A ideia de futuro e o futuro da ideia (de comunismo)

Por Germano Nogueira Prado*

Uma proposição comum, simples e verdadeira é a de que, para pensar e(m) fazer seja o que for, mas em especial para pensar no futuro, precisamos “ter boas ideias”. “Em especial no futuro”, porque nossa tendência mais imediata, ou comum, é compreender o futuro como a dimensão do tempo ainda aberta a transformações, a mudanças, à contingência, à alteração; ao que vem a ser outro, portanto – e as ideias vêm à luz, em geral, para dar um encaminhamento outro a uma questão, outro em relação ao que ela já tinha tomado até então. O passado, por sua vez, seria o fechamento, aquilo que não se pode mudar: é uma lição que vem pelo menos de Aristóteles, para quem nem os deuses poderiam mudar o passado. O presente, por sua vez, em certa medida também pode ter essa propriedade, a abertura. “Em certa medida”, porque talvez isso só possa se dar apenas se não compreendermos o presente em sentido estrito como o hic et nunc, o “aqui e agora” maximamente abstrato próprio à primeira figura da consciência da Fenomenologia de Hegel ou ao pórtico, o limiar entre dois caminhos infinitos no Zaratustra. Para que seja abertura, e não um evanescente sim e não entre abertura e fechamento, o presente tem que se espraiar pelas duas outras dimensões do tempo: é assim, por exemplo, que o “tempo presente” é o tempo de uma época, a contemporânea. Nesse caso, passado e futuro são outras épocas, que compartilham a característica de ausência, mas uma ausência que já foi – como o nascimento – e a outra a que há de vir – como a da morte, enquanto o presente é aí o não ausente, o que se demora entre o nascimento e a morte (de uma pessoa, de uma época), isto é, o vivo (mas também o imortal, talvez o eterno, e certamente o não morto, o zumbi).


Mas essa não é a única maneira de compreender a noção de futuro, passado e presente. Se mantivermos a distinção no campo da ausência e da presença, mas se adicionarmos aí outra divisão, aquela entre o horizonte (ontológico) de possibilidades e o que realiza (onticamente) e em maior ou menor medida essas ou algumas dessas possibilidades, é possível (!) compreender o passado e o futuro, a ausência que foi e a ausência por vir, como aquele horizonte mesmo de possibilidades e o presente como o que se apresenta, aparece no interior desse horizonte. Sob esse aspecto, todavia, passado e futuro são igualmente uma e mesma ausência: a do horizonte que recua para dar as bordas (infinitas) do aparecer da realidade. O passado é como o futuro, ausência, e o futuro é aí literalmente o passado, como sempre foi, aliás: em sentido rigoroso, o futuro é o que nos precede, o que vem antes de nós, como o Cristo nas palavras de João Batista: “Este é Aquele de quem eu disse: Ele, o que vem depois de mim, passou adiante de mim [tem a excelência; mais poderoso: Mateus, 3:11], porquanto já existia antes de mim” (João, 1: 15, 30).

Dentre as consequências dessa compreensão está a abertura de um horizonte para pensar que o passado, enquanto essencialmente possível, possa ser sim modificado. Mais, ainda: a rigor, nenhuma mudança radical tem lugar no presente: o seu lugar é o passado, é o futuro, o horizonte mesmo onde um presente insiste no retorno monótono das mesmas mudanças, das mesmas novidades. Dessa perspectiva, a fascinação pelo presente — muito comum em política, do pragmático mais rasteiro ao isentão mais cético — não deixa de ter um componente fundamentalmente conservador. À diferença da monotonia conservadora do presente, o passado e o futuro guardam o poder do que é novo de verdade. Sempre aí como horizonte infinito que dá limites ao que se faz presente, é nessa eternidade que se pode buscar algo como uma eterna novidade. É esse passado prenhe de possibilidades, prenhe de porvir, é essa eternidade que guarda a possibilidade do novo — é isso que dá o sentido à palavra “ideia”, desde a ou pelo menos na sua origem.

