Por Terrence Myers, via Liberation School, traduzido por Bruno Sanata
Quando o rapper indicado ao Grammy Nipsey Hussle foi morto em março, Kerry Lathan, que estava coincidentemente na loja de roupas de Hussle no sul de Los Angeles para comprar uma camiseta, também foi baleado. Dias depois, gravemente ferido, Lathan foi preso. Lathan, que estava em liberdade condicional, foi acusado de violar a condicional por socializar com um conhecido membro de gangue – Nipsey Hussle.
Hussle era exaltado como exemplo de superação fora do mundo das gangues. Ele era celebrado por seu engajamento e trabalho filantrópico. Uma rua ganhou seu nome, e seus trabalhos de caridade no sul de Los Angeles entraram para os Registros oficiais do Congresso. Ainda assim, para o Departamento Correcional e de Reabilitação da California, Hussle ainda era membro da Rollin 60’s Crip, gangue de sua juventude. Estar meramente próximo a ele trazia esta associação.
A ‘guerra às gangues’ da polícia é uma guerra em comunidades inteiras
A prisão de Lathan só é incomum porque o membro da gangue associada à acusação que ele estava associado era uma celebridade. A juventude negra e latina é encarcerada todos os dias em acusações de “associação a gangues”, que são igualmente instáveis.
Da Casa Branca à cadeia local, oficiais da lei afirmam que a ‘guerra às gangues’ articuladas é para proteger a população e reduzir a criminalidade. Este não é o caso. A ‘guerra às gangues’ é na realidade uma iniciativa de aplicação da lei em larga escala, sustentada por um policiamento racista que alimenta o encarceramento em massa. Ferramentas como o banco de dados de gangues e ataques de gangues são utilizados pelo país para perseguir amplos setores da juventude, muitos sem qualquer afiliação a gangues.
A polícia rotula comportamentos sociais e bairros supostamente associados a gangues, então prendem e penalizam de modo desproporcional a juventude por atividades criminosas de baixo porte. Esta juventude encara penas endurecidas e maiores sentenças devido às acusações conspiratórias de associação criminosa, e ficam presas ao sistema de justiça criminoso. Quando são soltos, ainda correm o risco de ser presos novamente, sujeitos à vigilância devido a seu passado de “associação a gangues”.
A injusta “guerra às gangues” impacta negativamente aos indivíduos, famílias e a comunidade muito depois das sentenças terem sido cumpridas. É uma forma de controle social, e um obstáculo para a organização da comunidade.
Banco de dados de gangues usado para difamações racistas
Ao mesmo tempo, a grande mídia rotineiramente utiliza a “associação à gangues” para retratar as pessoas como inerentemente criminosas e culpadas de qualquer acusação criminosa.
O presidente Trump se referiu aos membros de gangues como “animais”. Esta foi uma tentativa de rotular imigrantes sul-americanos como perigosos membros de gangue, e angariar apoio para suas políticas de imigração racistas. Estudos mostram que imigrantes são menos propensos terem comportamentos criminosos do que cidadãos nascidos nos EUA. Em 2010, homens estadunidenses nascidos com idade entre 18 e 39 anos com menos acesso à educação apresentaram um nível de encarceramento de 10,7%- mais do que o triplo dos 2,8% do nível entre homens estrangeiros nascidos no México, e cinco vezes maior do que os 1,7% do nível apresentado entre homens estrangeiros nascidos em El Salvador ou Guatemala.
O que é uma gangue?
A palavra ‘gangue’ abrange um amplo conjunto de grupos. Por exemplo, na década de 1920, quando negros residentes em Los Angeles desafiavam as práticas racistas e restritivas nas políticas habitacionais, educacionais e de emprego, eles eram atacados fisicamente pelos racistas. Clubes negros de rua se formaram para proteger a juventude negra da persistente violência branca direcionada à comunidade negra.
A pobreza e a marginalização social levaram à formação de gangues como a Rollin 60’s Crips de Nipsey Hussle em Los Angeles e em outras cidades nos anos 70. Estas proviam socialização para a juventude que crescia no mesmo bairro e encarava os mesmos desafios sociais. Muitos recorriam a atividades criminosas para enfrentar a desigualdade econômica que encaravam. Isto levava frequentemente à atos violentos e prejudiciais aos membros de suas próprias comunidades. Um exemplo recente é o assassinato de Lesandro ‘Junior’ Guzman-Feliz, de 15 anos de idade no ano passado, ao confundirem sua identidade durante um acerto de contas entre duas gangues rivais no Bronx, Nova York.
