A Forma Animal da Mercadoria

Por Maila Costa

“Revelar o verdadeiro valor por trás das mercadorias, seja o valor do trabalho humano que é precarizado aos maiores níveis possíveis, seja o valor inestimável da natureza que muitas vezes é até mesmo irrecuperável, ou seja o valor das vidas dos animais atormentados é imprescindível para que as contradições insuperáveis do capitalismo sejam perceptíveis sob a intrincada malha ideológica que cobre e atravessa a classe trabalhadora.”


Não vestimos pele de cachorro ou temos porcos como animais de estimação, mesmo que haja cachorros com vasta pelagem e que os porcos sejam tão inteligentes quanto os cachorros[1]. Isso revela que a lógica por trás da nossa relação com as outras espécies animais é inconsistente, mesmo de um ponto de vista utilitarista. A nossa consideração ética em relação aos outros animais é delimitada pelo capitalismo[2], à medida em que a indústria define quais espécies são adequadas para a produção em escala e a nossa relação com estes animais passa a ser, na verdade, uma relação apenas com o produto final consumível que é imposto pelos capitalistas à sociedade.

Desta forma, nossos laços emocionais e éticos são estendidos apenas aos animais não comoditizados, como os animais de estimação e os animais silvestres. Se evidencia então que a propriedade não é um fator determinante para a nossa relação com as outras espécies, mas sim a sua condição de mercadoria[3]. Os animais de estimação, por exemplo, são considerados propriedade dos seus tutores (vulgo donos), mas a eles os humanos se referem como sujeitos vivos e com direito à vida plena, com quem interagem amplamente, ao contrário dos animais sob a tutela da indústria, com quem os humanos se relacionam somente como objetos de trabalho ou consumo.

A reificação da consciência permite que os humanos se relacionem com esses animais através da sua forma comoditizada, como se esta fosse realmente um algo em si, ou seja, estamos alheios aos animais que, utilizados em um longo processo de produção, se tornaram estes produtos e, não há necessidade prática de buscar conhecer tais processos produtivos, assim como não há tal necessidade ou urgência em relação a nenhum outro produto de maneira espontânea.

O capitalismo proporciona que vejamos os objetos como independentes de suas manifestações naturais, e quando falamos de animais, essas manifestações não se dão apenas em estado físico – como bruto, sólido, líquido, etc -.[4] mas também em relação ao próprio ser: vivo, ativo, reprodutivo, interativo, senciente, locomotivo, em desenvolvimento biológico. Por isso a comoditização dos animais não se compara qualitativamente à comoditização de uma pedra ou bambu, assim como não se compara a nossa própria força de trabalho, embora esteja mais próxima desta do que daqueles, mesmo que estejamos em lados opostos no processo de produção.

A própria consolidação do capitalismo na Europa possui relações estreitas com o processo de comoditização dos animais naturais. Na Inglaterra, por exemplo, houve a expulsão dos camponeses de suas lavouras para a criação de ovelhas e consequente produção de lã[5]. Na Irlanda, aconteceu um processo parecido para atender aos interesses ingleses na venda de lã, carne e outros produtos animais, cujos preços estavam em ascensão na metade do século XIX, com a diferença de que enquanto na Inglaterra a indústria da lã disparava com as tecelagens, na Irlanda a manufatura perdia força frente à transformação do país em um subsidiário agrário.[6]

Como se pode observar historicamente, a ciência representa um instrumento substantivamente racional, que pode ser utilizado racionalmente, do ponto de vista funcional, para a consecução de fins substantivamente irracionais[7]. Nesse sentido, quando animais estão sujeitos à forma-mercadoria, sua senciência é negada, resultando numa contradição ética, já que se configura uma forma diferente de relação com estes animais, baseada na negação da realidade, devido a sua posição nas relações de produção. Embora o tratamento dispensado a eles não corresponda a nosso própria natureza social e aos conhecimentos científicos disponíveis em relação às suas capacidades[8], o uso de animais na indústria cresceu historicamente, bem como seu consumo e, como consequência, a alienação em relação aos processos produtivos correspondentes.