Platão foi quem deu cidadania filosófica à noção de “ideia” – e, talvez, mais ou menos no mesmo movimento, deu status de pensamento à própria filosofia. Costuma-se mesmo dizer que “a teoria das ideias” ou “hipótese das ideias” é o núcleo de sua contribuição filosófica – contribuição esta que estaria na base da corrente de pensamento que ficou conhecida como “idealismo”. Grosso modo, o “idealista” defenderia que o real, a verdade, é fundamentalmente constituída de ou pelas ideias. As ideias, por sua vez, seriam o inteligível (em sentido eminente), o objeto próprio do pensamento, em oposição ao sensível, objeto dos sentidos – oposição que por vezes liga também à ideia as noções de imutabilidade, eternidade, mesmidade, identidade, talvez mesmo necessidade e absolutez, ligando então as noções (opostas) de mutabilidade, transitoriedade, diferença, e certamente contingência e relatividade. Na (assim chamada) modernidade, (que teria sido) inaugurada por Descartes, ou mesmo já na Idade Média, quando as ideias passaram a ser (expressamente) compreendidas como entidades na mente de um sujeito – nós mesmos ou Deus –, abriu-se o caminho para pensar se há correspondência entre as ideias e o mundo “material”, “real”, externo a elas, de modo que idealistas passaram a ser (também) aqueles que acreditam que não há e/ou não é possível provar que há um mundo externo a nós, de tal sorte que o sujeito tem acesso (primário, certo e seguro) tão só ao que se lhe apresenta “no” espírito ou “na” alma, “dentro” da mente — tão só às ideias, pois.

Essa migração das ideias do mundo (ou, ao menos, do “mundo” inteligível, ou seja, do mundo que faz sentido de verdade) para o interior da mente talvez ajude a explicar porque, caso se queira “imaginar”, com Platão, “o futuro da comunidade” não é exatamente a noção de “ideia” que vem para primeiro plano, mas uma assim chamada — mas não por Platão, mas talvez não sem alguma razão — “cidade ideal”. Com efeito, é comum os olhares se voltarem aqui para a “cidade reta e boa”, “feita com lógos” na República, a “utopia” avant la lettre de Platão. Em linhas bem gerais, temos aí uma comunidade configurada sobre um território comum segundo três classes divididas não pela propriedade dos meios de produção, mas sim por sua função, que cobririam as três funções precisas para uma boa comunidade: a produção do que serve para satisfazer as necessidades materiais vitais (comida, bebida, vestimenta, moradia), a defesa e o governo — estes dois últimos, subdivisões de uma mesma classe que responde pelo comum na cidade reta e boa, a dos guardiães.

Por sinal, a questão do comum e da propriedade, central onde quer que se pense em comunismo, é também o fulcro do comunismo de Platão. Com efeito, a ausência de propriedade privada e a comunidade de bens, mulheres e filhos são preconizadas como elementos fundamentais na República para o bom governo dxs guardiães. O que não fica tão evidente (sobretudo a partir do livro V) é se essa comunidade sem propriedade privada vale tão só para os guardiães e as guardiãs, sendo permitida a propriedade privada entre os produtores, ou se seria válida para a comunidade como um todo. Mesmo sem entrar nas razões textuais e teóricas que sustentariam uma e outra possibilidade é possível ver que elas implicam um certo rearranjo da economia e da política. Destaco uma ou duas consequências em cada um dos casos.

Se a comunidade de bens e a proibição da propriedade privada vale só para os guardiães, então teríamos uma espécie de divisão entre política e economia. De fato, se a política é o campo que responde pela repartição do comum e o governo da comunidade como um todo, então aos guardiães seria confiada a política. Os produtores estariam, por sua vez, confinados à economia, se é que esta é o campo em que se dá a produção do que é necessário para a manutenção e (re)produção material de uma comunidade. Em linhas gerais, a relação entre guardiães e produtores e, nesse sentido, entre política e economia seria a seguinte: os guardiães receberiam dos produtores um “salário” (em alimento, consumido em refeições comuns, a moradia comum etc.) pelo “serviço” de administrar a comunidade. Teríamos, pois, nesse caso, não bem um comunismo, mas algo como um “socialismo de Estado”. 