Estes atos violentos e prejudiciais não devem apenas ser minimizados, como também ser condenáveis. Contudo, a ‘guerra às gangues’ promovida pelo Estado, não reduz as mazelas causadas pelas gangues nas comunidades, muito menos interfere na falta de políticas habitacionais, educacionais e de empregos que formam e fazem operar as gangues.
O banco de dados das gangues de Los Angeles: mal utilizados e cheios de erros
O banco de dados de gangues, é uma lista de pessoas acusadas de estar envolvidas com gangues. Frequentemente, apenas oficiais da lei tem acesso aos nomes do banco de dados. Com frequência, os civis só descobrem que estão no banco de dados depois de terem sido acusados de algum crime que os policiais afirmam estar ligado à associação com gangues.
A falta de transparência gera erros. Em 2016, o banco de dados de gangues da Califórnia, Calgang, revelou-se estar sendo utilizado de forma incorreta e imprecisa. Haviam crianças mais jovens que 1 ano de idade na lista, e nenhuma delas sequer foi removida da lista.
Muito mais grave, um processo recente revelou que desde os anos 90, o Departamento de Polícia de Los Angeles, que tem acesso ao banco de dados, esteve associado a “grupos gangsteres violentos” de deputados que fomentavam violência nas comunidades que alegavam “servir”, e praticou outras atividades de gangue.
Listas de gangues do Texas deixa a juventude isolada da comunidade e de seus amigos
O Índice de Inteligência das Gangues do Texas lista supostos 100 mil membros de gangues, dos quais os nomes estão disponíveis apenas aos agentes da lei. Enquanto a maioria dos membros de gangues são de ascendência mexicana, a base de dados pode ser usada para encurralar qualquer pessoa.
Em 2007, Steven Powers, que se identifica como branco, tinha 15 anos de idade quando foi preso sob acusações de envolvimento com o crime organizado. Powers cresceu em um bairro pobre e predominantemente de imigrantes mexicanos, onde gangues são um grupo orgânico da juventude do bairro. Ele não sabia que a Texas Gang Unit estava vigiando a ele e seus amigos de infância, e que ele fora colocado no banco de dados de gangues.
Powers teve liberdade condicional garantida ao ser solto. Ele informou ao reporter que ao estipular sua condicional, a ele não estava associada nenhuma relação com membros de gangues ou infratores, isolando Powers de sua comunidade e dos amigos de infância.
Mesmo após o fim da condicional, Powers se preocupava em ficar longe de seus amigos e vizinho. Se fosse visto junto a alguém acusado de ser membro de gangue, havia risco de ser preso novamente. Se preso novamente ou acusado de qualquer crime, sua condenação anterior seria endurecida em qualquer caso contra ele.
Sobre o banco de dados, Powers diz, “eu sinto que é utilizado de forma escusa e oportuna porque eles não precisam de muitas provas. Você não precisa estar filiado a alguma gangue. Se eles podem estabelecer que estivemos juntos, eles podem alegar premeditação. Eles usam o banco de dados de gangues como uma arapuca para encurralar as pessoas no sistema prisional para ter sobre elas controle social.”
A história de Powers não é incomum para a juventude país afora.
A lista de Nova York costumava devastar comunidades ‘de cor’
O banco de dados de gangues do departamento de polícia de Nova York, está disponível também apenas para as forças policias e da lei. A NYPD frequentemente recusa solicitações da Lei de Liberdade de Informação vindas de cidadãos que procuram saber se estão na lista. É dito, no entanto, que 99% das pessoas na lista são negras ou latinas.
O critério para estar no banco de dados é amplo e ambíguo. O delegado Dermont Shea da NYPD depõe diante de um encontro do conselho municipal em junho de 2018, afirmando que indivíduos podem ser acrescentados ao banco de dados se estes “admitem” pertencer a uma gangue ou se eles se identificam como tais por “duas fontes confiáveis e independentes.”
Você também pode ser adicionado ao banco de dados se você estiver em um local conhecido por ser território de alguma gangue, associação com membros de gangues, se manifestar sobre em redes sociais, ter cicatrizes ou tatuagens ligadas à gangues, ou se for visto utilizando “símbolos ou cores de gangues”. A NYPD considera como cores de gangue: preto, dourado, amarelo, vermelho, púrpura, verde, azul, branco, marrom, caqui, cinza, laranja ou verde-limão.
