Militância fora do real: fogo que não faísca (Balanço do uso do conceito de ação performática)

Por Clarisse Gurgel, autora do livro Ação performática: análise institucional e luta de classes

No fim do ano de 2021, tivemos a oportunidade de ler o texto A militância real e a performance “revolucionária”, da autoria de Carol Estevão, João Oliveira e Guilherme Quina, publicado na página da União da Juventude Comunista (UJC). O texto é provocativo e, sem dúvida, busca tocar em questões muito importantes, mas algumas confusões podem ser expressão do que temos tentado apontar como crise da dialética na própria esquerda, fenômeno já abordado por outros filósofos e datado da época do próprio Marx. Na esteira de sua superação, a dialética – como filosofia e não como método – auxilia-nos, inclusive, no enfretamento das consequências desta crise para a própria práxis revolucionária.

O objeto de investigação de Estevão, Oliveira e Quina segue, por todo texto, obscuro, sem que fique claro aquilo que busca combater. Dedicado a caracterizar o que seria “meramente performático”, o texto busca analisar aquilo que seria o saldo organizativo das táticas políticas adotadas recentemente nos atos da esquerda brasileira. Considerando as dificuldades que o conceito de ação performática apresenta, os autores parecem fazer certa confusão entre o que seria performático, o que seria uma fetichização da violência – elemento acessório à performance – e o que seria ação direta ou aquilo que alguns coletivos anarco-autonomistas intitulam como “ação direta” (a destruição de vidraças de lojas, vitrines de bancos, pontos de ônibus etc). De antemão, temos uma espécie de senda metodológica: avaliar se uma tática foi performática ou não é, justamente, fazer o balanço quanto a sua eficácia. Esta eficácia, por sua vez, mede-se pelo tempo e pelo espaço, se a ação se desdobra e se a ação se expande.

Ainda sem esta compreensão, o que se extrai do texto dos colegas é que a organização da classe trabalhadora é uma alternativa à estética na política, esta compreendida como espetacularização ou como ação performática. Um leitor de má-fé poderá, nesta direção, concluir que a ação performática seria sinônimo de ação direta – quando a verdade é o exato oposto. O que nos autorizaria a chamar de “performáticas” essas modalidades de ação é aquilo que não autorizaria chamá-las apropriadamente de “diretas”. Só assim seria possível frisar (algo de extrema importância para a política revolucionária) que existem, sim, modalidades de ação direta que geram saldo organizativo – por exemplo, uma ocupação do movimento de moradia ou o bloqueio de alguma rodovia com pneus em chamas etc. A diferença fundamental é que, enquanto esse tipo de ação direta pretende executar pela força da massa a solução para seus próprios problemas (como diz o hino da Internacional: “façamos nós com nossas mãos tudo que a nós nos diz respeito”); o outro tipo de “ação direta” é uma expressão – no sentido forte do termo, já que envolve muito mais uma demonstração do que uma alteração da cena – de rua, como simulação de radicalidade das manifestações de rua. Essas “expressões de rua” são ações performáticas quando buscam imprimir um semblante de rompante massivo, comumente por meio de embates que se repetem – como rituais expurgatórios -, sem, contudo, conduzir a luta a um passo além de seu caráter de “apelo às autoridades” – a esse respeito, remetemos às considerações do camarada Gabriel Landi.

Serve-nos de consolo saber que muitos conceitos exigem, permanentemente, um esforço de esclarecimento e memorização. Sentimos que é o caso do nosso conceito de Ação Performática. Como um diagnóstico, ademais, a ação performática nem teria existência, se o mundo já estivesse amplamente habituado a uma episteme dialética necessária à plena compreensão de todo e qualquer conceito – mesmo os que conformam pensamentos dos mais funcionalistas – e, portanto, a uma prática consistente. Sem estabelecer uma precedência necessária da teoria em relação à prática, o que tentamos, mais uma vez, é chamar atenção para uma crise da práxis na esquerda.