Isto, evidentemente, é, sob muitos aspectos, uma simplificação. Para ficar em apenas uma delas: se pensarmos que economia vem de oikos, oikia, a casa, a demora, âmbito próprio à família, e que os guardiães, tendo tudo em comum, formam uma espécie de grande família, então há uma curiosa interpenetração entre política e economia na classe dos guardiães.

Essa interpenetração é tanto maior no caso de termos em Platão não um “socialismo”, mas efetivamente um comunismo. Nesse caso, teríamos uma “grande família” cuja prole, toda ela, seria desde o princípio (um princípio ele mesmo comum) posta em uma criação e formação comuns, ao longo do qual cada um “descobriria” e desenvolveria a função que lhe é própria por natureza e seria então alocado nessa ou naquela classe, tornando-se produtor ou guardião e, no interior deste último, auxiliar-guerreiro ou governante. (Diga-se de passagem, pero non mucho, que, à diferença do comunismo marxiano (e não só marxiano), aqui não haveria a possibilidade de caçar de manhã, pescar à tarde e fazer crítica à noite: partindo de uma criação e educação comum, a princípio cada um realizaria por toda a vida uma mesma tarefa ou função, embora aquela formação comum mesma preserve, ao menos no nível da possibilidade, a realização de toda e qualquer função possível por todos.)

Parece persistir aqui, no entanto, uma certa separação entre política e economia. Não fica evidente também como se dá a questão da propriedade dos meios de produção: ela é de todos ou apenas propriedade comum dos produtores? Esta última possibilidade parece ser o caso, mas gera uma organização no mínimo curiosa (para nós, ao menos): os “assalariados” governariam, mas não teriam a posse os meios de produção nem da riqueza, mas fariam apenas uso do que lhe é fornecido por outrem para governar a comunidade em vista do bem de todos e de cada um; os produtores, por seu turno, teriam a posse dos meios de produção, a riqueza e seu uso, mas não o poder político.

Mas menos que a configuração específica da “utopia” comunista platônica, interessa aqui, para pensar o futuro da hipótese que aí encontra uma sua “realização ficcional”,  a relação que se pode estabelecer com a “cidade no céu”. De acordo com o texto da República, seriam, até onde posso ver, pelo menos três as atitudes que se pode ter diante da cidade reta e boa mitologada no lógos.

Primeiro, é possível enxergar nessa cidade um paradigma em vista do qual cada um pode medir, por semelhança e diferença, o quão justo é — e, na medida do possível, moldar a si mesmo, aos outros e, se o acaso ou o deus assim quiserem, a comunidade como um todo. Em linhas gerais, a justiça, na República, é a realização daquilo que é mais próprio, da função própria a cada, em função (sic) da qual o todo da alma e da cidade se torna feliz, realizado — de modo que articulam aqui o próprio de cada um, cada parte, e o comum da comunidade como um todo. É assim que, no âmbito político, justiça significa dar a cada um o seu próprio — o próprio não sendo necessariamente o que realiza no sentido de nos “satisfazer”, nos dar “bem estar”, já que para o filósofo governante ou bem o justo para o filósofo é abrir mão de seu próprio (de sua bem-aventurança) em vista do bem do todo, ao fazer em si mesmo a conjunção (impossível) entre ele mesmo e seu anverso, o político, ou bem o justo é que o próprio do filósofo é ser o entre si mesmo/si próprio e o guardião do comum, o político. E isso talvez seja assim justo porque o filósofo não é senão o singular cuja vida se define no que tem de mais próprio em vista do universal e, ao menos nessa medida, do comum. 

