Por Marcela Pereira Rosa
O Brasil passa hoje por um complexo e conturbado processo político. Na acirrada disputa pela presidência, que polariza e divide o país, um dos fenômenos manifestos vem sendo a grave disseminação do chamado discurso de ódio. Há um ataque direto a determinados setores da sociedade – mulheres, negros, LGBTs, indígenas, determinados grupos de imigrantes e todos aqueles que se posicionam no campo da esquerda ou da centro-esquerda – que aprofunda preconceitos e estimula a intolerância a partir do menosprezo e da criminalização desses grupos.
O atual momento político tem dado margem às expressões daquilo de mais bizarro e monstruoso já produzido pela humanidade. Os afetos aí implicados revelam as formas diversas da face podre do humano, os preconceitos mais torpes e as intolerâncias mais mesquinhas. O ódio ganha materialidade nas palavras e nos atos: já foram mapeados mais de 50 casos de tipos diversos de agressões praticados por eleitores do candidato Jair Bolsonaro desde o dia 1 de outubro [1] e incontáveis relatos de agressões verbais que circulam nas redes sociais. Diante da enxurrada de discursos e atos de ódio que se espalharam pelo país, alguns psicólogos vêm trazendo à tona o importante debate sobre a dimensão afetiva/emocional desse processo político, muitas vezes, no entanto, de uma maneira rasa ou mesmo equivocada.
O ódio é parte da dimensão afetiva que nos constitui como humanos. Ocorre, contudo, que ele vem sendo empregado como arma política a serviço dos ataques da extrema direita, ganhando e expressando uma forma particular. Por isso mesmo, não basta explicar o potencial psíquico para o ódio, trata-se sim de compreender a maneira pela qual o ódio popular vem sendo manobrado pelas forças reacionárias. Essas formas de ódio têm nas bases de seus motivos o aniquilamento da diversidade e da existência mesma daqueles que exprimem essa diversidade – como tristemente testemunhamos no caso do assassinato de mestre Moa do Katendê. Trata-se de um sério e grave ataque às liberdades democráticas e, em última instância, às existências do humano.
Historicamente a psicologia compreendeu as emoções e os afetos partindo de uma concepção dualista. Em algumas interpretações elas são vistas como território do irracional, em outras como campo do biológico, reflexo das reações orgânicas. Outras vezes, elas são autonomizadas e ganham o status de uma dimensão independente, sendo compreendidas fora de suas relações com outros processos psíquicos e apartadas de seus determinantes históricos e culturais. Em todas essas interpretações há uma clara cisão entre a dimensão cognitiva e a dimensão afetiva/emocional e uma supressão das bases sociais e culturais.
Lev Vygotski, importante autor russo e um dos fundadores da Psicologia Histórico-Cultural, afirmava que a separação, em nossa consciência, entre o aspecto intelectual de um lado e o afetivo e volitivo de outro, é um dos defeitos mais graves da psicologia [2]. Para ele, afeto e cognição formam uma unidade. Nessa perspectiva, as emoções não se configuram como acessórios dispensáveis da vida humana, mas como sua dimensão inalienável, visto que elas medeiam as interações humanas e as práticas sociais [3]. Vygotski compreendia que as emoções, assim como todas as demais funções psíquicas superiores que constituem nossa consciência enquanto um sistema, são determinadas historicamente e resultam da combinação de relações que surgem como consequência da vida histórica. Nesse sentido, nossos sentimentos têm um caráter histórico e se alteram em meios culturais distintos [4].
Ao discutir o desenvolvimento do psiquismo humano Vygotski estabeleceu aquilo que ele chamou de lei geral do desenvolvimento, a partir da qual compreende que toda função psíquica aparece em dois planos: primeiro no plano social e, somente depois, no plano individual. Seu processo de constituição ocorre, portanto, num sentido que vai das condições objetivas para as condições subjetivas. Assim é que compreendemos que o psiquismo, com todas as funções e processos que o constituem, incluindo aqui as emoções/afetos, se constitui a partir da realidade objetiva, situada histórica e culturalmente.