O conceito de ação performática tem origem na militância brasileira, em um círculo de cerca de dez militantes, oriundos do PT, pós Reforma da Previdência, em meados de 2002. Nas reuniões, no Rio de Janeiro, de um pequeno coletivo denominado Reage Socialista – Coletivo Fundador, o termo “perfomance” foi sendo adotado como forma claramente pejorativa de caracterizar qualquer ação política organizada que não tivesse qualquer desdobramento para além de si mesma. Deste termo usual, foi feito um esforço de elaboração, que segue até hoje, no sentido de caracterizar melhor e de buscarmos os fundamentos disto que percebíamos já como algo que se tornava preponderante no campo da esquerda brasileira. Hoje, avançamos na percepção de que a Ação Performática é fenômeno derivado de uma formação econômica e social brasileira fortemente estadunidense, cujo modus operandi é marcado pela filosofia pragmatista. Nestes marcos, a ação política também assume feições pragmáticas, ajustando-se a uma gramática funcionalista. Não só a ideia de democracia é delimitada, a partir disto – os partidos são para disputar eleições – como a própria esquerda seria subsumida à fórmula da resistência por petições e demonstrações. Como senda para estas investigações, tem-nos servido o conceito de americanismo, em Gramsci.

Nosso trabalho continua, mas, por origem, ele envolveu situar, antes de tudo, o termo performance no campo da Teoria da Ação. Era o que nos permitia retirar a noção de performance daquilo que seria um comportamento e posicioná-lo dentre formas de ação social para, em seguida, desvinculá-lo de um debate estritamente estético. Deste modo, seria possível, ademais, compreender a performance – agora, já, como ação performática – como um fenômeno que se repetia, ou seja, como uma pulsão que obedecia a algum princípio ainda por ser decifrado. Buscamos, ao mesmo tempo, fundamentar o uso do termo oriundo das artes, através do que, no Teatro, a arte de performance possui de diferente, em relação a outras formas teatrais, tais como o drama e o teatro épico. Assim, íamos sendo levados a entender que a ação performática apresentava de comum com a arte de performance era sua temporalidade, seu pouco preparo, sua ocorrência concentrada no tempo presente, e na sua espacialidade, com uso extraordinário do espaço e sem uma estrutura explícita como um texto dramatúrgico, um grupo teatral ou uma instituição organizadora. Diferente de um espetáculo teatral, que tem um texto, a arte performática concentra-se em um só ato, em geral expresso por um só ator, de curta duração e sem continuidade.

A presença ou ausência de texto teatral é característica relevante para a distinção entre uma arte de perfomance e uma montagem teatral. O mesmo pode se dizer acerca de uma ação social ou política adotada por um sujeito, seja individual, seja coletivo. Neste sentido foi que um sociólogo, chamado Ervig Goffman, forjou a noção de ação dramatúrgica. Esta, sim, possui texto. Razão pela qual o autor caracterizou seu conceito como de um tipo de representação do Eu, na vida cotidiana. Não apenas uma imagem, a ação dramatúrgica possui um cultivo. E de tanto repetir-se, como repete-se um espetáculo em temporada, a ação vai forjando a persona, que torna-se conhecida pelos demais por sua conduta regular. Uma ação teatral, portanto, que possui texto, expõe, necessariamente: a dramaturgia (as falas e rubricas), o drama (o conflito, as ações) e os personagens (os sujeitos). Em termos sociológicos, Goffman transpôs o termo para o de uma ação dramatúrgica. Uma ação política que não possui nada disso é ação performática.

A ação performática, conceito forjado por nós, no Brasil, é caracterizadora, portanto, de um tipo de ação sem texto. Ela não possui diálogos textuais, não ergue nem apresenta personagens, nada elabora sobre um conflito. Falando em termos simples: a ação performática não deriva de uma cadeia causal, não é fruto de nenhum acúmulo ou de nenhuma sequência de acontecimentos que envolvam seus atores, seus pretextos, e as tensões, seus contextos. Em termos mais complexos, podemos pensar em uma ação que não carrega uma história ou uma série de significantes. Ela é concentrada no tempo presente, como um evento. Em termos teatrais, um teatro sem texto dificilmente apresenta personagens. O esforço é de transpor este diagnóstico, já observado por alguns críticos da arte – do teatro de dramaturgia, de companhias teatrais, de ensaios, textos e rubricas para a expressão pulverizada de si do artista performático – para o campo da análise da ação revolucionária. Em termos ideológicos, podemos dizer que, na arte e na política, estamos todos pós-modernos, fetichistas da força sem forma, da ação sem estrutura. Ao contrário de atentarmos para a categoria da formação, não só de nações, mas, também, de suas organizações, como seus partidos socialistas e comunistas, adotamos fórmulas, seja para afirmá-las, seja para condená-las, rejeitando a forma, em uma apologia à força, sem compreendermos que um partido vive em formação com o compromisso, ademais, de se extinguir.

