Por Arthur Moura e Felipe Xavier
“A mais velha especialização social, a especialização do poder, encontra-se na raiz do espetáculo. Assim, o espetáculo é uma atividade especializada que responde por todas as outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica diante de si mesma, na qual toda outra fala é banida.” Guy Debord – A Sociedade do Espetáculo
Introdução
Este ensaio tem por objetivo levantar questões a respeito do mercado cinematográfico e a formação de redes de apoio mútuo para a produção cinematográfica, assim como pensar a arte de uma forma geral e sua relação degenerativa com o mercado. O mercado e as redes de apoio mútuo são entendidos por nós como formas distintas de produção artística, e entendendo que a arte é o mirante do artista ou seu ponto de vista de classe quando a produz, essa distinção também é transferida ao campo do sujeito, ou seja, enquanto o mercado busca proletarizar os recursos humanos, as redes de apoio mútuo são uma possibilidade de libertação contra a mercantilização da arte e do artista.
É preciso pensar criticamente a produção do cinema em tempos de crise financeira, moral e política onde o caos generalizado, violência e repressão, coloca-nos a toda prova de dificuldades, fazendo com que muitos trabalhadores do cinema tomem para si a solução imediatista e inócua de superação da precariedade através dos modelos de mercado, tornando-se empreendedor de si e mercantilizando tudo quanto for possível resultando em expressões esvaziadas de conteúdo crítico. Por mais que o mercado e a indústria divulguem ganhos suntuosos, sabemos, pois, que ele é concentrado nas mãos de poucos. Essa é a velha saída individualista ou corporativa. Ela se encontra na prateleira de todas as áreas e esta a disposição, mesmo que no campo da imaginação ou alucinação, a todo tecido social.
Debater sobre mercado e formação de redes é de fundamental interesse para nós, enquanto produtores de cinema, pois buscamos meios independentes e coletivos para viabilizar nossa produção. Também percebemos em nossa prática cotidiana que esse debate atende a uma demanda mais abrangente de trabalhadores envolvidos com cinema, que assim como nós, buscam formas alternativas e eficientes de produção de seus filmes.
Acreditamos que momentos de crise produzem saídas, mas que nem por isso muitas vezes são viáveis ou produzem resultados satisfatórios para um número maior de produtores. É preciso pensar mais sobre isso. Para tanto, debruçaremos nossas discussões sobre temas como: cinema, formação de redes; mercado; sistema capitalista; maquina estatal e estabeleceremos distinções entre o cinema industrial e o cinema enquanto ferramenta de transformação social com vistas a encontrar saídas possíveis que nos permitam trabalhar e superar relações de trabalho alienado e passarmos a proprietários dos meios de produção e distribuição, pois, entendemos que só assim é possível haver leituras ou releituras da realidade através do cinema comprometidas com as históricas lutas da esquerda no Brasil e na America Latina assim como a colonização de nossos povos e culturas. Pensar a formação de redes é também nos colocar na condição de construtores de formas de rede que são construídas a partir de pautas comuns. Por mais que existam diferentes segmentos da esquerda tem que haver pautas comuns. Essas pautas são de interesse político. A rede é uma questão de sobrevivência.
1.1 – O cinema como ferramenta de transformação social
Existe um pensamento aristocrático até mesmo na esquerda que diz que o cinema se resume a obras ficcionais, excluindo aí uma gama imensa de documentários e outras obras experimentais que a partir dessa leitura não gozariam do status de cinema. Geralmente os setores que partem desse lugar não são produtores, mas teóricos ou críticos, o que limita a sua visão e leitura sobre os processos de pré-produção, produção e distribuição. De forma geral, acreditamos ser cinema, tudo aquilo que parte de uma estrutura em audiovisual que não se esgota em formatos de programas televisivos ou publicitários, que arrisca novas linguagens não comumente usuais a partir de uma narrativa totalizante. O cinema possui inúmeras formas de linguagens, narrativas, conceitos e metodologias de produção. Para se produzir um filme é necessário pesquisar sobre o assunto, pensar todo o processo de produção desde técnica, roteiro, montagem, finalização, distribuição e, claro, todo o pessoal envolvido como técnicos e especialistas. Porem, um filme pode ser feito sem ter a princípio alguns elementos como, por exemplo, o roteiro. Um documentário pode ser feito no calor das movimentações políticas e só depois ser estudado em como construir uma narrativa a partir do material bruto. Um filme para ser considerado como tal não precisa necessariamente passar pelo crivo da distribuição, mas um filme sem roteiro e distribuição não completou todo o seu caminho.