Com este critério geral, é fácil para que bairros inteiros sejam inseridos no banco de dados com nenhuma real evidência de que atuam em gangues.
O banco de dados de gangues está sendo utilizado para substituir outras práticas da NYPD, algumas notadamente inconstitucionais. Mas o novo cerco às gangues aumentou a severidade das acusações contra a juventude preta e negra, penas que aumentam significativamente o tempo das sentenças.
Josmar Trujillo, organizador junto à Coalizão para o Fim das Janelas Quebradas, afirma que o prefeito Bill de Blasio “fez do policiamento às gangues um dos pilares da reforma da justiça criminal, autuando desde acusações de importunamento de baixo impacto nas ruas, migrando para atuações conjuntas com as autoridades federais, e processos que na realidade possuem muito mais impacto e devastam comunidades ‘de cor’.”
A Bronx 120
Assim era chamada a “maior operação contra gangues na história de Nova York”. Em abril de 2016, 700 oficiais de polícia, o Departamento de Segurança Nacional e agentes do FBI invadiram o conjunto habitacional Eastchester Gardens, no Bronx. Cento e vinte pessoas foram presas, quase todos da juventude negra e latina. A invasão foi baseada em informações obtidas pela vigilância da NYPD, vindas daquele banco de dados de gangue.
A NYPD descreveu a invasão como uma vitória em grande escala contra a atividade criminosa de alto nível das gangues, afirmando que aqueles que foram presos eram de gangues rivais envolvidas em pelo menos oito assassinatos. A mídia retratou a história com destaque, tomando todas as palavras da NYPD como verdade. Cobertura no Daily News, New York Post, New York Times e em noticiários locais, foi a “combinação tóxica de uma condenação crédula e racista” da juventude, como assassinos e traficantes de drogas, de acordo com a FAIR.
Mas não era verdade. Dois terços dos infratores não foram condenados por crime violento algum, e mais da metade dos indiciados nunca foram acusados por promotores de serem membros de gangue.
A maioria dos presos foram acusados de envolvimento em atividades criminais de pequeno porte, alçadas por acusações da conspiração contra as gangues. Acusações que seriam classificadas como contravenção, se tornaram delitos relacionados à atividade das gangues.
As acusações de envolvimento com gangues eram aquelas da “conspiração” amparadas pela Lei de Organizações Corruptas e Enganosas (RICO), lei federal aprovada em 1970 para combater a Máfia, e não grupos de bairro. Estas acusações são amplas e difíceis de enfrantar, porque provando que indivíduos “conspiraram” com outras pessoas acusadas de crimes é mais fácil para os promotores do que provar que eles cometeram tal crime.
Alguns réus já haviam sido encarcerados quando a invasão ocorreu, porém tiveram suas penas de crimes anteriores conectadas à conspiração das gangues.
Muitos dos réus eram de famílias pobres da classe trabalhadora, e não podiam pagar por advogados privados para se defender. Cento e treze dos indivíduos foram condenados, aceitando realizar um acordo judicial para evitar o julgamento onde iriam enfrentar mais tempo de sentença prisional. Duas pessoas escolheram ir a julgamento e foram condenadas. Elas receberam penas significativamente maiores do que aquelas que se declararam culpadas.
O que foi feito para parecer uma interceptação de uma grande conspiração de criminosos de alto nível, era na realidade o cerceamento da juventude preta e negra que utilizavam da socialização como meio para driblar a pobreza e a marginalização no bairro do Bronx.
Inserido no banco de dados de gangues por causa de uma música
A NYPD também tem a juventude do Brooklyn como alvo.
Em agosto de 2015, Ronald Williams foi preso com quatro acusações de tentativa de homicídio, quatro acusações de conspiração e posse de armas de fogo. Williams foi condenado e sentenciado a 100 anos de prisão, embora a acusação não tivesse nenhuma evidência física ou de DNA contra ele, e muito embora Williams não estivesse no bairro onde os crimes aconteceram.
Rotular Williams como um “violento líder de gangue” foi suficiente para que o sistema prisional passasse por cima dele. A NYPD, o promotor público e a 76ª Delegacia de polícia se louvaram como salvadores da comunidades que afastaram Ronald Williams das ruas. O que eles causaram na realidade, foi um dano irreparável à comunidade e à família.