Neste sentido, também, que a ação performática é consequência de uma tendência à dicotomia no pensamento de esquerda, onde a dialética perde lugar para falsas polarizações, tais como democracia versus ditadura, espontaneidade versus disciplina, poder versus potência e (por que, não?) Trotsky versus Stalin. Esta última tem sido objeto de muita tensão para aqueles que, como nós, ao criticarmos Trotsky, somos forçados a continuar a devida crítica a Stalin, tarefa esta que já supunhamos bastante superada, mas que se mostra sempre necessária. Sem prejuízo de um esforço imenso de comparação entre os dois, exercício este já performativo (e não performático), a crítica a Trotsky – e não só ao trotskismo – é tarefa fundamental para a superação deste impasse, que, mais uma vez condena a esquerda a escolhas impossíveis: se não és trotskistas, és stalinistas. Uma de nossas hipóteses passa, inclusive, por uma percepção do papel oportuno que pode ter tido uma figura como Trotsky para uma potência como a norte americana, em um contexto em que Stalin oferecia todas as condições favoráveis para a disseminação de um desalento profundo, diante de suas práticas na URSS. Os acordos stalinistas com o imperialismo são parte de um mesmo processo que resultou do extermínio da maioria dos quadros do partido bolchevique, inclusive de Trotsky. Um pensador mecanicista, com perfil administrativista e militarizado, porém, crítico mais legítimo do Stalinismo parece adequado para uma América Latina desolada, sem alternativa, mas desejosa de grandes mudanças. Se Trotsky não nomeia, de algum modo, a restrição à democracia brasileira, este autor, no mínimo, auxiliou na virada desenvolvimentista da esquerda de nosso país. A partir da tão famosa obra História da Revolução Russa, por exemplo, Trotsky, diferente de Lênin, que abordava o imperialismo em termos de nações oprimidas e opressoras, diferente de Marx, que denunciava a relação entre países dominantes e países dominados, adotará os termos “nações avançadas” e “nações atrasadas”. São hipóteses que seguem sendo investigadas, mas que já apontam para os impasses em que se coloca a esquerda latino-americana, em grande medida, frutos de falsas dicotomias1.

A repetição como um fato reconhecido como constituidor do sujeito é uma dimensão que precisa, também, ser compreendida como esclarecedora da existência da ilusão e da fantasia, na própria esquerda. Não à toa, Marx falava de forças propulsoras que nos levam a agir e a compreender o mundo, mas que são desconhecidas por nós. Marx está forjando o conceito de ideologia e, assim, transita pela noção de falsa consciência. A psicanálise, no mesmo momento, começará a contribuir para a compreensão da consciência como uma estrutura enganosa. Poderíamos, nestes termos, tratar da ação performática como resultante de um processo ideológico de que padece a própria esquerda, crédula de ser organicamente revolucionária.

Será, pois, a partir da teoria psicanalítica que compreenderemos que todo sujeito repete por questões de economia, por preferir manter-se em uma dinâmica, a despeito de esta pulsão corresponder ao seu desejo ou não. E a esquerda parece sofrer dessa mesma pulsão. As dicotomias mantém este autômato, no plano da cultura, em seu sentido estrito e, assim, impossibilita certas ligações. Deste modo, a própria repetição sofre de dicotomias e a tese da ação performática tem como seu principal desdobramento a constatação do papel positivo da repetição para o próprio processo revolucionário. A questão é saber o que repetir. Compreender as consequências destas polarizações acima – o mesmo em termos de oposições entre ação legal e ilegal, ação direta e indireta – é apenas um passo, na direção de nosso conceito.

