Karl Marx contra os impostos

Por Karl Marx, traduzido por Thiago Lstrcc e Gabriel Landi Fazzio

Do mesmo modo como defendia a abolição do Estado, considerando todo Estado uma forma de ditadura de classe; Karl Marx nunca foi um grande entusiasta das utopias tributárias. Embora muitos partidos de esquerda, ao longo do último século, tenham combatido os impostos indiretos e defendido a tributação progressiva dos rendimentos (revindicação formulada no “Manifesto Comunista”), algumas concepções do revolucionário alemão sobre o tema talvez surpreendam seus leitores reformistas…

Durante a revolução alemã de 1848, após a monarquia proibir o primeiro parlamento eleito do país de se reunir, este parlamento respondeu decretando o boicote ao pagamento de impostos. Através de seu jornal, a Nova Gazeta Renana, Marx publicou este decreto, acrescentando: “A partir de hoje, portanto, os impostos estão abolidos! É alta traição pagar impostos. A recusa a pagar impostos é o principal dever do cidadão!”. Marx foi processado por promover a resistência fiscal, mas foi absolvido depois de argumentar que não era ilegal promover a resistência fiscal contra um governo ilegal.

Junto à tradução inédita dos artigos de Marx sobre o episódio, selecionamos alguns excertos relevantes da obra de maturidade do autor sobre a questão dos impostos em sua relação com a produção capitalista e o Estado burguês.


Chega de impostos!!! [Nova Gazeta Renana 145, suplemento especial]

Colônia, 16 de novembro de 1848. Todos os jornais de Berlin, com exceção do “Preußisch Staats-Anzeigers”, do “Vossich Zeitung” e do “Neue Preussich Zeitung”, falharam em chegar até nós.

A Guarda Civil foi desarmada no rico distrito a sudoeste de Berlin, porém apenas lá. Este é o mesmo batalhão que traiçoeiramente assassinou trabalhadores da engenharia em 31 de outubro (na edição do jornal: 21 de outubro). Seu desarme é uma vitória para a causa popular.

A Assembleia Nacional, por outro lado, foi expulsa da prefeitura da Colônia pela força das armas. Ela se reconstituiu, então, no hotel Mielentz, onde finalmente pode passar por unanimidade (por 226 votos) a seguinte deliberação acerca do não pagamento de impostos:

“Enquanto a Assembleia Nacional não puder continuar suas sessões em liberdade em Berlin, o Ministério de Brandenburgo não tem qualquer direito de dispor do tesouro e cobrar impostos.

Esta decisão entra em vigor em 17 de novembro.

Assembleia Nacional, 15 de novembro.”

De hoje em diante os impostos estão abolidos [Aufheben]!! O pagamento de impostos é traição e sua recusa um dever primeiro dos cidadãos!


A recusa no pagamento de impostos e o campo [Nova Gazeta Renana, 147, 19 de novembro de 1948]

“[…] Berlin só poderá ser salvaguardada através da energia revolucionária das províncias. As cidades provinciais maiores, em particular as capitais provinciais, só podem ser salvaguardadas pela energia revolucionária do campo. A recusa a pagar impostos (sejam diretos ou indiretos) dá ao campo a melhor oportunidade de servir à revolução.”


Sobre a proclamação do Ministério Brandenburgo-Mateuffel sobre a recusa no pagamento de impostos [Nova Gazeta Renana, 149]

Colônia, 21 de novembro 1848. O Ministério Brandenburgo-Mateuffel emitiu uma ordem para todas autoridades administrativas reais exigindo a cobrança dos impostos através de medidas violentas.

O Ministério Brandeburgo-Manteuffel, cuja posição é ilegal, recomenda coerção contra os inadimplentes e suavidade frente aos despossuídos.

Erguem-se, portanto, duas categorias de não pagadores: a primeira, daqueles que não pagam para cumprir a vontade da Assembleia Nacional, e daqueles que não pagam porque não são capazes. Os motivos do Ministério são muito claros. Eles querem dividir os democratas; querem que os camponeses e trabalhadores contem a si mesmos como inadimplente devido à falta de meios para pagar, a fim de dividi-los daqueles inadimplentes devido à ordem legal [da Assembleia] e, por conseguinte, privar os últimos do apoio dos primeiros. Mas este plano fracassará; o povo considera que é responsável pela solidariedade na recusa do imposto, assim como era outrora responsável solidário na sua cobrança.

A luta será decidida entre a força que paga e a força que é paga.