Sim, são múltiplas as formas de se fazer um filme, mas nem todo filme atua como ferramenta de transformação social; muitos inclusive, visam a alienação do espectador através do espetáculo, tal como coloca exaustivamente Guy Debord em seu clássico livro “A Sociedade do Espetáculo”. Contudo, o cinema como ferramenta de transformação social que tratamos aqui é sensível a metodologias de produção e temas que incitem questionamentos sobre o sistema capitalista e sua construção ética de individuo. Acreditamos que fazer cinema parte de funções técnicas e artísticas. Nesse sentido o cineasta atua na sociedade como construtor e dinamizador de idéias, que estimula em maior ou menor grau a transformações das estruturas de poder ou a manutenção de tais estruturas. Sendo assim, o cinema é um campo de disputas, e o que esta em jogo nessa disputa são os temas que iremos abordar e a lógica de produção dos nossos filmes.
Em vez de reproduzir a divisão do trabalho na produção dos filmes, utilizamos metodologias horizontais de produção, substituindo o clichê das narrativas e roteiros por temas originais e formas originais de contar nossas histórias. Pensamos que uma ruptura com o cinema industrial só é possível absorvendo três pautas principais:
- 1ª utilizando roteiros que possam estimular, de forma geral ou especifica, visões críticas da sociedade que habitamos e trabalhar formas de produção eficientes fora do mercado;
- 2ª metodologias de trabalho horizontalizadas, pois, só com a valorização e estimulo do sujeito enquanto agente criador de idéias é possível criar obras que sejam capazes de propor rupturas efetivas contra o sistema capitalista;
- 3ª a criação de redes de apoio mutuo é o amparo para as demais pautas; ela possibilita a viabilidade do projeto. Essa rede absorve a polivalência de funções que envolvem a realização de um filme e toma partido dele de forma cooperativa, ao passo que por uma condição de logística de trabalho seus membros se diluam em diversas funções especificas; é de fundamental importância que todos os envolvidos no ato de criação tenham direito a fala de modo a enriquecer a obra como um todo e o trabalho de cada um.
O cinema como ferramenta de transformação social, portanto, pode ser expresso através de uma linguagem simples documental ou algo mais complexo em narrativa ficcional. Há todo um processo de produção material e conceitual que determina o que é cinema, porem, o cinema é uma arte coletiva e com diversos campos de atuação, mas que não necessariamente precisa funcionar a partir da lógica da divisão social do trabalho capitalista. Há formas colaborativas e horizontais possíveis e que não perde em seu potencial, pelo contrário, agrega ainda mais possibilidade de desenvolvimento dos seus campos.
1.2 – Sistema capitalista e maquina estatal na produção do cinema
O homem moderno carrega uma contradição em si, quem sabe a principal. É dele que advém importantes avanços de todas as ordens. O cinema, por exemplo, representa um importante avanço no campo das artes, mas que só foi possível graças ao desenvolvimento tecnológico. Sabe-se que o homem moderno goza deste status, conferido pela economia de mercado liberal, da concorrência e grandes monopólios. De todas as formas regozija também a defesa da democracia, da igualdade perante a lei e defesa do interesse geral, da ordem e liberdades individuais. Nisso se materializa o Estado burguês que está acima, ainda que diga representar a todos e defende-se da reação contrária com o uso da força. A distância daquilo que deveria ser e é na realidade sugere o paradoxo em questão. A economia é o universo que ordena toda a vida social a partir dos interesses da classe que defende a modernidade somente a partir das suas conquistas, mas que estão longe de ser para todos.
A produção cinematográfica depende de razoáveis recursos para existir. É por isso uma arte de muitos custos e difícil acesso por conta dos equipamentos necessários. É claro que a produção é adaptável a uma determinada realidade material, mas isso tem seus limites. Filmar algo e montar exige um custo, por exemplo da mão-de-obra e dos equipamentos utilizados. Se a produção envolve mais de uma pessoa há também os custos do pessoal envolvido, pagamento, alimentação e transporte.
Por mais que haja importantes recursos advindos do Estado para o financiamento e distribuição de obras cinematográficas, sabemos que as políticas que regem este campo são ordenadas por cartas marcadas. Marcam-se as cartas de acordo com sua capacidade ou não de concorrer em meio a um universo de produtores de calibre muito maior e mais preparo e que, portanto, comumente acessam tais recursos e dessa forma se estabelecem no mercado. A chance de um produtor pequeno conseguir até mesmo verbas menores é reduzida se este não estiver inteiramente disposto e organizado para isso. Os gastos para ter uma produtora legalizada e regularizada são enormes e de fato poucos têm este privilégio.