Assim, a ação performática aponta para uma espécie de patologia. E, aqui, vale um destaque terminológico cirúrgico: diferente de uma ação performativa – em que o ato já carrega em si uma eficácia pela adequação de seus atores à ação – a ação performática é caracterizada, também, pela inadequação entre o sujeito da ação e seu ato. Daí o porquê de a ação performática comportar uma esquize: dado que tudo possui uma forma e, portanto, uma estrutura, a ação de um sujeito coletivo que procura simular ações sem estrutura resulta em uma absoluta ineficácia. Daí produz-se um circuito reprodutivo: a ação, que possui estrutura, simula ausência de estrutura e acaba perdendo estrutura. Isto só ocorre, em geral, em sujeitos com estruturas precárias. O que, em resumo, implica em uma dinâmica repetitiva de autossabotagem – uma neurose, na melhor das hipóteses, de histeria. Se enquadrarmos a esquerda na posição de nosso objeto de investigação, podemos compreender como ela pode ser constituída de diferentes sujeitos coletivos – sindicatos, partidos, movimentos – que se acostumaram a atuar apenas por meio de eventos de demonstrações, sem que seus atos se desdobrem para o interior de seus locais de atuação, sem que suas organizações se ampliem, até mesmo sem que a ligação entre partido e organismos de base seja cultivada. Assim, a esquerda se amiúda, em um ensimesmamento que só é possível de ser superado por um esforço inicial textual, de linguagem, para, assim, o que não é só fala vir à tona. Por enquanto, a esquerda trava uma luta por reconhecimento.

As motivações, pois, para a adoção de um tipo de ação desejosa de ocultar sua própria estrutura organizativa nos ajudou a identificar a performance, no termos políticos, como um sintoma que buscava deslocar o trauma – que enoda simbólico, real e imaginário – do stalinismo. Daí a esquize dos partidos que, ao contrário de cultivar a importância da organização, ora acreditam que apenas “os mais conscientes” devem saber do partido (grifo nosso), camuflando-se em diferentes fóruns e movimentos: para a “burocratização” não ficar exposta, “tudo deve parecer de improviso”, como na peça de Pirandello. Como sugere um colega já conhecido, Danilo Ribeiro, a esquerda parece temer se contaminar com a classe trabalhadora, com o que ela é, de verdade – a classe real. Em muitos casos, a cena principal da esquerda não passa nos palcos, as decisões não são tomadas propriamente naqueles espaços e a ação ganha feições de algo que vai se formando, algo que vai se performando, quando, efetivamente, já veio pronta e esvaziada de grandes pretensões. Tudo que saia do roteiro é afastado como se o grande feito promovido resultasse, apenas, em um andar sobre cordas bambas. Simular um risco sem correr risco é um modo de compreedermos como pulsão de vida e pulsão de morte são facetas de um fenômeno que, também, não comporta dicotomização. Estamos falando de uma esquerda com poucos recursos de simbolização, em vias de suspender sua possibilidade de se apresentar pela linguagem. E esta ausência de recursos passa por uma resistência a submeter-se aos seus próprios significantes. Uma esquerda que tem dificuldade, ainda, de simbolizar suas próprias experiências e que, neste sentido, sem fantasmas, não tem sujeito.

Neste sentido, a ação performática assumia, cada vez mais, um caráter simulador. Seu papel seria o de ocultar uma burocratização facilmente associada a uma prática política autoritária, entendida como limitadora da força da singularidade de cada indivíduo. Isto porque, na mesma esteira das dicotomias anti-dialéticas, toda forma de disciplina coletiva passa a ser compreendida como limitadora de uma potência humana. Como uma espécie de incerteza antecipada, grande parte da esquerda brasileira, que deve ser, cada vez mais, compreendida entre nós, como parte de um marxismo ocidental, compreende uma revolução como auto-expressão. O que resulta no entendimento de que a liberdade a ser desenvolvida na luta já deve ser experimentada na prática da própria luta. E aí, voltamos à dimensão tempo-espacial e espaço-temporal de uma revolução. Como se trata de uma transformação radical, seu método deve ser abrupto. Como gestos abruptos – como a extinção imediata do Estado e o advento súbito de um novo homem -são, em geral ineficazes, a revolução estaciona no conceito de utopia. Como desdobramento, por exemplo, a organização partidária é criminalizada hoje, de modo ainda mais preocupante do que nos tempos da ditadura, como disciplinamento manipulatório, que deve ser repelido desde já como implemento, no presente, de algo que só é possível em uma sociedade pós-capitalista. Como bem recupera Domenico Losurdo, em Marxismo Ocidental2, nossa esquerda carrega um forte espírito da utopia, que, ao contrário de envolver os militantes em tarefas práticas e concretas de construção de uma hegemonia popular, no debate sobre as ocupações nos morros, acerca dos regimes fiscais dos estados e do papel da educação e da cultura populares, incorporam uma espécie de fordismo de 4ª geração com estabelecimento de metas e outros gerencialismos sem que medidas mais consequentes sejam tomadas na direção de um cultivo maior dos valores comunistas.

