista. O marxismo substitui a antiga luta entre idealismo e “realismo” e apresenta uma poderosa ontologia social que reconhece a “realidade” das estruturas sociais, ao mesmo tempo em que postula que cada uma dessas estruturas é produzida e, portanto, pode ser radicalmente transformada, até seus próprios fundamentos.
1 comentário em “O que um marxista entende por “material”?”
Muito bom o texto na maior parte, mas não sei se concordo com a conclusão. Afirma que as relações sociais são materiais, mas que o material é o ser externo ao pensamento. Quer dizer, então, que o pensamento não é parte e produto de relações sociais? Me pareceu criar uma distinção muito rígida entre indivíduo (pensante) e sociedade (relações, estruturas), que não se observa quando pensamos em, por exemplo, trabalho ou linguagem.