Por André Queiroz
Contar o que se fez esquecer. Contar e cantar o que os doutos driblaram, desde a Cátedra, desde os corredores da Academia e seus imprescritíveis crimes de lesa humanidade (a burlesca história oficial), desde a máquina publicitária, perniciosa, de propaganda ideológica a que, eufemisticamente, se tem o costume de chamar de veículos de informação. Contar em cordéis sob o equilíbrio tênue de varal, pregador, mimeógrafo para que não se perca aquilo que nos é próprio – tradição rastos pegadas acúmulos de lutas e de lutos, de ações plasmadas ao estudo critico e às vanguardas que orientam para que não se esteja órfão de saber e condenado a começar sempre do zero. Para isto o contar do cordel.
Certa feita, diante a ignomínia prosaica do opressor e sua diminuta comitiva de assalto, o professor se lhe volta a palavra-senha do justiçamento popular: “Estamos todos sob o efeito de fortíssimo psicotrópico”. Signo sinal de que se avança na tomada das consciências que se rebelam? Indicativo inequívoco de que a impaciência carrega consigo legítimos direitos de afronta? Convocatória comezinha ao cenáculo da desobediência civil? Mas qual? Sejamos prudentes, sigamos por partes, sob o risco da bola fora que não gera liga, que não perfaz sequer que rimas de ocasião. É que por vezes, tantas vezes, o cordel do fogo encantado não desmonta sequer a gagueira de um trava-língua. Cordéis que se prezam são como as linhas de fiandeiras: entram por caminhos de pontos redondiços, esgarçam diques de contenção e esquecimento, deslegitimam a oficialidade dos relatos hegemônicos que obstruem, e tomam a si o dever histórico de contar.
Contar o que se fez esquecer. Contar e cantar o que os doutos driblaram, desde a Cátedra, desde os corredores da Academia e seus imprescritíveis crimes de lesa humanidade (a burlesca história oficial), desde a máquina publicitária, perniciosa, de propaganda ideológica a que, eufemisticamente, se tem o costume de chamar de veículos de informação. Contar em cordéis sob o equilíbrio tênue de varal, pregador, mimeógrafo para que não se perca aquilo que nos é próprio – tradição rastos pegadas acúmulos de lutas e de lutos, de ações plasmadas ao estudo critico e às vanguardas que orientam para que não se esteja órfão de saber e condenado a começar sempre do zero. Para isto o contar do cordel.
Não foi o que um Zé Lins do Rego nos sugere em seus romances do Ciclo da Cana de Açúcar? Que uma coisa seria a estória de Carlinhos, neto de Zé Paulino, dono de quantos engenhos e de todos os mundos; e Zé Lins nos contará da derrocada deste mundo de monocultura latifundiária, e nos fará seguir os sustos e assaltos do tempo a girar em crises cíclicas o processo de produção; Zé Lins contará das terras do avô sendo repartidas por antigos capatazes, que serão meros sicários de intermezzo e meia pataca até que se lhes chegue a sanha concentracionária e hiper-produtiva da Usina que a todos mói. Todavia, Zé Lins sabe que a Usina não moerá da mesma forma a todos. Sabe, e nos conta que Carlinhos não dorme nem nunca se deitou em cama de prego; sabe e nos contou que Carlinhos não tem as solas rachadas dos pés de eito. Que Carlinhos crescerá doidinho, bangüê, que envergara sobrenome distintivo quattrocentão. Que se tornará doutor nas patranhas da tradicionalíssima Faculdade de Direito do Recife, e assinará Carlos de Melo – bacharel e já de partida para a vida citadina. Carlos de Melo seguirá seu rumo, mas não está e nunca esteve sob o êxodo que se lhe tornasse refém. Sem balança de pago ou moeda de troca nos fluxos correntes (e sanguíneos) do mercado de ações. Está aí uma das metades da balança na que pende em desequilíbrio o jorro de classe.