A forma de velar o engessamento, a indisposição pequeno-burguesa, a própria formação americanófila da militância (dos Star Wars e BBBs) e o elitismo de seus quadros passa a ser a simulação da espontaneidade, reduzindo a tática a atos de visibilidade como manifestações e passeatas, tal como se o movimento da esquerda brasileira estivesse sempre em um lugar que não existe, à beira de “passar ao ato”, quando toda passagem não tem beira, como se este “dançar sobre o precipício3” fosse uma suspensão entre passado e futuro, em uma cena expressionista. E, de tanto repetir esta espécie de apelo previsível, o sujeito vai saindo de cena.

Ao contrário de se tratar de uma ação verdadeiramente direta, a ação performática simula, representa ser, é “como se fosse” ação direta; ao contrário de se tratar de uma ação estética, a ação performática é um substitutivo de qualquer vitalidade autêntica capaz de intervir no campo da cultura nacional, naquilo que se cultiva como valor; ao contrário de ser uma tática ou desdobramento de um acúmulo de forças organizado, é um evento que mantem um pequeno círculo de vanguarda – muitos aguerridos – em um mesmo ritual de preparação de atos e petições. Não seria duro dizer que a ação performática é elemento de uma série de equivalências, em uma rede, que mantem a circulação de mandatos presidenciais dentro da governabilidade brasileira.

Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, contribuía para a compreensão do vínculo entre repetição e política. Para o autor, repetição é como “(…) um discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, seu monólogo elogioso”4. A Sociedade do Espetáculo seria como uma “reconstrução material da ilusão religiosa”, como o princípio do fetichismo da mercadoria, em que “(…) o mundo sensível se encontra substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele.” 5

Ação Performática, Ação Estética e Ação Direta:

Esse era, ademais, o esforço de figuras como Guy Debord, autor de Sociedade do Espetáculo, Situacionistas – Teoria e prática da revolução, e outras obras, a quem erroneamente Estevão, Oliveira e Quina atribuíram a autoria do conceito de Ação Performática. Debord atuou como militante na organização francesa com o mesmo nome da obra Os Situacionistas, críticos de uma sociedade do espetáculo, ao contrário do que o texto dos colegas da UJC – União da Juventude Comunista – sugere. Como manifestação propriamente estética, Os Situacionistas faziam uso amplo do lúdico como meio de se contrapor a uma sociedade do consumo, que, tal como a nossa, convertia todo e qualquer desejo em mercadoria de massa. A ação performática, aliás, não deixa de ser resultado da radicalização disto que acaba por imprimir centralidade às ações de visibilidade. É por isso, entre outras coisas, que essa centralidade da visibilidade encontra guarida e difusão tão espontânea em meio aos partidos institucionais, que há muito já sacrificaram qualquer textualidade dramatúrgica revolucionária (e, nesse sentido histórico-filosófico, verdadeira) no altar do marketing e da concorrência eleitoral. Ocorre que os situacionistas, ao mesmo tempo em que criticavam a centralidade da imagem, recorriam a ações de desobediência que buscavam, justamente, intervir nessa imagem.

Um dos recursos estéticos comuns adotados pelos situacionistas era o que se convencionou chamar de détournement, prática comum entre os militantes da década de 60, na Europa:

Pelo dicionário, détournement deve ser traduzido como ‘desvio’, ‘descaminho’, ‘roubo’ ou ‘rapto’. Os situs6 usavam o termo no sentido concebido por Lautréamont: um método que consiste em tomar as coisas dos inimigos para montar uma outra coisa, que ajude a combater o inimigo. Uma das ações de détournement mais queridas dos situs era tomar as histórias em quadrinhos americanas e substituir os balões por textos revolucionários.7

Ainda nas palavras de Debord,

Os dois princípios básicos da subversão são a perda de importância de cada elemento originalmente independente (o que significa a perda completa de seu sentido original) e a organização de um novo significado que confere um sentido vivo a cada elemento.8

Outro exemplo de organização que fazia bastante uso do lúdico era a chamada Billboard Liberation Front ou da Barbie Liberation Organization, que trocavam chips de voz entre bonecos Comandos em Ação e bonecas Barbie e levavam os brinquedos de volta à loja. As meninas compravam Barbies que diziam frases como “a vingança é minha!” e meninos ganhavam soldados de plástico que gritavam “vamos planejar nosso lindo casamento!” A intenção dos Billboard era questionar a identidade de gênero estereotipada que os brinquedos propunham, através da manipulação das expectativas, dos signos, associados aos produtos.

