Por Frederico Lyra de Carvalho
No sábado 18 de março de 2017, a associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (Amigas e Amigos da Comuna de Paris) organizou o seu já tradicional percurso pela cidade com o intuito de celebrar a data de aniversário do inicio da Comuna. Esse passeio desta vez aconteceu no horário da manhã.O percurso de uma hora e meia, iniciado na rua Château d’Eau, estava previsto para acabar na place de la République porém, devido a um outro evento, um comício da campanha do então candidato à presidência Jean Luc-Mélénchon que ocorreria ali mesmo na parte da tarde, o passeio teve que ser encerrado em uma praça ao lado, na frente da estatua do compositor austríaco Johann Strauss. Em 2018, o passeio do dia 18 de março aconteceu em um domingo, terminando no cemitério de Montparnasse. Neste dia evocou-se sobretudo a volta da Comuna no imaginário francês após o Maio 1968. Este último acontecimento, por sua vez, festejava o seu meio século. No 2016 o mesmo percurso havia sido ocorrido em uma sexta-feira e daquela fez no bairro da Butte-aux-Cailles, onde fica a sede da associação.
O que faz com que aproximadamente 100 pessoas se reúnam religiosamente todos os anos no dia 18 de Março para sair, muitas vezes em uma tarde chuvosa (e de neve) de um domingo, como em 2018 ou tendo o seu percurso atrapalhado por um evento eleitoral, desfilando pelas ruas de Paris empunhando bandeiras vermelhas e cantando em coro canções como Les Temps de Cerises e A Internacional? Em 2017, cantada várias vezes durante este percurso, na sua última entoação, como forma de encerrar o evento, A Internacional conseguiu finalmente silenciar os barulhentos policias que haviam sido designados para acompanhar o cortejo. No estado de sítio permanente em que oficialmente se encontra um país como a França não deixa de ser curioso ouvir aquelas pessoas cantando aquelas velhas músicas. Nos olhos dos que cruzam com aqueles estranhos seres, boa parte de cabelos brancos e com dificuldades de locomoção, percebe-se o estranhamento, como se cruzassem com fantasmas do passado. Os rostos se contorcem quando lidam com este bando de extra-terrestres acordando a cidade com aqueles cantos profanos. Ou talvez sejam espectros com seus canções de outro mundo.
Na voz daquelas pessoas A Internacional praticamente se transforma numa música instrumental pois a maioria absoluta dos que ali estão presente não conhece a letra dos versos da canção. Ela foi esquecida. Estes cantam apenas o seu refrão, nos versos cantam a melodia, talvez imaginando uma outras letra. Desta forma a música se atualiza na sua universalidade, a sua letra se torna virtual. Ninguém sabe o que os outros estão imaginando enquanto cantam aquela melodia sem letra mas, ao mesmo tempo, podem supor que haja uma empatia entre o que se imagina, pois se aquele outro ali está não pode ser por outra coisa que não o fato de partilhar a vontade de celebrar em coro a memória daqueles antepassados em comum.
Nesta segunda-feira 18 de Março de 2019 as amigas e os amigos da comuna de Paris vão estar desfilando pelo Quartier Latin.
A amizade e os laços afetivos que tem sido criado desde meados de novembro nas centenas de round points espalhados por toda a França talvez seja o eixo fundamental da força que mostram os Gilets Jaunes. A maior novidade do movimento está, possivelmente, no que está sendo feito e imaginado nestes locais. Normalmente meros lugares de passagem, eles se transformaram, de um dia para o o outro, em lugares de invenção e comunhão.
O filósofo italiano Giorgio Agamben, em um ensaio que tem como título O Amigo, entende a amizade como sendo também uma categoria política. Segundo ele, os amigos realizam uma “partilha sem objeto”[1], isto é, seriam como que um único ser dividido em duas faces não-idênticas a si mesmas. Duas faces heterogêneas na sua origem e com “uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito”[2].
Em uma intervenção pública nas ruas da cidade de São Paulo, durante as manifestações de Junho de 2013, o filósofo Paulo Arantes chamou a atenção para os laços de camaradagem – que “aparece aqui como transposição política da figura do amigo” – necessários, segundo ele, para a qualquer militância ou organização política cuja intervenção envolva correr “riscos reais”[3].
Parece que a questão que nos resta é: o que significa ser um(a) amiga(o) espectral de um acontecimento como a Comuna de Paris durante o movimento dos Gilets Jaunes?
[1]AGAMBEN, Giorgio, « O Amigo », in O que é contemporâneo e outros ensaios, tradução Vínicius Nicastro Honesko, Chapecó, Argos, 2009, p. 92.
[2]Idem, p. 85.
[3]ARANTES, Paulo, « Tarifa Zero e Mobilização Popular », https://blogdaboitempo.com.br/2013/07/03/tarifa-zero-e-mobilizacao-popular/, acessado em : 24 de março de 2017.