Por mais que haja um sem número de produtores espalhados pelo país a grande maioria permanece sem qualquer apoio por parte do Estado ou capital privado. No entanto, é no universo dos produtores independentes que o capital lança seu olhar em busca de novidades, ávido por cooptá-los na busca por suprir sua miséria criativa.
A autogestão ao passo que é propositiva em formar e consolidar novas bases de organização horizontal, equânime, contribui para tornar mais explícito o que de fato representa esse antagonismo que tanto tratamos e falamos em teorias. Isso se dá porque a autogestão é incompatível com o mercado, com a burocracia e a verticalidade desses sistemas. Onde há mercado não há autogestão.
Os produtores no capitalismo, ou seja, os trabalhadores, estão presos a um modelo em que o trabalho é apenas uma forma de garantir a manutenção da sua mão-de-obra que depende de condições mínimas de existência. O salário é a recompensa por esse esforço que não chega a resultar em ganhos ao próprio trabalhador, mas a um agente externo à produção que na verdade possui o monopólio dos meios de produção.
1.3 – Indivíduo vs coletividade
O indivíduo egoísta vê os demais como concorrentes. Por isso, os ganhos (que existem graças a exploração sistemática de segmentos subalternizados) concentram-se nas mãos de uma pequena parcela da sociedade. E nessa concorrência, quase sempre desleal, constrói-se a ideia da meritocracia, que é o termômetro entre o sucesso e o fracasso. Quando a arte e a produção de uma forma geral adere a esse modus operandi, tem-se então a cooptação e neutralização das expressões artístiscas. Percebemos que a sobrevalorização do indivíduo e suas liberdades individuais vem sobrepondo-se ao pensamento coletivo colocando este como algo que ameaça o pensamento liberal e até mesmo a democracia. Esse pensamento conservador vem disseminando-se e produzindo lastro no mundo inteiro principalmente a partir da grave crise de 2008. No Brasil, a velocidade com que esses movimentos avançam assusta. Os ultra-liberais, também chamados “neocons”, constroem a ideia de que todos são iguais, desde que trabalhem e sigam produzindo e consumindo mercadorias. No entanto, como observa Michel Lowy, a raiz desses fenômenos é sistêmica. Diz Lowy:
“O sistema capitalista, sobretudo nos períodos de crise, produz e reproduz fenômenos como o fascismo, o racismo, os golpes de Estado e as ditaduras militares. (…) A alternativa tem de ser radical, isto é, antissistêmica. Em vários países da América Latina está colocada a discussão sobre uma alternativa anti-imperialista e anticapitalista: o socialismo do século XXI. Isto é, um socialismo que supera os limites dos movimentos socialistas do século passado – o compromisso social-democrata com o sistema e a degeneração burocrática do chamado “socialismo real” -, mas recupera as bandeiras revolucionárias latino-americanas, de Simón Bolívar a Ernesto Che Guevara, de Jose Martí a Farabundo Martí, de Emiliano Zapata a Augusto César Sandino, de Zumbi dos Palmares a Chico Mendes.”
Esse individualismo mórbido reforça ainda mais uma visão aristocrática de mundo, onde são vencedores apenas aqueles que merecem, naturalizando a desigualdade tornando-a necessária. É, portanto, através do privilégio dos eleitos, que tem o mesmo caráter da revelação religiosa, que se diz quem pode e quem não pode fazer arte. Essa visão ultra-conservadora é irracional e explica o mundo e as relações sociais através de mitos que estão num tempo supra-histórico, transcendente. Sobre isso, André Guimarães diz o seguinte:
“Na visão de mundo tradicional a que corresponde o “supra mundo” da região do ser, o tempo empírico seria ordenado de cima e de forma hierárquica. Assim a visão da “imóvel profundidade” na “corrente do devir” corresponde a uma temporalidade qualitativa, dividida em ritmos. Deste modo, a história já não é mais linear e a irreversibilidade do tempo é substituída pelo mito dos ciclos que ao se repetir, “sucedem-se” como “uma série de eternidades.”
E continua:
“A história concreta com sua heterogeneidade e contradições é substituída pelo que acontece em um outro mundo, metafísico de caráter estático. (…) Nessa dimensão da história atuariam forças inteligentes que seriam os verdadeiros agentes da história. Essas forças seriam as forças do cosmos, da forma, ordem, lei, hierarquia espiritual, tradição – as forças da região superior, do supra mundo do ser – e as forças do caos que desintegram, subvertem, degradam e promovem a predominância do inferior sobre o superior, da matéria sobre o espírito, de quantidade sobre a qualidade – as forças da região do inferior, do mundo do devir.”