Todas essas ações têm como perspectiva aquilo que Umberto Eco denominou de “guerrilha semiológica”, guerra através de imagens, da deturpação de signos e significados, uma ação para impelir o público a controlar a mensagem e suas múltiplas possibilidades de interpretação. Segundo Eco, existe um sistema de possibilidades prefixadas que determinam os elementos das mensagens, são os códigos formatadores das experiências. A guerrilha consistiria em confrontar códigos de partida com códigos de chegada. Sem dúvida alguma, trata-se de ações assessórias a ações principais, quando se pretende, efetivamente, fazer ruir todo um modo de produção social. Mas correspondem a assessórios que, muitas vezes, cumprem papel de impulsionar ações mais consequentes.

O que o lúdico e a estética permitem, pois, é uma espécie de licença para a transgressão. Algo que possibilita algumas rupturas, mas que preserva, porém, uma espécie de entendimento tácito de que aquilo consiste de teatro [ou: “…entendimento tácito de que naquilo trata-se de teatro”] . Portanto, podemos dizer que o lúdico produz uma ruptura semiológica. O que é distinto de uma ruptura política. Esta última requer elementos presentes no lúdico, partindo-se do princípio de que, quando brincamos, brincamos de verdade: a veracidade, a perspicácia e a ousadia. Esta é a razão pela qual não é possível a disjunção entre espontaneidade e disciplina. A primeira sempre carrega algo de verdadeiro e imprime vitalidade ao que carrega sério risco de engessar. A segunda mantém o risco distante, buscando ligação com a vida real, com o que existe de espontâneo no mundo, para que nela imprima direção. Mas a ruptura política requer, sempre, ações articuladas, em diferentes tempos e espaços, para além da estética e para aquém dela. Afinal, a política é a guerra por outros meios. Ela requer, ademais, diferentes níveis de legalidade e, portanto, diferentes táticas de enfretamento desta realidade, dentro e fora de seus limites: ações institucionais, ações de demonstrações, em que o que se exige é um saber sobre como obedecer para subverter; ações de indignação, ações diretas, em que a desobediência propõe novas regras. Ações invisíveis, cotidianas, bem mais arriscadas, no nível do risco diário enfrentado pelos que vivem nas favelas. É por isso, que, se a ação lhe parecer descolada de suas reais capacidades, não tenham dúvida de que estão diante de uma ação performática. E não há revolucionário fora do real. Ação performática é como fogo que não faísca. Está aí um elemento que ultrapassa o mero diagnóstico – de problemáticas consequências – de um possível império das imagens. Algumas pistas podem ser encontradas no próprio Debord, em seu Império do Efêmero.

Um exemplo de ação performática relativamente recente pode nos explicitar sua relação com a própria estética. Há cerca de dois meses, tivemos o resultado de uma ação tipicamente performática. Ela, ademais, em termos estéticos, enquadra-se em um ato nada criativo: a ação judicial – vejam, a arte! – que propunha a cassação da chapa Bolsonaro e Mourão. Sua eficácia nos parece nula. Nada lhe antecedeu, em termos de acúmulo de forças para este gesto ofensivo e seu resultado foi a decisão por seu arquivamento, às vésperas das eleições presidenciais de 2022. Neste sentido é que podemos compreender a ação performática como uma caracterização quanto a sua eficácia. Algo que implica na mensuração, também, de sua autenticidade. Sua ineficácia, além disto, não envolve apenas a ausência de êxito, mas, também, a produção de efeito contrário, que acabe por favorecer o adversário.