É importante lembrar que, mesmo que os animais naturais tenham sido historicamente utilizados pelos humanos como forma de subsistência e até mesmo como um fator decisivo que proporcionou o desenvolvimento de comunidades em certas épocas e regiões[9], na sociedade globalizada, o valor de uso é apenas o substrato material que dá suporte ao valor de troca. O capitalista visa, quando produz um valor de uso que é uma mercadoria, gerar um valor de troca e, em última instância, gerar valor, mas não apenas valor, e sim mais-valor.[10]

Enquanto para a determinação do valor de uso o trabalho é concreto e singular, para o valor de troca ele se torna abstrato e indiferenciado.[11] Na sociedade de classes, o ciclo do dinheiro possui como força motriz e fim em si mesmo o valor de troca[12], que já não possui mais nenhum átomo das qualidades naturais do valor de uso[13] devido ao emprego do trabalho alienado, que, em última instância, é o que realmente confere valor à mercadoria.[14] Na forma final de dinheiro, a mercadoria se afasta ainda mais do trabalho humano e dos animais naturais empregados no processo de produção, encerrando o ciclo do fetichismo da mercadoria.

Através desta linha argumentativa é possível explicar por que no trabalho não alienado, para subsistência por exemplo, não há estranhamento em relação à utilização e morte de animais. Neste caso, o processo de ação do humano sobre a natureza se dá de tal maneira em que ele se apropria da matéria natural de uma forma que lhe seja útil.[15] Ele age com sua corporeidade sobre a corporeidade dos outros animais, sendo que essa mediação faz parte da reprodução da sua própria vida. Diferente da lógica da comoditização, não há inconsistência em relação a criar laços emocionais com estes animais, pois eles não são mercadorias, já que para serem mercadorias, deve haver um valor de troca. É claro que aqui não entramos no mérito do sofrimento e da exploração animal, mas sim puramente da questão do valor de uso e valor de troca e sua relação com nossa percepção relativa aos demais animais.

Entretanto, embora os animais não humanos com os quais nos relacionamos na forma-mercadoria sejam normalmente considerados como produtos naturais, eles são na realidade não somente isso[16], eles são produto da relação dialética da sua condição determinantemente natural e da influência artificial do controle humano ao longo de muitas gerações. Apesar de que tenha havido processos pré-capitalistas que continham esse caráter, foi com a expansão colonialista que uma determinada classe transladou plantas e animais de um país ao outro transformando a flora e a fauna de continentes inteiros, de tal maneira que se tornaram irreconhecíveis.[17]

Conforme a sociedade vai se comoditizando, a própria percepção da realidade se altera e a ideologia cumpre o papel de enaltecer as relações aparentes, ocultando a essência da sociedade capitalista e seu modo de produção exploratório. Em relação aos animais, esse fenômeno tem sido nomeado por autores não marxistas como Carol Adams, com o “referente ausente”, que trata especificamente da invisibilização do animal senciente que existia antes de ser transformado em produto[18], ou Gary Francione e a “esquizofrenia moral”, que se refere à suposta falha cognitiva que faz com que não haja consideração moral da nossa parte em relação aos animais comoditizados e seria causada pelo tratamento destes como propriedade[19] – cuja premissa esse artigo se opõe.

O comprometimento da humanidade sob o capitalismo com a forma-mercadoria coloca os animais comoditificados sob uma situação particular. Embora o restante da natureza também esteja sob assédio e destruição constantes, os animais não humanos se encontram inseridos à força nas bárbaras relações de produção da indústria animal e, diferentemente dos rios, matas, solo, atmosfera e oceanos, eles são capazes de sentir os horrores das mais diversas violações e privações a que são sujeitos, embora sem possibilidade de resistência organizada. Já seus companheiros terráqueos da espécie humana que, ao contrário, possuem a habilidade de organização coletiva de sua espécie e poderiam também se organizar efetivamente contra a exploração dos outros animais, têm dificuldade para ultrapassar a barreira da reificação das suas próprias relações sociais.

Entretanto, ambos têm o potencial de ser livres e servir aos seus próprios propósitos de acordo com os níveis de consciência que lhes cabem. Para os humanos, esse potencial seria uma organização social que possibilite o exercício pleno da humanidade de cada um, em que todos possam estimular e desenvolver suas capacidades e trabalhar coletivamente para que todas as necessidades humanas e da natureza sejam supridas. Para os demais animais, essa liberdade repousa no plano natural, onde eles poderão em seus habitats, ou sob a tutela humana quando não houver possibilidade de vida autônoma, viver, se alimentar, buscar os estímulos que são da sua natureza e da sua subjetividade e se reproduzir por seus próprios meios,[20] sem a interferência do assédio de uma classe exploradora.

O especismo é resultado da prática socioeconômica da nossa sociedade[21] desde a sistematização da exploração animal e não da nossa insuficiência moral em relação aos mesmos, sendo esta uma consequência da reificação da sociedade, sustentada ideologicamente de maneira tão eficiente que afeta nosso entendimento sobre ética em relação à totalidade da nossa forma de sociabilidade.