É preciso frisar que uma emoção tem sempre um significado e uma raiz única para cada sujeito e é na dimensão singular que cada pessoa expressa e pode materializar os afetos aí mobilizados. Há, contudo, uma certa generalidade nessa singularidade, que advém justamente do fato de que os afetos são cultural e historicamente determinados. Por isso mesmo eles precisam ser compreendidos a partir das relações sociais que fundam suas bases. Vale aqui retomar as colocações de Lukács, que nos diz que os traços singulares só podem ser compreendidos quando é delineado o espaço histórico em que aquilo que é especificamente pessoal (o singular) pode se tornar concretamente eficaz. Isso se faz esclarecendo as universalidades e particularidades que atuam sobre esse singular [5]. É precisamente por isso que as expressões de ódio que temos vivenciado não podem ser compreendidas a partir de uma chave individualista, descontextualizada, a-histórica ou biológica. O aspecto que quero frisar aqui é o de que o ódio e os afetos mobilizados em nosso atual cenário político são ininteligíveis fora dos marcos históricos, culturais e objetivos que constituem a sociedade brasileira e que conformam as particularidades do nosso contexto atual. Qualquer análise que o faça de outra maneira estará fragmentando o sujeito e retirando-o das relações sociais que são a base de sua constituição. Negar os processos culturais e históricos que constituem o ser social é uma postura típica das psicologias burguesas, que em nada contribuem com a compreensão efetiva dos problemas mais prementes que atingem a classe trabalhadora.
O ódio que temos visto circular tem uma profunda raiz histórica e objetiva e esse é um dos principais aspectos que vem sendo negligenciado em muitas das análises a respeito desse tema. Ele aparece nesse contexto como componente da dimensão superestrutural que serve à sustentação do avanço das ideias fascistas. Ele contribui com a tarefa de pavimentar os caminhos da opressão e da dominação e de acirrar as contradições já existentes. Como disse Ferreira [6], o fascismo assume formas e se apropria de partes das tendências de uma sociedade em uma dada época, inclusive o ódio a setores que já são tendencialmente oprimidos em cada momento. No caso brasileiro, me parece haver, em primeiro lugar, uma legitimação dos preconceitos e das intolerâncias que antes operavam de maneira pouco mais velada contra aqueles grupos sociais historicamente oprimidos em nosso país: os negros, as mulheres, a comunidade LGBT, os indígenas e frações da esquerda; e em segundo lugar, com base nessa legitimação, há um grave processo de alargamento e aprofundamento desses preconceitos e intolerâncias em suas mais variadas formas de manifestação.
Por um lado, as elites e as classes médias destilam seu ódio e preconceito históricos contra as camadas populares, cujas raízes primeiras ligam-se ao nosso longo processo de colonização. A violência como herança cultural desse período se faz presente em nosso cotidiano até os dias de hoje. Operamos e nos relacionamos atravessados por fortes resquícios de uma subjetividade escravocrata, intolerante e violenta. Por outro lado, parte da própria classe trabalhadora, aquela que vivencia as condições de trabalho e de vida mais precarizadas, também faz coro ao desprezo e aos discursos da intolerância. As colocações de Marx se atualizam aqui com uma força gritante: as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes.
Submetida a um longo processo histórico de opressão e alienação, a classe trabalhadora, diariamente bombardeada pela ideologia dominante, encontra-se privada dos elementos necessários para operar uma análise mais crítica da realidade em que se encontra e colocar em questão as sandices ditas por Bolsonaro. Some-se a isso o caráter autocrático da burguesia brasileira que desde sempre alijou as massas de qualquer decisão política real acerca de seu próprio futuro. Nos limites de uma pueril democracia burguesa, a dimensão meramente formal de uma dita igualdade relega aos trabalhadores os restritos limites de “opinarem” através do voto, ação de indivíduos atomizados que se encontram em um processo de estranhamento e alienação tão profundo que sequer é possível falar em autonomia, liberdade decisiva ou voto consciente.
O comportamento fascista e o ódio que o acompanha estão diretamente ligados à consciência imediata das massas que, por sua vez, no nosso caso, constitui-se a partir de um processo histórico que incutiu na sociedade brasileira uma violência estrutural. As bases objetivas dessa violência conformam nosso processo de subjetivação, nossa produção de ideias e de afetos. É essa mesma violência que se atualiza no desenrolar da história e leva as massas, para citarmos um único exemplo, a elegerem um candidato a deputado federal como Trutis. Filiado ao mesmo partido de Jair Bolsonaro, o candidato teve entre suas principais propostas a defesa do armamento. Em sua página no facebook, há uma foto da descrição em que Trutis aparece apontando uma arma para a câmera. Na parte superior esquerda é possível ler “Pro life, Pro God, Pro Gun”. É a atualização do coronelismo que resolve os problemas na bala, uma versão repaginada da brutalidade em essência, travestida, agora, no terno e gravata do senhorio político.