Memorizado por Vladimir Safatle, em seu texto Uma revolução molecular assola o país, um ato passível de ser enquadrado como ação performática pode ser melhor compreendido, se atentarmos para o que lhe antecedia e o que lhe sucedeu. Safatle já nos fornece pistas, mas aqui vale recuperar este mesmo esforço. Estamos falando da queda de Ben Ali, na Tunísia, em 2011, a partir do ato de imolação em Sidi Bouzid. Em A força da desobediência: resenha sobre a queda do regime de Ben Ali, Larbi Chouikha e Eric Gobe afirmam: “O elemento que desencadeou as mobilizações que resultaram na deposição do regime de Ben Ali é bastante claro. Foi a auto-imolação com fogo de Mohamed Bouazizi, vendedor de frutas e legumes às escondidas, em Sidi Bouzid, aglomeração de 40 mil habitantes situada no centro da Tunísia, região ocupada mais pobre da Tunísia.”9

Os autores, ademais, associam o desencadeamento da revolta a termos-chaves como humilhação e indignação. Termos que poderiam compor uma gramática moral nos marcos da luta por reconhecimento, mas que, justamente, convoca-nos à junção entre identidade e materialidade histórica, quando o que humilha o homem é o confisco de suas ferramentas e recursos de trabalho. Nas palavras de Chouikha e Gobe, “não apenas a polícia confiscou seus instrumentos de trabalho (sua carroça e suas mercadorias), mas, além disso, um trabalhador municipal o esbofeteou, devolvendo-o à sua condição indigna.” 10

Em resposta ao que ocorreu com Mohamed, “os comerciantes e as dezenas de jovens indignos se reuniram em frente da sede do governador de Sidi Bouzid para organizar um sit in em protesto. Os encontros de jovens se multiplicaram, mesmo com os confrontos com as forças da ordem, que tentam dispersá-las, em vão, intensificando, realizando as primeiras prisões. O suicídio de outro jovem, diplomado desempregado, eletrocutado em 22 de Dezembro, relançou a revolta social que se estendeu às pequenas cidades vizinhas de Sidi Bouzid, Meknassy e Menzel Bouzaine, aglomerações nas quais os manifestantes incendiaram a sede da delegação e sitiaram o posto da guarda nacional (o equivalente da polícia).”11

O contexto da Tunísia era de crise de legitimidade de seu governante. Significava uma mudança ou uma quebra no “contrato social”, uma “perturbação do pacto”, descrito por Larbi Chouikha e Eric Gobe como “força da obediência” ou “acomodação negociada”. Esta obediência, ademais, pode ser associada à baixa possibilidade de representação – em seus termos liberais-democráticos – do povo tunisiano.

(…) após a metade dos anos 2000, a questão da sucessão do presidente Ben Ali doente e as ambições da família Tabelsi que aspirava se manter no poder levantavam a questão da durabilidade do regime. A perspectiva de ver o círculo mafioso do presidente Ben Ali ascender diretamente ao topo do Estado parecia insuportável às diferentes categorias sociais da população tunisiana, incluindo uma parte da oligarquia no poder […] Por outro lado, o enfraquecimento da capacidade redistributiva do Estado tunisiano conseqüente à crise financeira internacional de 2008 e a degradação da situação social, principalmente daqueles diplomados originários do interior fortemente atingidos pelo desemprego.12

Terríveis tempos em que tirar a vida se mostra mais vital do que ações políticas. Mas Mohamed agia politicamente, mesmo sem compreender claramente as forças que o propulsionavam. Seu gesto ligou-se à crise de legitimidade do governo, a rupturas internas na estrutura oligárquica de poder, à baixa lealdade das forças militares desmoralizadas, a redes virtuais de comunicação e ao trabalho local persistente de militantes sindicais e populares. Os personagens eram militantes sindicais de uniões regionais e locais da UGTT, União Geral Tunisiana do Trabalho, ligados a categorias como da seguridade social, da saúde, dos correios, do ensino secundário; jovens desempregados; classe média intelectual, advogados e professores; partidos de oposição legal críticos, tais como o Partido Democrata Progressista, o Tajdid, e o Fórum Democrático pelo Trabalho e Liberdade; Os meios iam desde reuniões locais, atos de protesto até o desenvolvimento de tecnologias de informação que contavam com rede das redes, via Al Jazeera e a internet, difusão de imagens violentas, exposição da imolação por fogo, de mortos atingidos por tiros da policia, até instrumentos tradicionais como a greve geral, vista por Chouika e Gobe como “ponto de virada” da UGTT, que passa a aderir aos protestos.