Essa primeira maneira de se relacionar com a cidade reta e boa se aproxima do que seria um ideal e talvez seja a que mais justifica o nome de “cidade ideal” para a comunidade ficcional de Platão. Se o superego é a instância que goza (da nossa culpa) quando não alcançamos o ideal ou se ele é quem goza (de nossa culpa) quando, em vista de um ideal (inalcançável), cedemos em nosso desejo, em ambos os casos, parece que aqui ele pode fazer a festa. Na medida em que teríamos aqui uma tentativa de se valer de traços característicos determinados para “preencher” a identidade de um sujeito ou de uma comunidade, suplantando as contradições (empíricas) aí em jogo, o discurso da cidade ideal e essa cidade mesma parecem ter uma função eminentemente ideológica.

Mas há outra maneira de se relacionar com a cidade “feita com discursos/ feita com a razão” (lógos). Essa produção discursiva serve em primeiro lugar para tornar visível a justiça ela mesma, isto é, a ideia de justiça, a justiça em sua verdade — e o faz sendo uma espécie de mito (um “mito dialético”, nas palavras de Gadamer), isto é, segundo a definição de Platão no livro II da República: um discurso que é, no todo, mentiroso, ficcional, mas que contém em si verdade (ideias?). A função da comunidade mitologada seria então a de tornar discernível a feição e quiçá os efeitos de (pelo menos) uma ideia — a de justiça, sobre a qual, como um axioma, a comunidade mesma estaria sempre já fundada, o que se torna evidente quando o Sócrates personagem platônico, tendo modelado a cidade com palavras, se pergunta o que afinal se tornou evidente como a justiça ela mesma e isso não é senão o princípio sobre o qual desde o começo fundaram a comunidade. Discernir os princípios mesmos do discernimento (phrónesis) e, nisso, os princípios de toda e cada ação: eis uma boa definição de filosofia — em Platão, ao menos. É aí que mora a reminiscência, uma retomada do que sempre já precede o agir (e conhecer etc.) e, nisso, é o seu futuro, aquilo a que ele tende.

Todavia, há ainda pelo menos uma terceira maneira de se relacionar com o paradigma da boa cidade. Trata-se de uma maneira que aparece no fim do livro IX e é como que a última palavra de Platão a respeito, já que o livro X parece se dedicar tão só a outras questões. Sócrates argumenta aí que o filósofo fará política, e muita, mas na “cidade no céu”. Interessa-me menos (no momento) que essa interpretação seja a correta, do que que ela seja (ou a imaginemos) como possível. Nesse caso, a ação política do filósofo — que, pelo livro X, ou ao menos na reescritura de Badiou, somos (em potência?) todos nós — acontece  fundamentalmente de modo extemporâneo, agindo já agora no âmbito do que não existe, do “ausente”, do passado-futuro(1) — Nessa medida, o filósofo não olha para o presente visando adaptá-lo pela ação a um ideal produzido no discurso teórico, mas é aquele que age já agora como um que vive num outro mundo, num mundo que não existe. É esse “como se”, essa ação ficcional — mas nem por isso “fictícia” — a ação política por excelência. 

Mas como se configura essa ação e o que ela produz — se é que podemos perguntar assim? Meu palpite é que ela se configura como — ou exige a invenção de — uma instituição que suporte uma ação política que se faz aqui num mundo porvir. Em outros termos, ela texta (sic) sua eficácia e produz seus problemas fazendo já aqui, em uma parte (uma associação de âmbito restrita e livre no sentido de que ninguém precisa se associar a ela, mas o faz porque em algum sentido “quer”), o porvir do todo (em que não há vida sem essa associação livre, o comunismo). 

Não me parece ser por outra razão que Platão funda a associação livre que ficou conhecida como “Academia”. Aí, a diferença entre funções — a de mestres e discípulos, por ex. — não deixava de se fundar, expressa e decididamente, sobre uma vida (em) comum, uma certa igualdade (de inteligências), articulada por sua vez àquilo de que unicamente eles e elas comungavam: problemas. De fato, diz-se que a liberdade “doutrinal” na Academia de Platão seria bem grande — à diferença da escola de Epicuro, por ex. — a ponto de a coisa se transformar a certa altura em ceticismo… (2) 

E quando se tem problemas, o que se pode fazer se não ter idéias? Aqui nos reencontramos, de certa maneira, com nosso princípio e encontramos um caminho para responder à (ou, antes, elaborar a) segunda questão colocada mais acima, sobre o que se produz com uma ação política fictícia. A resposta é, ao menos quanto à forma, simples: ideias. Mas que são, aqui, ideias? 