Noutro filo, saído às caladas da noite de chacais, partirá Ricardo, moleque da bagaceira, um aquele que já não brinca e só trabalha; tece destece sobe desce, Sísifo oprimido a produzir das mãos calosas a casimira do senhorio, ou o “excedente de sua bonança” na troca em paga por pedaço insalubre de carne de Ceará. Zé Lins nos conta que Ricardo segue pro Recife, não às escolas do direito fundiário, mas à chapa quente dos tornos e da periferia, e Ricardo leitor das mãos de Paulo Freire, irá aos poucos vendo e percebendo que sua sorte é tributária da glória dos que lhe tripudiam, e Ricardo perceberá que sua marmita fria de salmonela é a extravagância vegânica que lhe obstrui, encarquilha e pisoteia. E Ricardo se organizará. Procurará nas redondezas outros que, como ele, sofrem do tacão de ferro da ordenança. Não se bastará sozinho sob os indicativos meritocráticos. Não quererá o destaque das horas extras e dos bônus de participação com direito a impostura de ter seu rosto na estampa barata de funcionário do mês. E Ricardo se organizará. Zé Lins do Rego nos conta que tão logo os homens do pelotão virão levar Ricardo e seus companheiros para uma larguíssima temporada de verão infame em Fernando. De Noronha. Não a um resort para visitação temperada de corais e tubarões de cabeça de martelo. Mas ao cárcere de segurança máxima onde as ratas e a bóia fria não deixarão em sossego de contemplação a um tipo de “tamanha periculosidade”. Zé Lins nos conta também esta metade outra da tessitura dos relatos. Como quem move peças e desestabiliza certezas de prontidão.
É que, parece-nos, contar é destravar a língua parada no vernáculo verticalizado. É demovê-la de ali como quem lhe toma de arrasto e se vai para os rincões profundos no semeio das gentes. Trabalho de base, elos de formação, pelos quais o que se esgarça é o horizonte de relações naturalizadas, des-historicizadas, que teimam em insistir aos incautos que é da natureza intestina dos homens o que não passa de arbítrio inoculado. O cordel canta e conta. O repente zomba do estático e reclama a condição dialética da historia.
…
Voltemos à fala desbravada do professor de Bacurau, o filme de Kleber Mendonça Filho & Juliano Dornelles. Fala que parece evocar uma bravata pestilenta, desestabilizadora e encantada. Atente-se leitor que utilizamos da condição de duvida, ou d’alguma desconfiança. A condição de bravata, todavia, é inequívoca. Agora, que ela seja desestabilizadora de fato é o que fazemos questão de manter em suspeição critica. Mas resgatemos a fala-caco, litúrgica? Messiânica? Fala-catapulta-propulsora – que vá se saber se abre de fato as ondas turvas de uma Seara Vermelha, ou que vá se saber se é tiro de largada em festim a evitar “queimadas à partida”; mas qual esta fala senão a estapafúrdia sentença saída da boca do professor: “E que as gentes estão sob efeito de fortíssimo psicotrópico”. O que será que pode um chamamento assim? O que será quer dizer este “brado xamânico”? Será que subtexto prescritivo de potencial fármaco-operante? Será de um receituário de performance pós moderna – a supor ritos iniciáticos e bônus acumulativos para depois da onda, o seu revés moral? Ou será uma espécie de contra-anuncio de energético a fornecer asas à imaginação, ou, quem sabe e ainda, à inércia operacional do povoado? E se dizemos “contra-anuncio” é porque, com toda certeza, o elemento de composição é não manipulado, in natura, uma planta de poder, um caule de compromisso, uma raiz combustiva, a erva da danação. E “eita que agora vai!” – deve ser ‘a deixa’ que ilumina o set em povorosa. Será o levante da barricada. Será a grita que desperta de tamanho torpor às gentes “com a cara dócil e cordata”. Povoado que, até então, se retrai quando se lhe fustiga os poderes de carne e osso; povoado que se amesquinha na coleta do que se lhe oferece aqueles que o espezinha; povoado integrado nas facilidades da comunicação que só mesmo smartphones seriam capazes de proporcionar tal faceta comunitária e inclusiva. Mas que agora, como no anuncio do professor, será o povoado revirado de sob o efeito balsâmico da planta, e quem sabe se de Carlos Castañeda sairá um Guevara capa e espada, sem mote e sem razão, sem ferramentas conceituais e sem inscrição histórica, a embaralhar signos soltos, alegorias frágeis, bastardias inglórias?!
O professor não terá cordas, cordéis, regência à orientação das crianças (e companheiros) que todos somos. Sua tarefa de narrador está em desuso. O museu da cidade envelhece a olhos vistos e embolora a movença da historia sob o seu seqüestro museificante e atonal.