O processo dos democratas do comitê do distrito renano [Nova Gazeta Renana, 231, 25 de fevereiro de 1849]

“[…] Meus senhores! É público que o ministério descreveu o não pagamento de impostos como uma medida “que choca as fundações da sociedade”. A recusa no pagamento não afeta em nada as fundações da sociedade.

De maneira geral, meus senhores, por que os impostos, ou seja, seu consentimento e sua recusa atuam como um elemento importante na história do constitucionalismo? Isto se esclarece facilmente. Assim como os servos, com dinheiro à vista, adquiriam dos senhores feudais seus privilégios, os povos, para garantirem seu reconhecimento, também com dinheiro em espécie, compram seus privilégios de suas monarquias feudais. Os reis necessitavam de reservas para as guerras com os povos estrangeiros e, mais particularmente, em suas lutas contra os senhores feudais. Quanto mais o comércio e a indústria se desenvolveram, mais necessitaram de reservas. Na mesma medida se desenvolveram, porém, o terceiro estado e as classes médias, e na mesma medida houve o surgimento de grandes fundos financeiros a sua disposição. Estas classes compravam por meio do imposto dos reis mais liberdades. Para assegurar estas liberdades, reservavam este direito em determinados momentos para renovar a suas obrigações monetárias, como, por exemplo, no direito de votar e não votar os impostos. Na história inglesa particularmente o leitor pode acompanhar em detalhes este desenvolvimento.

Na sociedade medieval, assim, os impostos eram a única obrigação entre a nascente sociedade burguesa e o estado senhorial feudal, os quais forçaram o estado a realizar concessões, a ceder ao próprio desenvolvimento burguês e a se ajustar a suas necessidades. Nos estados modernos, estes direitos ao pagamento e a recusa dos impostos foram transformados pela sociedade burguesa em uma maneira de controlar o conselho administrativo e o governo aos seus interesses gerais.

O leitor descobrirá que uma parte da recusa dos impostos é uma parte integral de todo mecanismo constitucional. Este tipo de recusa toma lugar sempre que o orçamento for rejeitado. O orçamento corrente é votado apenas para um período; além disso, depois de serem adiadas, e depois de um intervalo muito pequeno, as câmaras devem ser convocadas novamente. A partir disso, uma independência da coroa é impossível. Os impostos são recusados através da rejeição definitiva do orçamento, apenas se a nova câmara do ministério não ganhar maioria ou a coroa não nomear um ministério que esteja de acordo com a nova câmara. A rejeição do orçamento é, portanto, uma recusa parlamentar ao pagamento de impostos. Esta forma não era aplicável no atual conflito, porque a constituição ainda não existia, mas havia de ser produzida.

Mas esta recusa aos impostos que ocorreu aqui, uma recusa aos impostos, que não se trata apenas de um novo orçamento recusado, mas o próprio pagamento dos impostos correntes estarem proibidos também, não é algo desconhecido. Isto era muito comum na Idade Média. Até o velho parlamento alemão e o velho estado feudal de Brandenburgo deliberaram o não pagamento de impostos. E nos países constitucionais modernos não faltam exemplos. Em 1832, ocorreu a recusa no pagamento de impostos na Inglaterra que levou à queda do governo de Wellington. Reflitamos, meus senhores! Não foi o parlamento que deliberou o não pagamento de impostos, mas o povo o proclamou e o executou com seu absoluto poder. A Inglaterra, porém, é o país histórico do constitucionalismo.

Estou muito distante de negar que a revolução inglesa, a qual levou Carlos I ao cadafalso, começou com a recusa de impostos ou que a revolução norte americana, que terminou com a declaração de independência da Inglaterra, começou com a recusa no pagamento de impostos. A recusa no pagamento de impostos pode ser também na Prússia o prenúncio de algo muito desagradável. Mas não foi John Hampden quem levou Carlos I para o cadafalso, mas sua própria obstinação, sua dependência aos estados feudais e sua arrogância de querer derrotar com violência as demandas da nova sociedade emergente. A recusa no pagamento de impostos é apenas um sintoma da discórdia entre a coroa e o povo, apenas uma evidência que o conflito entre governo e povo alcançou um nível alto, perigoso e ameaçador. Ela não produz uma discórdia e um conflito. Ela expressa apenas da existência do fato. No pior caso, sucede-se dela a decadência do regime e da forma de Estado existentes. As fundações da sociedade não são em razão disso afetadas. Na atual decadência, a recusa do pagamento de impostos foi apenas uma autodefesa da sociedade contra o governo, cuja desobediência afetou as fundações do regime. […]”


O 18 Brumário de Luis Bonaparte [Excerto do capítulo VII]

Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital, a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de impostos. Os impostos são a fonte de vida da burocracia, do exército, dos padres e da corte, em suma, de toda a máquina do Poder Executivo. Governo forte e impostos fortes são coisas idênticas. Por sua própria natureza a pequena propriedade forma uma base adequada a uma burguesia todo-poderosa e inumerável. Cria um nível uniforme de relações e de pessoas sobre toda a superfície do país. Dai permitir também a influência de uma pressão uniforme, exercida de um centro supremo, sobre todos os pontos dessa massa uniforme. Aniquila as gradações intermediárias da aristocracia entre a massa do povo e o poder do Estado. Provoca, portanto, de todos os lados, a ingerência direta desse poder do Estado e a interposição de seus órgãos imediatos. Finalmente, produz um excesso de desempregados para os quais não há lugar nem no campo nem nas cidades, e que tentam, portanto, obter postos governamentais como uma espécie de esmola respeitável, provocando a criação de postos do governo. Com os novos mercados que abriu a ponta de baioneta, com a pilhagem do continente, Napoleão devolveu com juros os impostos compulsórios. Esses impostos serviam de incentivo à laboriosidade dos camponeses, ao passo que agora despojam seu trabalho de seus últimos recursos e completam sua incapacidade de resistir ao pauperismo. E uma vasta burguesia, bem engalanada e bem alimentada, é a idée napoleoniénne mais do agrado do segundo Bonaparte. Como poderia ser de outra maneira, visto que ao lado das classes existentes na sociedade ele é forçado a criar uma casta artificial, para a qual a manutenção do seu regime se transforma em uma questão de subsistência? Uma das suas primeiras operações financeiras, portanto, foi elevar os salários dos funcionários ao nível anterior e criar novas sinecuras.


O Capital [Volume 1, Capítulo 24, 6]

Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais, que têm de cobrir os juros e demais pagamentos anuais etc., o moderno sistema tributário se converteu num complemento necessário do sistema de empréstimos públicos. Os empréstimos capacitam o governo a cobrir os gastos extraordinários sem que o contribuinte o perceba de imediato, mas exigem, em contrapartida, um aumento de impostos. Por outro lado, o aumento de impostos, causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente, obriga o governo a recorrer sempre a novos empréstimos para cobrir os novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é formado pelos impostos sobre os meios de subsistência mais imprescindíveis (portanto, pelo encarecimento desses meios), traz em si, portanto, o germe da progressão automática. A sobrecarga tributária não é, pois, um incidente, mas, antes, um princípio. Razão pela qual na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente aplicado, o grande patriota de Witt o celebrou em suas máximas como o melhor sistema para fazer do trabalhador assalariado uma pessoa submissa, frugal, aplicada e… sobrecarregada de trabalho. A influência destrutiva que esse sistema exerce sobre a situação dos trabalhadores assalariados importa-nos aqui, no entanto, menos que a violenta expropriação do camponês, do artesão, em suma, de todos os componentes da pequena classe média. Sobre isso não há divergência, nem mesmo entre os economistas burgueses. Sua eficácia expropriadora é ainda reforçada pelo sistema protecionista, uma de suas partes integrantes.

O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um bom número de escritores, como Cobbett, Doubleday e outros, a procurar erroneamente naquela a causa principal da miséria dos povos modernos.


Crítica do Programa de Gotha [Capítulo IV]

Que, de fato, por “Estado” se entende a máquina do governo ou o Estado na medida em que ele forma um organismo separado da sociedade, por divisão do trabalho, mostram-no já estas palavras: “O Partido Operário Alemão reclama como base econômica do Estado: um imposto único e progressivo sobre o rendimento, etc.” Os impostos são a base econômica da máquina do governo e de nada mais. No Estado do futuro que existe na Suíça esta reivindicação está consideravelmente satisfeita. O imposto sobre o rendimento pressupõe as diversas fontes de rendimento das diversas classes sociais, portanto: a sociedade capitalista. Não é, pois, nada de extravagante que os financial reformers de Liverpool — burgueses com o irmão de Gladstone à cabeça — apresentem a mesma reivindicação que o programa.


Também sobre este tema:

Karl Marx: “Resenha: “O socialismo e os impostos”, por Émile de Girardin

Lenin: “Capitalismo e Tributação“.

Kim Il Sung: “Sobre a abolição do sistema de impostos”.

Flávia Benetti Castro e Gabriel Landi Fazzio: “O “Socialismo Tributário”: Imposto sobre Grandes Fortunas e a falácia de um sistema igualitário“.

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