A verdade é que há poucas chances de vencer nesse jogo desleal. A alternativa possível, junto a todo o resgate a ser feito pelos lutadores e lutadoras em América Latina é, em primeiro lugar, compreender corretamente o longo histórico das lutas empreendidas entre patrões e trabalhadores, compreendendo os fundamentos da mercadoria como elemento principal e que compõe aquilo que Mezáros chama de sociometabolismo do capital. Dessa forma conseguimos delimitar melhor o que é e o que não é redes de apoio mútuo.
1.4 – Denúncia e ação
O cinema e o audiovisual, como colocamos, tem profunda relação com as questões sociais. Nas ações empreendidas em 2013 houve uma rica profusão de pontos de vista sobre as manifestações o que dificilmente ocultava a repressão policial sistemática nos eventos até mesmo porque este não era o objetivo dos mídia-ativistas e cineastas que registraram as Jornadas de Junho. Por mais que estes produtores muitas vezes não estivessem organizados (o que obviamente os debilitou na luta), a mão de ferro do Estado não deixou de incidir sobre eles. A neutralização foi possível graças ao suporte de grandes corporações como a rede globo, apesar de algumas vezes repórteres de grandes redes de comunicação também serem alvos da repressão policial. Mas logo ao perceber os riscos de se estar frente a frente com uma enorme massa de pessoas que rejeitavam a mídia burguesa de um lado e a repressão de outro, fez com que as grandes corporações midiáticas filmassem tudo do alto dos helicópteros ou arranha céus protegidos da incontornável violência das ruas. Por outro lado, a exposição dos independentes garantiu não só acompanhar as manifestações em tempo real a partir de outros olhares, mas em desnudar as mais vis intenções do capital e seus defensores como foi o caso de policiais (infiltrados ou não) plantando provas contra manifestantes ou tirando a farda atrás de uma blazer preta e logo em seguida correndo atrás da pessoa que estava filmando que por sorte conseguiu entrar na embaixada dos Estados Unidos. Uma coisa é saber que a polícia é um antro de criminosos. Outra coisa é assistir isso e não ter dúvidas sobre o seu caráter. Isso tudo no final das contas provocou o aumento da repressão policial, o que também não deixa de ser uma novidade para nós.
Essa é a função da denúncia: publicizar a vergonha alheia, expor e responsabilizar aqueles que causam e garantem a barbárie. Incrivelmente até mesmo alguns setores da esquerda reformista/progressista conseguem produzir certos diagnósticos até muitas vezes condizente com o que, por exemplo, é a direita ultra-reacionária, seu projeto de poder e até suas mais vis intenções. Principalmente quando essa esquerda corre perigos devido a reação golpista dos direitistas, solta-se o verbo e os podres dos empresários e poderosos vem a público. A crítica proferida por estes setores visa em última instância recuperar o poder ou simplesmente incluir-se na máquina burocrática estatal através da farsa eleitoral obedecendo sem hesitar ao ordenamento jurídico burguês. Tudo é feito dentro da legalidade. O reformismo, portanto, é mais um parasitismo a ser enfrentado pelos trabalhadores.
Em suma, a crítica, de um modo geral, existe e se expressa das redes sociais, sites, blogs e entre youtubers que muitas vezes (no amplo setor da esquerda) produzem boas análises. Canais como Gazeta Revolucionária, Causa Operária TV, Tese Onze, Gláucio Gonzales, Justificando, Boitempo, Clayson, Saia da Matrix, Jornal A Nova Democracia, Outras Palavras, enfim, muitos e muitos outros nos oferecem análises muitas vezes certeiras, como é o caso da crítica empreendida por alguns desses ao Brasil Paralelo e ao MBL. Travaram uma verdadeira batalha contra os neocons, desmistificando argumentos rasos e patéticos dos ultra-liberais e recentemente elegeram o canal Terça Livre como o mais reacionário de todos. Este canal ultra-reacionário é o suprassumo do fascismo em sua forma de comunicação. Mas a concorrência neste caso é grande. Com isso, minimamente equilibrou-se o debate virtual, trazendo referenciais progressistas, anarquistas e marxistas de uma forma geral. Mas na verdade a questão do equilíbrio está muito aquém do desejado, pois é notório o alcance e popularidade de canais de direita. Alguns fatores ajudam a promover estes canais, a começar por suas análises rasas e simplórias e, claro, o alto financiamento de alguns que têm milhões de inscritos e visualizações.