Então onde e como o professor-arauto tomará as rédeas curtas de seu dever histórico? Bacurau, o filme, argumento ‘escaleta’ roteiro, não lhe dá agulha e linha para encetar plano de vôo, ordem do dia, escala de valores, avanços táticos, recuos estratégicos. Pelo contrario, ele, o professor, parece disparatado, sem sinal, desnorteado. Capenga. Incerto. Deslocado. Precisaria de uma bússola de iodo aprumado, mas lhe faltam mapas de origem, mitos longitudinais, cartas de navegação, brevê de comando, e lucidez analítica. Em vão busca os algoritmos que lhes “arremetam” de volta ao seu ponto de inércia, grau zero, cu de mundo, escala glacial de latitude, zona temperada de cordialidade dos trópicos, aridez cosmética de luz não estourada e de revérbeis sonoros plasmados à ilha de edição, uma sopa de letras geográficas, mas desconfiamos que o que lhe falta de fato é um bom punhado de historia como canteiro de obras e chão de fabrica. Na sua concretude material, contraditória e orgânica. Ao professor-personagem, com toda certeza, isto lhe falta. Não lhe coube este repertório de classe. Ao filme, como um todo, sem quaisquer duvidas. Aos espectadores, para os quais ele se lhe volta, da historia o que coube foi apenas os arremates de direção de arte. Uns retratos maltrapilhos do cangaço. Espécie de vírgula em lugar de Virgulino. Espécie de sopro em afronta de Corisco. Talvez uns arremedos de banditismo porque não seria o caso exibir argumentos à Rui Facó. E é de tal modo esta falta, a da historia – pequena mas precisa, imensa-imersa pois que a nossa, que nos perguntamos pelo quê este cinema se bate?
Na certa que não é, tal cinema no seu quê-fazer, instrumento guia para um vergar-se de nós sobre nós mesmos, sujeito coletivo, país de entranhas vicejadas, leitura de nossa condição dependente periférica subalternizada no Sistema Mundo, tomando das cordas, ligando os pontos soltos e fragmentados na construção de um sentido tal como dissemos do cordel. Sentido de emancipação libertaria. Nada que isso interesse a este cinema de que Bacurau é indicio. Tampouco para nos fazer ver por de detrás das coxias e das telas quentes dos noticiários nos quais o Brasil que se apresenta traz o toque de Midas do escamoteio: faz-se “grande ou pequeno” conforme o lugar na fila da chancela imperialista dos grandes circuitos de produção-distribuição-exibição, tríplice hélice monopólica. Bacurau não é peça de memória para uso diário. Parece substancia pré-cirúrgica que amortece os órgãos, deprime a pleura e os pulmões, em anestesia. Diz-se desta condição a necessidade de entubar o que agoniza para que se evite os riscos do vir a óbito. Condição fronteiriça dos conformes e da naturalização aleatória e arbitrária do que for histórico, dinâmico e processual.
Talvez se vá dizer: não é para tal monta o cinema circuito. Coisa passadiça para a hiper fluidífica maquina de retro-alimentação de investidores. Na certa que não ganharia pitchings ou Grandes Prêmios Brasil.
…
Todavia nos restam algumas dúvidas. Coisas que não se disse. Coisas que foram deixadas ao silêncio. Vejamos apenas uma delas. Qual o quê desta batalha que se encena no filme Bacurau? De que matéria é composta esta peleja de vida e morte? O que encarna tal contenda? Trata da fúria fundiária com seus capatazes, volantes, coiteiros, soldados amarelos ao encarno das funções de opressão e grilagem? Nada. Nenhuma pista. Será se trata de guerra de baixa extração e preventiva a ensaiar posterior ocupação de território? Nada. Nenhuma palavra. Apenas se trata da violência desalmada descarnada desmaterializada. Da violência clichê que sugere personagens bárbaras, padrões mal ajambrados de esteriótipos psicologizantes. Espécie de porta giratória pela qual tramitam juízos morais e analise de caráter – grotescos e infantilizadores. Ante sala de um terrorismo de idéias através do qual se faz turva a inesgotável luta de classes como móbil de irredutíveis e profundos conflitos deste Brasil lindo e trigueiro. Bacurau não trata disso. A luta de vida e morte tem alíneas de game virtual e gratuito. Espécie de paintball para fetichismos de players hiperativos. Talvez para isto lhe sirvam, os habitantes do povoado, a adição. Faz liga, sacoleja o esqueleto de toxina mediática. Fosse para o bom combate libertário e emancipatório, o povo autômato precisaria de muito mais do que o imprimatur do alucinógeno despejado pela fala do professor – teria de saber a quem esta batalha que se constrói a sua revelia.
Kleber Mendonça & Juliano Dornelles não nos dá estas pistas. Pelo contrario, inventam peça de montagem, legos de agora agorinha, jogos de armar e disparos e deleites e ‘deletes’ – sem terra, sem corpo, sem razão, sem nada. Claro está que com a prata bem vinda dos anunciantes. Claro está que com a pista dos prestamistas e investidores que enxergam lá a frente algum tapete vermelho da fama e da forma que sobreleve o produto fílmico ao mercado de ações futuras. Coisa rápida, lépida, fugaz, instrumental. Ou numa só palavra, desidratada. Sem viço ou visgo. Talvez asséptica apesar de todo sangue. E talvez por isto mesmo, o excesso, o excedente que escorre pela torneira e pelo ladrão.