Muitos dos eleitores de Trutis, de Jair Bolsonaro e de toda a bancada da bala – que aumentou consideravelmente suas cadeiras no Congresso nessas eleições – são sim aqueles que, em maior ou menor grau, compactuam com a brutalidade e a violência que se faz presente nos discursos e nas propostas de seus candidatos. E esse é um dos resultados diretos da manipulação do ódio popular pela direita reacionária e da canalização desse ódio em determinadas formas de violência. Como já colocava Ignacio Martín-Baró, importante autor da psicologia social latino-americana, compreender os fenômenos do ódio e da violência nos exige discernir sua natureza, seu alcance e suas raízes, ou seja, apreendê-los em sua concretude histórica. Nada é mais mistificador do que a condenação abstrata de toda violência “venha ela de onde quer que seja”. A violência não é boa ou má em si mesma, mas o que a define nesses termos é aquilo que o ato dito violento produz historicamente e aquilo que ele significa socialmente [7].
É preciso compreender que o ódio e sua materialização no ato de violência expressa e canaliza interesses sociais concretos nos marcos da luta de classes. Aí se insere o grande desafio da esquerda revolucionária: fazer com que a classe trabalhadora compreenda e assuma os ideais comunistas e, assim, canalize o ódio popular, até então manipulado pela extrema direita, para os interesses da revolução, que são precisamente os seus próprios interesses. É necessário ressignificar o ódio, dar a ele novos motivos e sentidos, transformá-lo no ódio à exploração capitalista, à desigualdade estrutural, às injustiças e opressões gestadas nos marcos desse sistema. É preciso colocar a revolta das massas a serviço das tarefas necessárias à superação do capitalismo e à consolidação de uma nova sociedade. Acompanhando as ideias de Clara Zetkin, há que se compreender que as massas que têm aderido às ideias fascistas e suas brutais formas de violência, o fazem também porque essas ideias constituem um refúgio para aqueles se veem politicamente sem abrigo diante da desilusão com as propostas reformistas e, junto a isso, com a sua própria classe. Devemos, pois, “lutar ideologicamente pelos corações e mentes dessas massas. Devemos perceber que eles não estão apenas tentando escapar de suas tribulações atuais, mas que estão ansiando por uma nova filosofia” [8].
Os discursos de ódio a setores minoritários e os atos de violência que vemos se alastrar com mais intensidade a cada novo dia nessa disputa eleitoral são expressão atual de um longo processo social e histórico que constitui, a partir das bases materiais, nossa consciência, nossas formas de subjetivação e de produção afetiva. Esse esguio caminho da história é o chão acidentado em que pisamos. E se é verdade que a cabeça pensa onde os pés pisam, é daí também que crescem os afetos. Os nossos nascem desse chão Brasil, marcado de dores, manchado de sangue. A produção de outros afetos ou de outras formas, de novos sentidos e significações desses nossos afetos, só é possível quando os caminhos da história nos conduzem a outros lugares, quando os rumos que tomamos são aqueles que nos levam à emancipação humana, à superação da barbárie. Pavimentar esse caminho junto à classe trabalhadora é a tarefa urgente da esquerda revolucionária. Como disse o poeta, “se trata de abrir o rumo”, e de abri-lo, dizemos nós, em direção ao socialismo.
* Militante do PCB em São Paulo e psicóloga social.
Referências:
[1] https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?ll=-23.414298416881934%2C-43.90278315946398&z=9&mid=1hNIxsASpLAxFjsWPMqFZtm-cuigr3jj9
[2] Vygotski, L. (2014). Pensamiento y lenguaje. In: Obras Escogidas – II. Madrid: Antonio Machado Libros. (Original publicado em 1934).
[3] Vigotsky, L. (2004). Teoría de las emociones – Estudio históricopsicológico.
Madrid: Akal. (Original publicado em 1933).
[4] Vygotski, L. (1997) Sobre los sistemas psicológicos. In: Obras Escogidas – Tomo I. Madrid: Editorial Aprendizaje/Visor. (Original publicado em 1930).
[5] Lukács, G. (1978). Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.
[6] Ferreira, C.S. (2018). Por que o fascismo cresce no Brasil? Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/21080/por-que-o-fascismo-cresce-no-brasil/
[7] Martín-Baró, I. (2017). A violência na América Central: uma visão psicossocial. In: Martín-Baró, I. Crítica e libertação na Psicologia: estudos psicossociais. Organização de Fernando Lacerda Júnior. Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1987).
[8] Zetkin, C. (1923). Fascismo. Disponível em: https://18.118.106.12/2018/10/19/clara-zetkin-fascismo-1923/