O que se desenvolveu em tal processo de insurreição na Tunísia foram comitês de auto-defesa civil. Instrumentos que parecem não ter superado um hiato que marcou o governo transitório de 2011, mas que resultou na coalizão heterogênea de 28 partidos políticos, associações e organizações profissionais: a UGTT, o Conselho de ordem dos advogados, os islamitas de Ennahda, diversos grupos de extrema esquerda e de associações de defesa dos direitos humanos e de luta contra a tortura. Mais do que romantizar estas unidades, nosso esforço, aqui, é o de clarear o conceito de ação performática, mobilizando exemplos como estes que apontam para o risco precipitado do termo. Caracterizar qualquer ação como performática requer cautela, seja para seu balanço consequente, seja para sua evitação responsável. O ato de Mohamed Bouazizi não foi uma ação performática. E mensura-se por seu tempo e seu espaço. Bouazizi agiu como esgotamento. Uma esgotadura. Sem prejuízo da perfomatividade dos termos, o ato de Mohamed não se isolou, ao contrário, é derivação e, dele, deriva.

Deste modo e por fim, ao constatarmos os limites da ação performática, estamos situando-a em um tipo de ação cuja temporalidade envolve ausência de acúmulo e de desdobramento. Cena sem passado e futuro. É por isto que nossa crítica não implica na crítica à ação direta ou ao que Brecht chamou de gesto, ações que sintetizam grandes feitos históricos, o que chamamos de sínteses sublinhadas. O campo do gesto nos remete ao conjunto de atitudes, se próximo da noção brechtiana de totalidade, produz imagens que enfatizam o complexo das relações entre os sujeitos. Esta imagem é a dramaturgia sublinhada, tal como se fez na Comuna de Paris, no dia 6 de abril, quando o 137º Batalhão da Guarda Nacional trouxe para as ruas a guilhotina e a queimou, em meio ao entusiasmo popular, ou como no dia 12, em que a Coluna Triunfal da praça Vendôme, fundida com o bronze de canhões conquistados por Napoleão depois da guerra de 1809, foi demolida, como símbolo do chauvinismo e da incitação ao ódio entre as nações.

Os gestos são como essas sínteses. Mas eles não apenas encerram atos ou registram catarses finais. Eles abrem novas histórias. No Brasil, são gestos os pneus queimados, em protesto, quando o morro invade o asfalto, as greves dos entregadores de aplicativos, as ocupações nas escolas, em São Paulo, a greve dos garis, no carnaval carioca. Assim, a história vai se apresentando com acúmulos, que faíscam em brasa, e acúmulos que espalham fogo. A estas formas e forças, restam-nos dar direção. Sem fim.


1 Temos nos dedicado a este esforço, sendo-nos levados, ademais, a constatar o quanto a década de 1970/80, em especial, foi marcada pelo estabelecimento desses dois polos antagônicos – ao estilo maniqueísta: Stalin versus Trotsky. Para um melhor conhecimento desses nossos estudos, ver GURGEL, Clarisse e IRIAS, Frederico. Fórmula e Formação: deficiências da dialética para uma Revolução Brasileira. In Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe. Org. Roberto Bueno. São Paulo: Max Limonad, 2022;

2 LOSURDO, Domenico. Marxismo Ocidental. São Paulo: Boitempo,2018 ;

3 Referência direta à dissertação de mestrado em que o termo Ação Performática foi forjado: Dançando no Precipício: A Performance como Estratégia Política de Visibilidade. Orientação: José Eisenberg. Rio de Janeiro: IUPERJ/CNPQ, 2007 – Acervo da Biblioteca CCS/D-IESP – UERJ;
4 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p.20;

5 Ibidem., p.28;

6 A própria prática de abreviar o nome da organização, Situacionistas, possui diálogo com a tática da celeridade no ato de fala como meio de performatividade, em que a redução do número de significantes auxilia no reforço do signo. Assim, o termo Situs parece representar algo mais orgânico, tal como um sussuro, um suspiro.

7 Idem., nota de rodapé 2, p.16;

8 Ibidem., p.16;

9 CHOUIKHA, Larbi; GOBE, Éric. La Force de la Désobéissance. Retour sur la chute du régime de Ben Ali. In: Revue Tiers Monde, 2011, p.2;

10 Idem., p.2;

11 Ibidem., p.2;

12Ibidem., p.1;

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

Deixe um comentário