No entanto, ainda que cumprindo importante papel, que é a oxigenação do debate, as ações na prática continuam sob a égide da barbárie. Mesmo com o golpe não houve construção de uma greve geral contra o estado de coisas. Algumas paralisações como a que ocorreu em abril de 2017 não produziu lastros por conta dos acordos envolvendo os sindicatos pelegos. Isso nos coloca o x da questão, que é a organização, que nesse amplo campo da esquerda quase nos parece algo impossível de se concretizar. Como unir em um objetivo comum setores que lutam entre si? Na prática, existe a real necessidade da superação da forma-partido e dos poderes já consolidados historicamente em suas estruturas de poder. Ou, como pensar o sindicalismo, que, por exemplo, no belo filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas nos mostra ser um tipo de estrutura que na prática luta contra a autonomia operária? A unidade, portanto, só surgirá caso haja um comprometido movimento de autocrítica dos diversos setores que compõem a esquerda. Se não houver grandes organizações entre os trabalhadores é impossível vencer a burguesia e superar o capitalismo.
A questão da crítica e autocrítica foi por nós abordada no filme Araguaia, Presente! ainda que no campo partidário buscando assim destrinchar todo um conjunto de contradições que impediram o sucesso da campanha revolucionária empreendida na década de 70 ao sul do Pará, hoje Estado do Tocantins. A ausência de autocrítica (típico em diversos setores da esquerda) aprofundou ainda mais a crise escondendo de certa forma teses que naquela altura já apontavam para um triste desfecho. O Massacre da Lapa aniquilou parte da direção do PC do B o que enterrou de vez a possibilidade de mudança da linha política do partido fazendo com que este hoje convirja com o reformismo descarado que partidos como PCB, PT e muitos outros se inserem sem qualquer problema ético. Neste caso, o cinema reiterou um problema da ordem histórica e política de interesse do operariado.
Bom, tudo isso nos deixa várias questões em aberto, que começa pela crítica como forma a encontrar a unidade para o enfrentamento real contra o mercado e o Estado. Se a esquerda não superar o denuncismo, que de uma forma geral é muito presente nas redes virtuais, todo esse movimento acaba servindo como plataforma das pautas defendidas pelos diversos coletivos e organizações não ultrapassando as suas pequenas esferas de resistência. Pode também denunciar sua incapacidade momentânea de superar um problema histórico dos trabalhadores.
1.5 – Construindo redes
Todo o sujo trabalho de convencimento midiático reacionário não pode fazer curvar o artista revolucionário. Parece até ridículo falar em revolução social num tempo obscuro dominado pelos negócios onde o que mais importa são os ganhos financeiros. As redes de apoio mútuo servem como dutos que nos fazem enxergar novamente a história perdida, apagada pelo capital. Parece até um romantismo tosco achar que venceremos as estruturas de poder do capital produzindo cinema combativo. É claro que olhar para trás não quer dizer repetir os mesmos erros do passado. Sabemos que este é um desafio homérico e só fará sentido (o sentido revolucionário que desejamos) com organização, disciplina e um projeto sólido que explicite sem pestanejar seu antagonismo com relação às estruturas de poder que por hora dominam grande parte das produções.
Não é nada ridículo trabalhar em prol de mudanças efetivamente profundas e sabemos que por isso, muitos companheiros tombarão até que se estabeleça um novo caminho para a liberdade. A morte também faz parte da luta. O que percebemos hoje, após longos períodos de observação e estudos, é que a classe artística, músicos, cineastas, atores, produtores, etc., compartilham de um grande vazio existencial e aderem a discursos inócuos que tem como único objetivo estabelecer seu nome ou seu pequeno segmento nas redes de mercado, como se assim estivessem a salvos da ameaça da invisibilidade. E isso, miseravelmente, é visto por eles como uma vitória: tornar-se patrão, como se isso de fato fosse possível para a maioria. A título de exemplo, observem o rap nos dias de hoje. Não há nada mais banal. O rap igualou-se a todo o lixo cultural produzido para fazer girar a roda do mercado. Os rappers desejam sucesso e fama e a perspectiva revolucionária passa longe dos seus anseios. Tudo é feito para consumir de forma efêmera.