Aqui, de novo, recorreremos a Platão. Mas não à tradicional caracterização das ideias ou formas, mas sim a que tipo de situação — ou a dois ou três tipos de situação — que o levaram a pensar na “hipótese das ideias” — menos no intuito de dar uma interpretação mais correta dele do que de nos apropriamos do que opera aí. A aposta é a de que isso pode lançar uma (outra) luz sobre a experiência comum de ter idéias (em política).

A ideia (em Platão) é, em primeiro lugar, algo da ordem do passado. Com efeito, isso é evidente na noção de reminiscência ligada a ela. E mesmo onde essa noção não é mobilizada — na República, por exemplo — a compreensão de que ir em direção às ideias é uma volta ou, antes, o tomar contato com um a priori, com um pressuposto, está sempre em jogo. Quem, tendo estado na caverna, se vê livre do “mundo circundante” das sombras — da empiria — e livre para ter idéias, reconhece por fim que, se não as ideias, ao menos a ideia de bom é pressuposto, ou melhor, princípio também do que sempre já fazia na caverna.

Ora, a ideia como passado e pressuposto do que se dá diante de nós, do presente da empiria, tem uma dimensão eminentemente ontológica. De fato, o que se enxerga quando se pensa no que sempre muda no presente é o ser disso que “é” só devir. Em consonância com a contradição do devir ele mesmo, a ideia é o ser, a essência de seja o que for que se apresente — e não é. “E não é”, porque no presente empírico só se encontraria uma “insinuação”, um traço, um vestígio ou, como Platão formula ao menos uma vez (Fédon, 102d), um desejo disso que é plenamente o que ele é alhures, nomeadamente no pensamento. Assim, em suma, identificar — ou descobrir, ou levantar a hipótese de, ou simplesmente ter — uma ideia é ter em mente o que uma coisa — ou uma situação — “quer” ou, para formular em termos mais comuns, o que uma situação pede.

A ideia seria o ser desse traço de uma situação elevado ao seu máximo, explorado, na medida do possível, na extensão de toda suas potencialidades. Seria, nessa medida, o horizonte de possíveis no qual esse traço pode se realizar — horizonte cuja exposição se dá, por exemplo, na exposição ficcional de um “outro mundo” que desenvolve os traços desse ou na fundação de uma instituição sem existência “nesse mundo”, na medida em que suas regras são, ou querem ser, outras em relação a ele. Por outro lado, na medida em que é impossível que esse ser se realize totalmente em suas possibilidades — ou só é “possível” em pensamento — e na medida em que, ao mesmo tempo, a ideia é o que a coisa em causa em verdade é (é o ser dessa coisa apenas insinuado em seu devir; nesse sentido, a ideia é a coisa mesma), a ideia é ela mesma um real, ou um impossível (no comum: o que manda “a real” da situação, isto é, desvela o que está mesmo em jogo nela).

Assim, em relação à realidade, à realização empírica, a ideia não é apenas o positivo (o que ela (ainda) pode ser), mas (sobretudo) o pensamento do seu negativo — o que ela deixou de ser, o que ela sempre já abriu mão de ser para vir a ser o que “é”. Realizar implica sempre em dizer não. É nesse sentido que, ao contrário do que pensa Aristóteles, pensar as ideias não é duplicar este mundo, mas justo o oposto: abrir as portas, em primeiro lugar em pensamento, para um mundo que não este.

É por meio da elevação em pensamento de um traço da realidade ao seu possível e ao seu real que se poderia discernir também as contradições do presente. Ou, por outra, o que não é senão o mesmo movimento — o “já sei!” de quando temos uma ideia — são as contradições da empiria, do nosso mundo ambiente e cotidiano, que requisitam a ideia (conforme Platão indica de certa maneira no livro VII da República, ao mostrar como uma contradição oriunda do que é mais comum, a matemática, requisita o pensamento).

