Por Slavoj Žižek, via The Philosophical Salon, traduzido por por Oleg Savitskii e Anna Savitskaia.
A partir da perspectiva hodierna, os marxistas europeus mais interessantes do século XX foram os que tentaram se livrar da dualidade do materialismo de estilo soviético e da elevação pelo marxismo ocidental da prática social ao horizonte transcendental que sobredetermina toda nossa abordagem da realidade, incluindo a natureza. Esses pensadores tentaram situar a prática humana numa ordem cosmológica mais ampla, mas sem regressar a uma ontologia realista ingênua.
Se deixarmos Walter Benjamin de lado, que merece um tratamento especial, nós deveríamos mencionar, ao menos, Ernst Bloch que desenvolveu um gigantesco edifício de um universo inacabado que tende para o ponto utópico de perfeição absoluta. Em sua obra prima O Princípio Esperança, ele oferece um relato enciclopédico da orientação da natureza e da humanidade para um futuro social e tecnologicamente aperfeiçoado. [1] Block julgou serem de importância fundamental os comentários de Marx sobre a “humanização da natureza” (de sua obra inicial “Manuscritos Econômico-Filosóficos): uma verdadeira utopia radical, isto é, utopias que se limitam à organização da sociedade e ignoram a natureza não são melhores que abstrações. Em contraste com as obras posteriores de Lukács, Bloch propõe, assim, uma cosmologia completa, orientada para o futuro, inscrevendo a teleologia na própria natureza (contrariamente à nossa ênfase nos inorientáveis). Portanto, supera o círculo transcendental, mas o preço é alto demais – um retorno à cosmologia utópica pré-moderna.
A contrapartida radical à cosmologia progressista de Bloch foi oferecida por Evald Ilyénkov, o único marxista soviético a ser levado a sério, em seu manuscrito inicial sobre a “cosmologia do espírito”. [2] Confiando provocativamente no que é a derradeira bête noire para os marxistas ocidentais – os manuscritos de Friedrich Engels, reunidos postumamente em A Dialética da Natureza, assim como a tradição soviética do materialismo dialético – e combinando-os com a cosmologia contemporânea, ele traz a ideia dialético-materialista de um desenvolvimento progressivo da realidade a partir das formas rudimentares da matéria, através de diferentes formas de vida, até o pensamento (humano) em sua conclusão lógica nietzschiana. Se a realidade é sem limites espaciais e temporais, então não há um progresso global em relação à sua totalidade. Tudo o que poderia acontecer sempre-já aconteceu: embora cheio de dinâmica em suas partes, o universo como um Todo é uma substância estável spinoziana. O que isso quer dizer é que, ao contrário de Bloch, todo desenvolvimento é circular, todo movimento para cima tem de ser acompanhado por um movimento para baixo, todo progresso por um regresso: o movimento cíclico das formas inferiores da matéria às superiores (‘o cérebro pensante’) e de volta, à sua decomposição em formas inferiores da matéria (as formas biológica, química e física).”
Ilyénkov complementa essa visão do universo com duas hipóteses adicionais. Primeiro, o movimento no cosmo é limitado: para cima e para baixo; ocorre entre o nível inferior (a matéria caótica) e o nível superior (o pensamento), de modo que nada mais alto do que o pensamento seja imaginável. Segundo, o pensamento não é apenas uma ocorrência local contingente no desenvolvimento da matéria; possui a sua própria realidade e eficiência, uma parte necessária (o apogeu) do desenvolvimento de toda a realidade. E então vem a especulação cosmológica mais atrevida de Ilyénkov: “o desenvolvimento cíclico do universo passa através de uma fase que envolve a destruição completa da matéria – através da ‘conflagração’ em escala galáctica. Essa passagem pelo nível zero, a qual relança o desenvolvimento cósmico, não acontece por si só, mas precisa de uma intervenção especial para redirecionar a energia, que foi irradiada durante o ciclo de desenvolvimento da matéria, para uma nova “conflagração global”. A questão de o que (ou quem) incendeia o universo é crucial. De acordo com Ilyénkov, é função cosmológica do pensamento proporcionar as condições para o “relançamento” do universo que está entrando em colapso devido à morte térmica. É a inteligência humana, que, ao alcançar a potência máxima, lança o big bang. Eis como o pensamento prova na realidade que é um atributo necessário da matéria.