Pois bem, como fazer este resgate contribuindo para uma formação sólida num mundo tomado pela pós-modernidade? Este é um trabalho sem fim que começará a partir de pequenos núcleos que não deixarão intimidar-se diante da escassez e do atraso. A formação política do cineasta e dos livre-produtores é elemento sem o qual é impossível qualquer movimento emancipatório, cabendo, em última instância, apenas e tão somente a repetição do mesmo forjando clones de mercado como se fossem imitações baratas que num primeiro momento pode até convencer pequenos grupos, mas nunca alcançará vôos mais longos. Percebam que a técnica cinematográfica é imprescindível, mas que de nada vale sem o conhecimento revolucionário. O trabalho na construção de redes de apoio mútuo consiste em alguns pontos fundamentais:
- Formação
- Organização
- Horizontalidade
- Produção desalienada
- Distribuição
- Geração de renda
Muitos pensam que longe do mercado não há chance de sobrevivência. Este pensamento fatalista é apenas um dos sintomas da profunda ignorância de boa parte dos produtores, atestando sua incapacidade de produzir alternativas viáveis. A construção de alternativas, no entanto, só é possível a partir da unidade. E como unificar um universo de produtores que pensam de forma tão distinta? Obviamente que não são todos os produtores que se envolverão numa proposta distinta do mercado, que também não unifica, mas individualiza entre “livre competidores”.
Em cada Estado ou cidade existe grande quantidade de produtores prestes a cair no abismo da invisibilidade e da morte criativa. Alguns conseguem suportar a escassez por mais tempo, mas a maioria pouco a pouco vai deixando de lado aquilo que antes sonhava fazer. Quantas e quantas bandas acabaram no meio do caminho? Quantos cineastas já não fazem mais filmes? Quantos atores não atuam mais? Quantos músicos não ficaram loucos ou se perderam na drogadição? Num mundo onde a arte serve apenas para afirmar o clichê os que ficam pelo caminho são vistos como fracassados, incapazes, fracos, loucos e por isso naturaliza-se a exclusão tornando-a, inclusive, necessária.
A sociedade capitalista e o capitalismo em si devem ser muito bem compreendidos, suas contradições, etc., para que assim possamos compreender corretamente o que significa o fracasso na sociedade cindida entre classes antagônicas. A visão comum e medíocre sobre isso responsabiliza o indivíduo por todos os seus atos e, portanto, sobre as consequências de tais atos, assim como o seu sucesso ou fracasso depende inteiramente dos seus próprios esforços. Essa visão liberal é conveniente apenas para quem de fato não quer compreender tal fenômeno de maneira a historicizar a análise para ampliar o campo de visão de como funciona as mecânicas do poder, que inclui e exclui de acordo com necessidades de mercado. Essa forma de ver as coisas, ou seja, a partir do indivíduo apenas, é necessária para ofuscar os causadores do fracasso (que obviamente não se resume ao indivíduo), que se torna destino de boa parte dos trabalhadores e outros segmentos sociais que não se adaptam a determinados padrões. Visto dessa forma, é necessário compreender as forças que agem de forma decisiva criando as condições necessárias para o fracasso.
Na sociedade capitalista o fracassado é aquele que não conseguiu cumprir com certas exigências determinadas principalmente pela classe dominante, que na ânsia de manter seu domínio não abre mão das mais vis formas de dominação. Por exemplo, aqueles que não se incluem em determinados âmbitos ou círculos sociais, como a universidade ou a burocracia gerencial de uma grande empresa, não são vistos como pessoas de sucesso. No entanto, é preciso muito mais que um curso superior para ser considerado alguém de sucesso. Na sociedade de consumo notadamente marcada pelo mercado como norma, o que determina se um sujeito é fracassado é sua condição material e financeira e não a sua habilidade artística em produzir obras notáveis ou simplesmente algo que não busca corroborar o óbvio e superficial como uma música experimental. Um músico de sucesso é aquele popularmente conhecido, exaustivamente tocado nas rádios e que faz girar a economia de mercado da indústria cultural. Um cineasta de sucesso é aquele que lotou os cinemas, está em todas as mídias, enfim é pauta do momento. Isso faz com que o sucesso seja algo intimamente ligado ao mercado, algo distante da qualidade daquilo que é produzido. O fracasso nesses termos é algo necessário para que haja o sucesso. Na sociedade capitalista o sucesso determina todo um conjunto de valores e práticas normativas a serem seguidas e estabelecidas para que o sujeito possa ser considerado alguém de sucesso.
Percebam que as respostas não estão prontas e nem o gênio dos gênios é capaz de, através do seu incomparável intelecto, resolver ou propor sozinho o que de fato deve ser feito. Até mesmo o mais sagaz produtor desenvolve seu intelecto em contato com grupos, colocando à prova suas proposições e verdades.