A ideia, todavia, não resolve a contradição empírica (isso implicaria em realizá-la totalmente), mas ilumina em pensamento esta última, abrindo a ela um caminho para onde ela pode ir, dando a ela um destino segundo este ou aquele traço, segundo o que se hipotetiza que a situação pede — ou o que se lê como “desejo” da situação sob a luz da hipótese de uma ideia. 

A ideia é, pois, a potência da coisa elevada à sua impossibilidade (empírica), de tal maneira que é possível ler o presente não a partir da opacidade do que ocupa todo o cenário, mas a partir de sua própria negatividade, de seus problemas. A ideia, pois, não resolve problemas no sentido de tamponá-los, mas os elabora, dá a eles um destino.

Acontece que uma situação sempre pede muitas coisas. Sempre há muitas demandas. E a ideia, privilegiando um traço, concentra o pensamento no fato de que a situação pede isso e não aquilo. Aqui, da negação do pensamento em que uma situação insiste para “ser” o que é, distingue-se de modo (um pouco mais) evidente o negativo do próprio pensamento que incide sobre essa ideia, e não outra. À liberdade da situação empírica presente, às ideias a que somos expostos quando nos liberamos daí e somos tomados de pensamentos, se conjuga a liberdade para as ideias, o vínculo que se assume com o pensamento quando da nossa “associação livre” a ele. A liberdade mesma talvez não seja senão esse vínculo e essa lacuna a qual estamos sujeitos entre o liberar-se de e o ser livre para, e sua dupla negatividade. Ser um sujeito livre talvez seja, em última instância, ser o efeito, o suporte e o nó desse “e” entre “duas liberdades”.

Seja como for, adentramos aqui a dimensão propriamente (ético-)política, isto é, a dimensão de futuro da ideia. Pois o vincular-se a uma ideia que dá um destino às contradições de uma situação da realidade é o ter lugar, em nós, de uma decisão — e de uma decisão da qual cada um (seja ele indivíduo, grupo, organização) é sujeito e ao qual é sujeito. Uma idéia é, pois, pendente de uma decisão e, nisso, (pressu)põe um sujeito. E não qualquer decisão: nos termos de Platão, essa é uma decisão sobre o bom e o melhor para as coisas em causa. Daí a centralidade da ideia de bom (na República). 

Todavia, decidir o que é bom é sempre já decidir sobre o que é próprio a cada e, assim, sobre o que é comum a toda. O bom é sempre uma distribuição e uma partilha entre propriedades e “comunidades”. Assim, a perspectiva (ético-)política da ideia de bom reintroduz uma certa compreensão de “totalidade”, de certa maneira deixada de lado na concentração em uma idéia —- ainda que uma totalidade meio furada, porque pendente no “salto no abismo” de uma decisão. Ela seria como que perspectiva universal “mais geral”, o princípio no horizonte do qual se tem essa ou aquela idéia.

Ora, a ideia de comunismo é justamente a ideia de uma certa partilha de comunidades e propriedades, fundada num certo princípio, ou hipótese, a da igualdade (ou, em termos platônicos, o da justiça). A articulação daquela ideia e, por conseguinte, desse princípio com a noção mesma de ideia e seu futuro é no mínimo dupla.