Para tornar esse momento reflexivo fundamental mais claro, vamos citar uma passagem do próprio texto de Ilyénkov:
“Em termos concretos, pode-se imaginar isso dessa forma: em algum ponto culminante de seu desenvolvimento, os seres pensantes, ao executarem seu dever cosmológico e sacrificarem-se, produzem uma catástrofe cósmica consciente – ocasionando um processo, uma ‘morte térmica’ da matéria cósmica; isto é, desencadeando um processo que leva ao renascimento de mundos moribundos por meio de uma nuvem cósmica de gases incandescentes e vapores. Em termos simples, o pensamento revela-se ser uma ligação mediadora necessária, graças unicamente à qual o ‘rejuvenescimento’ ígneo da matéria universal se torna possível; prova ser essa ‘causa eficiente’ direta que leva à ativação instantânea das reservas infinitas do movimento interconectado.”
Agora vem a reflexão ético-política mais excêntrica de Ilyénkov sobre a necessidade (não apenas social, mas também) cosmológica e o papel do Comunismo. Para ele, tal autossacrifício pode ser realizado apenas por uma sociedade Comunista altamente desenvolvida:
“Passar-se-ão milhões de anos, milhares de gerações nascerão e perecerão, um sistema humano genuíno com as condições para ação estabelecer-se-á na Terra– uma sociedade sem classes, uma cultura espiritual e material florescerá em abundância, com a ajuda de e com base em que a humanidade unicamente poderá cumprir seu grandioso dever sacrificatório perante a natureza… Para nós, para as pessoas que vivem ao amanhecer da prosperidade humana, a luta por esse futuro continuará sendo a única forma real de servir aos objetivos mais elevados do espírito pensante.”
Portanto, a derradeira justificativa do Comunismo é que, fazendo surgir uma sociedade solidária, livre de instintos egoístas, ele terá a força ética suficiente para realizar o autossacrifício máximo da humanidade em sua autodestruição e na destruição simultânea de todo o cosmo:
“Se a humanidade for incapaz de alcançar o comunismo, então a inteligência humana coletiva tampouco alcançará a sua fase máxima de poder, visto que será solapada pelo sistema capitalista, que está tão longe quanto se pode chegar de qualquer motivação autossacrificatória ou sublime.”
Ilyénkov estava bem ciente da natureza reflexiva dessa cosmologia – referiu-se a ela como sua “fantasmagoria” ou “sonho” – por isso, não é de admirar que mais tarde ela fosse interpretada de uma maneira historicista primitiva ou até pessoal: como uma extrapolação cósmica da desintegração da União Soviética, ou até como um presságio do suicídio de Ilyénkov em 1979. Em um nível teórico mais imanente, imediatamente surge aqui uma suspeita de que a cosmologia de Ilyénkov “exprime conteúdos arcaicos, pré-modernos, envoltos na linguagem da filosofia clássica, da ciência e do materialismo dialético. O indicador desse conteúdo mítico é, especialmente, o tema de autossacríficio heróico e de ‘conflagração global’. É por esse ângulo que Boris Groys interpreta a cosmologia de Ilyénkov como um retorno ao paganismo, discernindo nele “o renascimento da religião asteca de Quetzalcoatl que se incendeia para reverter o processo entrópico.” Embora isso seja verdadeiro em princípio, não nos deveríamos esquecer que, uma vez que estamos na modernidade, isto é, após os avanços de Descartes e de Kant, um retorno direto à cosmologia pagã não é possível: todo retorno desse tipo tem de ser interpretado como um sintoma da incapacidade do pensamento de enfrentar a negatividade radical no âmago da subjetividade moderna. [3] O mesmo já é válido para o primeiro emprego sistêmico da ideia de destruição total na longa dissertação filosófica, apresentada a Juliette pelo Papa Pio VI, parte do livro 5 de Juliette de Sade:
‘Não há nada errado com estupro, tortura, assassinato, e assim por diante, visto que estão de acordo com a violência que é a maneira do universo. Agir de acordo com a natureza quer dizer participar ativamente em sua orgia de destruição. O problema é que a capacidade do homem de cometer um crime é altamente limitada, e suas atrocidades, não importa o quão depravadas elas sejam, no final das contas, nada ultrajam. Este é um pensamento deprimente para o libertino. O ser humano junto com toda a vida orgânica e, inclusive, a matéria inorgânica, é apanhado num ciclo infinito de morte e renascimento, geração e corrupção, de modo que ‘não há deveras a própria morte’, apenas uma permanente transformação e reciclagem da matéria de acordo com as leis imanentes dos ‘três reinados’: animal, vegetal e mineral. A destruição pode acelerar este processo, mas não pode pará-lo. O verdadeiro crime seria aquele que não mais opera dentro dos três reinados, mas aniquila-os por completo, aquele que põe fim ao eterno ciclo de geração e corrupção e, ao fazê-lo, devolve à Natureza o seu absoluto privilégio de criação contingente, de jogar os dados de novo”. [4]
O que, então, em um estrito nível teórico, está errado com esse sonho da “segunda morte” como uma negação pura radical que põe fim à própria vida-ciclo? Em uma magnífica demonstração de seu gênio, Lacan oferece uma resposta simples: “Só que, sendo psicanalista, posso perceber que a segunda morte está antes da primeira e não depois, como sonha Sade. [5] (A única parte problemática dessa afirmação é a qualificação “sendo psicanalista” – um filosofo hegeliano também pode percebê-lo bastante claramente.) Em que sentido exato devemos compreender essa prioridade da segunda morte – a aniquilação radical de toda a vida-ciclo de geração e corrupção – sobre a primeira, morte que continua sendo um momento desse ciclo? Schuster aponta o caminho: “Sade acredita que existe uma segunda natureza bem estabelecida que opera de acordo com as leis imanentes. Contra esse domínio ontologicamente consistente, ele somente pode sonhar com um Crime absoluto que aboliria os três reinados e atingiria a desordem pura da natureza primária”.
Em suma, o que Sade não percebe é que não existe o grande Outro, não existe a Natureza como um domínio ontologicamente consistente. A Natureza já é inconsistente em si, desequilibrada, desestabilizada pelos antagonismos. A negação total imaginada por Sade, portanto, não vem no fim como uma ameaça ou uma probabilidade de destruição radical. Ela vem no início, ela sempre-já aconteceu, ela representa o ponto de partida do nível zero, do qual exsurge a realidade frágil e inconsistente. Em outras palavras, o que está faltando na noção de Natureza como um corpo regulado pelas leis fixas é simplesmente o próprio sujeito: em hegelês, a Natureza sadiana continua sendo uma Substância. Sade continua compreendendo a realidade somente como Substância e não também como Sujeito, onde o “Sujeito” não quer dizer outro nível ontológico, diferente da Substância, mas o antagonismo imanente de incompletude-inconsistência da própria Substância. E, à medida que o nome freudiano para essa negatividade radical for pulsão de morte, Schuster tem razão em apontar como, paradoxalmente, o que Sade não compreende em sua celebração do derradeiro Crime de destruição radical de toda a vida, é justamente a pulsão de morte:
“não obstante toda sua libertinagem e devastação, a vontade de destruição sadiana baseia-se em uma negação fetichista da pulsão de morte. O sadista transforma a si mesmo no servente da extinção universal precisamente a fim de evitar o impasse da subjetividade, a “extinção virtual” que cinde a vida do sujeito de dentro. O libertino sadiano expele essa negatividade para fora de si mesmo, para poder entregar-se a ela como escravo; a visão apocalíptica de um Crime absoluto, portanto, funciona como uma proteção contra uma cisão interna mais intratável. O que a imaginação feraz do sadista dissimula é o fato de que o Outro é barrado, inconsistente, ausente, que não pode ser servido, pois não apresenta nenhuma lei para obedecer, nem mesmo a lei selvagem