Nessa perspectiva, o cinema político e os trabalhadores do audiovisual e do cinema, voltam seus olhares atentos à realidade concreta. Analisam corretamente as contradições e propõem mudanças objetivas através da criação que encontra seu sentido no âmbito social. Por exemplo, quem é capaz de assistir o documentário “Atrás de Porta”, de Vladimir Seixas, e não se revoltar contra a polícia, guardas municipais e até mesmo bombeiros? Nessa obra temos um diagnóstico objetivo e certeiro sobre o papel social do poder: excluir os mais pobres da cidade-empresa. Nesse filme, o poder apresenta-se tal como é: impiedoso e determinado. O poder tem uma racionalidade própria e não se abate com choro, revolta e gritaria. Comprovamos com esta película que não existe a menor possibilidade de conciliação com as forças repressivas. O que resta aos trabalhadores é uma melhor e mais desenvolvida organização para enfrentamentos futuros.
A polícia, os exércitos e guardas têm o papel fundamental de destruir a organização proletária. Em outras palavras, garantem a exclusão. O trabalhador que vê na polícia um aliado está contribuindo para a sua própria aniquilação. Dentro desse quadro despótico, a arte é uma importante arma dos trabalhadores. Uma arte que exponha a vergonha alheia, para que se torne ainda mais vergonhosa. Certamente essa arte será criminalizada e reprimida pelos homens do poder. A questão é: como agir nesses momentos?
As redes nesse sentido servem também como forma de proteção dos militantes e produtores de comunicação. Uma das grandes ferramentas que os trabalhadores têm em mãos é a comunicação e ela hoje se faz com o uso contumaz da internet. As mídias de uma forma geral já existem, mas não integram-se entre si a não ser em momentos muito específicos que comove a esquerda em geral, ou seja, setores progressistas/reformistas e burocráticos, independentes, coletivos e organizações, anarquistas, etc. Antes mesmo da defesa de um projeto comum por parte das redes, estas se formam dentro de espectros maiores onde a luta do trabalhador deve ser priorizada; o trabalhador, aquele que produz, portanto, aquele que deve agir como classe.
O antifascismo é um mecanismo de defesa comum entre a esquerda; ela sabe que o fascismo bota tudo num mesmo saco a fim de criminalizar e coagir o trabalhador principalmente se este estiver organizado. Mas o antifascismo também tem seus limites como bem discute o texto “Quando as Insurreições Morrem”, de Gilles Dauvé, muitas vezes caindo num legalismo inócuo. Para Dauvé,
“a essência do antifascismo consiste em resistir ao fascismo defendendo a democracia, ou seja, não mais lutar contra o capitalismo, mas exercer sobre ele uma pressão suficiente para que ele renuncie à opção totalitária. Uma vez que o socialismo é identificado com a democracia total, e o capitalismo com uma fascistização crescente, o antagonismo entre proletariado e capital, comunismo e trabalho assalariado, é abandonado em favor da oposição entre democracia e fascismo apresentada como a quintessência da perspectiva revolucionária. A acreditarmos na esquerda e na extrema-esquerda, a verdadeira transformação seria a realização enfim dos ideais de 1789 eternamente traídos pela burguesia. O mundo novo? Ele já existe um pouco!, embriões a serem preservados, pequenos brotos a serem cultivados: os direitos democráticos conquistados, que é preciso pressionar para aumentarem cada vez mais em uma sociedade indefinidamente aperfeiçoável pela adição de doses diárias cada vez mais fortes de democracia até a democracia completa: o socialismo.”
A comunicação integra-se através da sua organicidade material, ainda que funcione com o uso de ferramenta virtual. Sobre isso podemos melhor dizer que é fundamental uma aproximação entre aqueles que buscam a organização ainda que não tenha-se de ante mão todo o esclarecimento necessário para garantir essa organização. Reunir os produtores é o primeiro passo. A partir do contato constante se desenvolverá a organização contribuindo para o surgimento de novas células. É claro que esse não é um movimento automático, o que depende sobretudo do desenvolvimento da organização da classe trabalhadora através de uma teoria revolucionária que guiará essa classe a um rompimento radical contra a ordem burguesa. Essa comunicação, ao passo que se desenvolve transmite as orientações políticas da classe e para ela dialeticamente com as organizações.
Essa comunicação não está separada da classe. Este ponto é fundamental. A comunicação e a classe atuam simultaneamente. Não devemos ter ilusões de que todo o espectro político da esquerda fará parte dessa organização; ainda assim este não é um trabalho simples. O maior desafio reside em agregar setores produtivos precarizados ainda desorganizados a superar a sua condição desobedecendo ao funcionamento geral do mercado capitalista na defesa intransigente de uma colaboração entre os próprios trabalhadores, transcendendo o pontualismo de ações restritas que não garante nada além do risco e exposição gratuita. Uma mídia proletária fortalecida ainda assim não ofereceria perigo ou ameaça real à hegemonia de uma grande corporação como a rede globo.