Primeiro, “efetivar” — ou, nos termos de Ranciére, verificar — o princípio da igualdade ou da justiça significa precisamente “ter ideias”, isto é, destacar, na medida do (im)possível,  um ou alguns traços de algo de modo a abrir a ele uma outra realização, que carregue aquela coisa ou situação a uma nova partilha do que é comum e do que é próprio, à luz da igualdade e da justiça. Bem entendido, ter idéias aqui não significa apenas (nem sobretudo) um indivíduo formular sozinho certos projetos e tentar pô-los em prática, mas também (e sobretudo), em se tratando de política, o colocar para funcionar uma organização cujos protocolos verifiquem esse princípio e se abram — sejam livres para — a formulação de outras idéias nessa direção. Note-se que com isso a ideia envolve um saber — de um traço de algo, de uma situação — mas também um não saber — o dos efeitos de que o operar sobre esse traço pode ter para a coisa em causa, o “presente”. (Talvez encontremos aí a razão pela qual Platão insiste na hipótese das ideias como essencial para o saber e a condição política do filósofo ao mesmo tempo em que só raramente, e mesmo assim de forma precária e ainda aberta, dá uma “definição” desta ou daquela ideia específica (um bom exemplo é a definição de justiça no livro IV da República))

Assim, na medida em que ter uma ideia (em política, mas talvez não só) implica ou mesmo significa tirar as consequências “práticas” das potencialidades ainda não realizadas de um traço ligado a uma demanda “do presente”, ter uma ideia se opõe a ou ao menos se diferencia radicalmente de ter uma ideologia. Isso ao menos se entendermos ideologia, em linhas bem gerais, como um conjunto de traços característicos que faz grupo na medida em que elimina ou tende a eliminar (de si) contradições e assim a criar uma identidade, não raro perversamente mobilizada para a manutenção da dominação política, da exploração econômica, da desigualdade social — não necessariamente nessa ordem. A aposta aqui é que, se é possível se organizar em torno de uma ideia e não de uma ideologia, é possível uma organização com protocolos que procuram fazer grupo não pela assunção de uma identidade nem tampouco pela adulação de toda diferença (o que não raro é só a formação de uma contra-identidade), mas sim por uma lógica que em certa medida transcende identidade e diferença, que as atravessa diagonalmente — que, em suma, é indiferente a ela: uma organização para qualquer um. Uma tal organização não toma as contradições e problemas como elementos a serem eliminados, mas como seu próprio elemento, o comum mesmo do qual o grupo mesmo e cada um toma o que lhe é próprio. O CEII, em sua “inexistência”, é uma tentativa de dar corpo a uma tal organização. (Por sinal, é da perspectiva “impossível” da ideia, nem ignorante nem científica, funcionando nos interstícios das ideologias, que se pode fazer ainda crítica da ideologia.)

É aqui que podemos extrair uma segunda consequência, talvez mais importante, da relação entre futuro, ideia e comunismo. Ela pode ser expressa (com tintas talvez um tanto carregadas) na seguinte (hipó)tese: só se pode ter idéias de verdade onde se verifica o princípio da igualdade, cerne (da hipótese) do comunismo. Pois onde vige esse princípio, não contam (mais) os traços de história pessoal, títulos, raça, gênero, classe etc. — ainda que nada impeça que esses possam ser mobilizados para que, desde eles, tenhamos ideias. Mas o que contariam seriam as ideias nelas mesmas, e seu potencial para iluminar as contradições que concernem não a estx ou aquelx, mas são comuns a todxs nós, sobretudo na medida em que impeçam que a igualdade — a justiça — se verifique. Inventar “mundos” fictícios e organizações em que (boas) ideias sejam possíveis — essa é uma formulação possível da tarefa de quem confia-se à hipótese comunista. Para organizar as condições materiais em que se pode ter ideias é preciso justamente — e algo paradoxalmente — não ter medo de ter boas ideias.


(1) E os ceiianos podem enxergar aqui, talvez, em que sem sentido o CEII não existe, nem jamais vai existir.

(2) Sob esse aspecto, o Ceii seria uma academia que substitui (ou tenta substituir), no seu pórtico, o “Só entra quem for geômetra” (assim como o “Só entra quem tiver tais e tais títulos”) pelo “Só entra se for qualquer um”…


* Texto escrito por Germano Nogueira Prado e apresentado por Mário Senhorini em outubro de 2016 no Colóquio “O futuro e a hipótese comunista”, promovido pelo Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII):

https://18.118.106.12/2016/10/10/futuro-e-hipotese-comunista/ .

 

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