de sua autodestruição em aceleração. Não existe a natureza a ser seguida, rivalizada ou ultrapassada e é esse vazio ou falta, a não-existência do Outro, que é incomparavelmente mais violento do que até o fantasma mais destrutivo da pulsão de morte. Ou, como argumenta Lacan, Sade tem razão se nós apenas invertermos seu pensamento malicioso: a subjetividade é a catástrofe em que fantasia, a morte além da morte, a “segunda morte”. Enquanto o sadista sonha em forçar violentamente um cataclismo que passará uma esponja no passado, o que ele não quer saber é que essa calamidade sem precedente já ocorreu. Todo sujeito é o fim do mundo, ou antes, esse fim impossivelmente explosivo é igualmente um “recomeço”, “a chance inabolível do lançamento de dado.”[6]
Kant caracterizou o ato autônomo e livre como um ato que não pode ser explicado nos termos da causalidade natural, da tessitura de causas e efeitos: um ato livre ocorre como a sua própria causa, inaugura uma nova cadeia causal a partir de seu ponto zero. Portanto, à medida que a “segunda morte” é a interrupção da vida-ciclo natural de geração e corrupção, nenhum aniquilamento radical de toda a ordem natural é necessário para isso – um ato autônomo e livre já suspende a causalidade natural, e o sujeito como tal já é esse talho no circuito natural, a autossabotagem dos objetivos naturais. O nome místico desse fim do mundo é a “noite do mundo”, embora o nome filosófico seja “negatividade radical” como a essência da subjetividade. E, para citar Mallarmé, um lançamento de dado nunca abolirá o azar, isto é, o abismo da negatividade permanece para sempre como o pano de fundo insublimável da criatividade subjetiva. Nós podemos até arriscar aqui uma versão irônica de um famoso lema de Ghandi “seja a mudança que você quer ver no mundo”: o próprio sujeito é a catástrofe que ele teme e tenta evitar.
De volta a Ilyénkov! Exatamente o mesmo vale para sua noção de autodestruição radical da realidade: embora seja claramente uma fantasmagoria, não deve ser tomada de forma leviana porque é um sintoma de uma falha fatal em todo o projeto do Marxismo Ocidental. Constrangida pelo papel transcendental da prática social como o derradeiro horizonte de nossa experiência, não consegue levar em conta de maneira adequada a negatividade radical como a fenda no Real, o que torna possível a emergência da subjetividade; essa dimensão negligenciada, excluída pelo pensamento transcendental, então retorna no real como a fantasmagoria de uma destruição total do mundo. Como no caso de Sade, o erro de Ilyénkov reside em seu próprio ponto de partida: de uma maneira ingênua-realista, ele pressupõe a realidade como um Todo regulado pela necessidade do progresso e de seu contrário. Dentro desse espaço pré-moderno de um cosmo completo e autorregulador, a negatividade radical somente pode aparecer como a autodestruição total. A saída desse impasse é abandonar o ponto de partida e admitir que não existe realidade como um Todo autorregulador, que a realidade está rachada em si mesma, incompleta, não-toda, atravessada pelo antagonismo radical.
[1] Veja Ernst Bloch, The Principle of Hope, vols. 1–3, Cambridge (Ma): MIT Press 1995.
[2] Alexei Penzin, “Contingency and Necessity in Evald Ilyenkov’s Communist Cosmology,” available online at https://www.e-flux.com/journal/88/174178/contingency-and-necessity-in-evald-ilyenkov-s-communist-cosmology/. (All quotes from Ilyenkov as well as from Penzin are from this source.)
(Todas as citações de Ilyénkov assim como de Penzin são dessa fonte.)
A “Cosmologia do Espírito” de Ilyénkov foi escrita no início da década de 50 e publicada pela primeira vez no idioma russo em 1988.
[3] A seguir, retomo a linha de pensamento do último capítulo do meu livro Disparidades, Londres: Bloomsbury 2016.
[4] Aaron Schuster, “The Third Kind of Complaint” (unpublished manuscript).
[5] Jacques Lacan, Ecrits, New York: Norton 2006, p. 667.
[6] Schuster, op.cit.