Revelar o verdadeiro valor por trás das mercadorias, seja o valor do trabalho humano que é precarizado aos maiores níveis possíveis, seja o valor inestimável da natureza que muitas vezes é até mesmo irrecuperável, ou seja o valor das vidas dos animais atormentados é imprescindível para que as contradições insuperáveis do capitalismo sejam perceptíveis sob a intrincada malha ideológica que cobre e atravessa a classe trabalhadora.

A racionalidade funcional da qual o capitalismo lança mão para legitimar suas ações com fins bem determinados de acumulação de riquezas, não considera que os animais naturais não são parte inanimada da natureza e sim criaturas sensíveis que foram incluídas nas relações de produção contra a sua vontade. Assim como os humanos e todas as coisas, elas passam a ter seu valor medido a partir da sua posição nestas relações.

Aceitar este valor como natural quando ele se refere aos animais não humanos, abstraindo o fato de que vivemos num determinado modo de produção baseado em exploração infinita e irracional, que esses animais estão também sujeitos ao sofrimento e que o desenvolvimento das forças produtivas nos permite uma outra postura em relação a eles é, por um lado, abandonar  a categoria da totalidade e a crítica profunda e revolucionária ao modo de produção capitalista e, por outro, abrir mão da possibilidade de elevação do nosso entendimento sobre emancipação humana e moral comunista.


Notas

[1] LEA, Stephen E.G.; Osthaus, Britta. In what sense are dogs special? Canine cognition in comparative context. Learning and Behavior, 2018. Pág. 46, 335–363. (https://doi.org/10.3758/s13420-018-0349-7)

[2] SMULEWICZ-ZUCKER, Gregory. Strangers to nature : animal lives and human ethics. Plymouth: Lexington Books, 2012, pág. 165.

[3] Ibidem, pág. 159.

[4] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – Livro 1: o processo de produção do capital. 2. ed.  São Paulo: Boitempo, 2017. Pág. 272.

[5] Ibidem, pág. 790.

[6] MARX, Karl. Marx and Engels on Ireland, Progress Publishers, Moscoo, 1971. Pág. 126-139.

[7] SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. Pág. 163.

[8] LOW, Philip. The Cambridge Declaration on Consciousness. Cambridge, 2010. (http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf)

[9] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – Livro 1: o processo de produção do capital. 2. ed.  São Paulo: Boitempo, 2017. Pág. 257.

  ENGELS, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Stuttgart: Neue Zeit, 1896. (https://www.marxists.org/portugues/marx/1876/mes/macaco.htm)

[10] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – Livro 1: o processo de produção do capital. 2. ed.  São Paulo: Boitempo, 2017. Pág. 263.

[11] SMULEWICZ-ZUCKER, Gregory. Strangers to nature : animal lives and human ethics. Plymouth: Lexington Books, 2012, pág. 162.

[12] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – Livro 1: o processo de produção do capital. 2. ed.  São Paulo: Boitempo, 2017. Pág. 226.

[13] Ibidem, pág. 116.

[14] Ibidem, pág. 117.

[15] Ibidem, pág. 255.

[16] Ibidem, pág. 259.

[17] ENGELS, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Stuttgart: Neue Zeit, 1896. (https://www.marxists.org/portugues/marx/1876/mes/macaco.htm)

[18] ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: uma teoria feminista-vegetariana. 2. ed. São Paulo: Editora Alaúde, 2018. Pág. 79.

[19] FRANCIONE, Gary. Introduction to animal rights : your child or the dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000. Pág. 50.

[20] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010. Pág. 84.

[21] MAURIZI, Marco. Al di là della natura. Gli animali, il capitale e la libertà. Aprilia: Novalogos, 2011. Pág. 23.

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1 comentário em “A Forma Animal da Mercadoria”

  1. No capitalismo, a força de trabalho é mercadoria, nem por isto queremos uma sociedade sem trabalho. A dieta humana incluiu animais há mais de 2 milhões de anos, provavelmente predominantente assim até a revolução neolítico, ou seja, até o surgimento da sociedade de classes aproximadamente. Há inclusive nutrientes que só podem ser obtidos a partir deles. Penso que a alimentação deve prover a totalidade das necessidades nutricionais humanas, sem recursos a suplementos (outra vil mercantilização da saúde humana). Excluir bilhões do acesso à uma dieta completa é o principal crime nutricional da revolução neolítico. Impor uma dieta industrial mercantilizada a comunidades originárias como os Inuits, outro crime Assim, me cause preocupação quando a esquerda adota a pauta moral / malthusiana / vegana / anti humana .

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