Williams nunca esteve em uma gangue. A gangue que ele supostamente pertencia sequer existia, de acordo com sua irmão, Shaniqua Pippin.
Williams estava no banco de dados de gangues por estar com seus amigos e um rapper local que escreveu uma música chamada “Oww Oww Gang”, sobre seus amigos do bairro e ficar com garotas. A outra acusação de envolvimento com gangues incúiram ele ter jogado futebol ou basquete com seus amigos do bairro, e ter dito ‘oi’ e tirado fotos com seus amigos e vizinhos, disse Pippin.
Isto constituia envolvimento com gangues para a polícia da 76ª delegacia de polícia, e os oficiais começaram a importunar Williams. Em uma dessas situações, um policial bateu no rosto de Williams com sua arma por que ele estava passando pelo saguão do prédio onde morava.
Pippin afirma, “Então, basicamente, porque ele e seu grupo de amigos eram próximos, e um deles era rapper, que escreveu uma música chamada “oww oww gang”, e eles moravam nos conjuntos habitacionais em Gowanus, isto automaticamente fazia deles suspeitos do banco de dados de gangues apesar deles serem adolescentes inofensivos.”
Relações sociais criminalizadas, comunidades traumatizadas
Através de invasões e bancos de dados de gangues, a aplicação da lei está criminalizando as relações sociais e entre família da juventude negra e latina e traumatizando comunidades inteiras, enquanto não tornam os bairros seguros quanto antes.
Por exemplo, depois da invasão sob a gangue Bronx 120, moradores do bairro que não foram presos ficaram traumatizados com o impacto e se sentiam inseguros em suas próprias casas.
No caso de Ronald Williams, o conjunto habitacional de Gowanus foi impactado negativamente por sua prisão e encarceramento. Pippen disse, “equanto esteve em casa Ronald era o apaziguador. Ele é respeitado por todos por sua integridade e portanto se ele pedisse a alguém que não fizesse algo estúpido, havia grandes chances deste alguém não fazer. Agora, não há nenhuma voz alta o suficiente para apaziguar sua tristeza, raiva ou qualquer emoção que vá em direção da combatividade.”
O impacto dos ataques à gangues e o banco de dados de gangues não para até que as sentenças sejam proferidas e realizadas. Os acusados dos delitos tem problemas em encontrar emprego, casa e em receber ajuda financeira para entrar na faculdade. Os que são soltos na condicional e voltam à comunidade irão carecer de amparo social porque delitos impedem a socialização com outros infratores ou suspeitos de serem membros de gangue.
Daryl Whitley, condenado como membro de gangue em 2016 como parte dos 37 indiciados por associação à gangues disse, “eles não querem que você tenha amigos. Eles não querem que você tenha amigos de amigos.”
Moradores locais tomam cuidado redobrado com quem interagem. Powers disse, “eu tinha medo de falar com qualquer pessoa porque você não sabe quem é membro de gangue aos olhos da polícia. Eu tinha medo de chamar a mãe do meu melhor amigo ou de jogar basquete na rua. Eu tive que pisar em ovos nos primeiros anos.”
Porque bancos de dados de gangues e invasões não são uma solução
Baseado nos resultados dos bancos de dados de gangues e suas incursões, está claro que essas iniciativas não são soluções para resolver a violência das gangues as quais se objetiva atingir. A violência das gangues pode ser erradicada ao combater a pobreza e a marginalização, provendo educação, serviços de saúde e habitação segura.
Mas o Estado não está fazendo isto porque seu verdadeiro alvo não é a violência das gangues. O que eles temem e procuram destruir é a coesão da comunidade e as organizações locais. Grupos de pessoas marginalizadas, se unindo contra o sistema capitalista, supremacista, patriarcal e homofóbico podem ser poderosas ferramentas de resistência.
O Partido dos Panteras Negras, por exemplo, foi considerado uma gangue pelo FBI. Os Panthers implementaram serviços sociais, como programas de alimentação e uma escola gratuita, de encontro às necessidades da comunidade, enquanto organizavam a autodefesa. Eles eram vigiados e cercados pela lei, e eventualmente foram derrotados, porque organizaram os pobres e a classe trabalhadora.
Uma comunidade forte e unida e a classe trabalhadora organizada é o que precisamos agora. A primeira tarefa será a de extirpar das comunidades e cidades, a maior, mais violenta e corrupta gangue de todas: a polícia.