O que garante uma condição real frente ao poderio inimigo é justamente a integração dos produtores no lastro das informações e no seu infinito trabalho de gerar cada vez mais adesão através também do boicote aos inimigos de classe gerando mecanismos de desestabilização da sociedade burguesa expondo suas contradições centrais sem deixar que haja condições de integração com setores reacionários, combatendo também o reformismo pelego dos partidos políticos e sindicatos que obviamente estarão contra a todo e qualquer movimento de radicalização da luta operária.
Em âmbito virtual, essas redes se encontram em plataformas próprias, o que as reúne não como catálogo, mas em como se dispõe a comunicação proletária de uma forma geral favorecendo sua organização e relação mútua. Ou seja, essas plataformas fazem parte da organização das redes operando em prol da sua manutenção. Mas, afinal, se o dinheiro não vem prioritariamente do mercado de onde vem? Se pensarmos que um grande aparato de comunicação não se constrói sem recursos, tudo fica mais difícil nos colocando “na real” da coisa.
A teoria parece o suficiente em garantir essa organização, mas não é bem assim. Se essa equação não for resolvida, tudo pode continuar apenas no campo das ideias. O dinheiro dificilmente virá de partidos e sindicatos. Estes aparatos definitivamente não têm a mínima preocupação em socializar os recursos em prol de uma comunicação livre. Eles funcionam muitas vezes como bancos, concentram os recursos e financiam suas próprias ações. Estes setores fortalecem apenas o seu nicho corporativo, afinal de contas são estruturas de poder e dominação da classe trabalhadora. Qualquer cineasta ou comunicador independente sabe do que falamos.
O dinheiro, neste caso, vem na medida em que as redes passam a funcionar de forma colaborativa, extrapolando o limite inicial dos contatos e acessos de cada célula, que trabalham na geração dessa renda que surge como resultado da campanha sistemática empreendida por todos os envolvidos a partir também de um sistema de rotatividade e prioridades criando condições reais para a auto-suficiência. E como conectar novas células que certamente surgirão nesse processo? Ora, as células ou segmentos organizados não podem sobreviver sem o auxílio vital de todas as outras que existem. Elas se reconhecem não somente por compor um espectro político amplo, o que na realidade não garante nada ao produtor independente visto a dificuldade de financiamento entre a própria “esquerda”. A sua sobrevivência material depende da rede, assim como a sobrevivência da própria comunicação em si, daquilo que é veiculado e produzido também entre si.
Depende dessa rede todo um conjunto de informação e manutenção da sua condição material. Essa rede é orgânica também no sentido do fluxo das informações trocadas entre os livre-produtores. A sua vulnerabilidade política deve ser superada criando-se mecanismos internos que não permita em última instância agregar valores antagônicos aos seus como é o caso da ultra-verticalidade da maioria das organizações. Esses mecanismos se criam à medida em que se esclarece a posição política e o propósito social das redes de apoio mútuo, qual seja, o rompimento com o capitalismo.
A comunicação é o elemento central e estratégico das lutas. É a partir dela que se desenvolve o convencimento. A mídia burguesa convence, em suma, de uma forma absolutamente desonesta utilizando o medo, arrefecendo as lutas. Ora, a classe trabalhadora não têm voz nessa mídia. Dizer que alguns setores foram incluídos a este modo de produção é uma coisa distinta de se ter ali uma leitura favorável aos mais pobres e precarizados pelas políticas do capital. A pobreza, neste caso, é utilizada para justificar o injustificável. Contrapõe-se à pobreza a expertise da concorrência de mercado, da competição, o que continua não ajudando muito o trabalhador.
*Arthur Moura é cineasta, graduado em História pela UFF, mestre em Educação pela FFP-UERJ.
**Felipe Xavier é cineasta, graduado em História pela UFF.
1 comentário em “Mercado e formação de redes de apoio mútuo no cinema”
Temos dois roteiros, nosso objetivo é formar dentro de uma linguagem fácil e técnica envolvendo na união das artes juntar as capacidades no projeto.
As duas obras logas, são bastante ricos em conteúdos,pede um investimento altismo,fica difícil quando temos bloqueios.
Na minha visão como criador do conteúdo tive uma grande força de construir cenários imaginários natural.
Eu sempre estou em transições mental que me amadurece na transformação do cotidiana.
Vejo talvez diferente os caminhos,as dificuldades estou passando sem deixar a luz apagar,estamos com nosso dialogo aberto procurando acertar,juntar as bagagens e ver os resultados