Um cheiro de perfume podre: paranoia, negação e militares

Por André Márcio

“O Brasil pandêmico tem um cheiro de perfume podre e todos nós sabemos de onde ele vem. Na verdade, esse cheiro está hoje disseminado por toda a nossa sociedade. Ele vem das valas comuns abertas para jogar os corpos produzidos pela ignorância do governo Bolsonaro. O mesmo cheiro vem dos corpos putrefatos nos hospitais e frigoríficos à espera dessas valas, pois sequer o reboque para levá-los dá conta da quantidade. O perfume podre vem dos corredores lotados de doentes miseráveis, moribundos, à espera que alguém saia da UTI, vivo ou morto.”


O Brasil pandêmico tem um cheiro de perfume podre e todos nós sabemos de onde ele vem. Na verdade, esse cheiro está hoje disseminado por toda a nossa sociedade. Ele vem das valas comuns abertas para jogar os corpos produzidos pela ignorância do governo Bolsonaro. O mesmo cheiro vem dos corpos putrefatos nos hospitais e frigoríficos à espera dessas valas, pois sequer o reboque para levá-los dá conta da quantidade. O perfume podre vem dos corredores lotados de doentes miseráveis, moribundos, à espera que alguém saia da UTI, vivo ou morto. Esse cheiro vagueia pelos transportes públicos lotados, sujos e calorentos que as classes menos favorecidas são obrigadas a tomar todo santo dia para ganhar seu “pão”. O podre desse perfume é ainda mais intenso na falta de empatia das pessoas e classes mais afortunadas pelos mais necessitados, não hesitando em escorraçá-los das empresas, mandando-os pedir a esmola que o governo oferece. Por fim, a decomposição fétida é ainda mais intensa em pleno núcleo do governo central, este com as narinas obstruídas pelo cheiro catinguento das disputas intestinas pelo poder.

Engana-se quem pensa que esse é um momento único no país. O ideal de um país abençoado por natureza sequer passou perto do nosso litoral. Como uma maldição, ao invés do triunvirato descrito em texto anterior[1], qual seja, Igualdade-Liberdade-Segurança, parece que quase sempre estamos às voltas com outro triunvirato, a saber, Paranoia-Negação-Militares. Os exemplos históricos são abundantes. Desde o nascedouro da República, com o golpe militar desferido pelo Marechal Deodoro da Fonseca; o suicídio de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros; até o atual governo paranoico e negacionista, entupido de militares, do presidente Bolsonaro.

Infelizmente, não temos espaço suficiente para comparar tais períodos históricos, como forma de corroborar nossa tese, nem é nossa intenção aqui resgatar a memória de um país que teima em viver pelo avesso, na contramão da história, sob o auspício perene da catástrofe. Ao contrário, o objetivo primeiro desse texto é tentar mostrar, à luz dos acontecimentos reencarnados nessa pandemia, como o Brasil repete o modelo de proto-democracia que nunca se concretiza de fato, uma poliarquia dos iguais poderosos ou mesmo uma oligarquia no sentido restrito do termo, ou seja, um poder exercido por um pequeno número de pessoas, pertencentes ao mesmo partido, classe ou família. Em português claro, o poder exercido por um pequeno grupo.

Para tal intento, todavia, vamos precisar recorrer primeiro ao entendimento básico desse triunvirato contraproducente. A Paranoia, por exemplo, está inserida na constituição do sujeito psicótico. Nesse sentido, ao se estruturar psicologicamente bem cedo, até os três anos de idade, a criança constrói sua psique através de significantes. Desde o seu nascimento, o bebê precisa do outro para lhe dar um lugar de existência e, para isso, é necessária a linguagem. Com um corpo biologicamente normal, vai estar propenso à subjetivação por meio das marcas deixadas pelo “Outro”. Essa falta inaugura o nascente pela marca que a mãe imprime em seu corpo.

Para que se estruture um sujeito, a falta é necessária, pois o ato da provocação gera nesta criança a pulsão como representante do biológico, a qual só pode ser aliviada por meio do outro (objeto). É esse outro que pela repetição vai inscrever no filho o traço de memória. A marca que fica pelo objeto faltante é o que desenha no inconsciente o objeto do desejo. A pulsão, assim, é a propulsora do desejo. Constitutivamente, o significante causador da falta vai estar sempre num lugar de objeto faltante no imaginário do bebê, enquanto o real do vazio lhe causa o desejo.

Freud (2006) considera a infância de cada um como uma espécie de época pré-histórica que, no entanto, não constitui um período estanque, pois está propenso a ter vazamentos, como ocorre com a pulsão. Pode-se entender que esse vazamento, de certa forma, faz parte do processo da constituição do sujeito. As operações psíquicas são consideradas mecanismo pelo qual a pulsão determina descarga da excitação. O sistema psíquico grava como significantes certas experiências vividas, num processo de formação da memória. Assim, o que é vivido pela mãe e pelo filho opera registros simbólicos, marcas deixadas pelo significante no corpo do filho.

Lacan (1999, p. 195) afirma que “[…] não há sujeito se não houver um significante que o funde”. É pela via da simbolização que ele explica a subjetivação do sujeito. Ao se dar conta de que onde reinava o prazer agora se encontra a falta, é por essa articulação movida pelo desejo do Outro que vai buscar algo para voltar a sentir prazer. É nessa experiência que o bebê vai construir as diferenças entre o “eu” e o “outro” a partir dos significantes já marcados em seu corpo. Neste sentido, para Lacan, não é a palavra que a criança balbucia que importa e sim o que simboliza o espaço da falta. Um sentimento outrora desprazeroso pode ser transformado em algo prazeroso no sentir da criança.

Nessa toada, para Lacan a psicose é o estabelecimento de um mecanismo específico que permite diferenciar neurose e psicose: a foraclusão do significante Nome-do-Pai. Em relação ao processo de estruturação psicótica, Lacan (1957-58/1998) afirma que ocorre uma falha no nível do Outro: a ausência de um significante, o Nome-do-Pai, e de seu efeito metafórico. Como o Nome-do-Pai não consegue substituir o Desejo-da-Mãe, o sujeito fica barrado no acesso ao simbólico e impossibilitado de se orientar em relação ao falo imaginário. Assim, o Desejo-da-Mãe se apresenta como um gozo impossível de dominar e esta criança ocupará uma posição de imediatismo, de assolamento, por não poder advir como sujeito barrado, pois a castração não vai acontecer. Além disso, sendo o Nome-do-Pai o significante que permite ao sujeito entrar na linguagem e articular sua cadeia de significantes, a não-inscrição desse significante no Outro acarreta os distúrbios de linguagem e a alucinação.

Lacan afirma ainda que “a paranoia é um visco do imaginário. É uma voz que sonoriza o olhar que aí é prevalente. É um congelamento do desejo” (LACAN, 1974-75). Na paranoia, dois objetos se fazem presentes: o olhar e a voz. O primeiro, o olhar, está mais ligado ao imaginário, enquanto que a voz adere à cadeia simbólica. Porém, ambos têm em comum o fato de terem como índice a presença do Outro. Isso demonstra que na paranoia há um congelamento do desejo, uma fixação da imagem que não permite o deslizamento metonímico do desejo. Ele é um ser que é mais visto do que vê.

Passemos agora para a questão psicológica da “Negação”. Este conceito seria um mecanismo de defesa que refere-se a um processo pelo qual a pessoa, de alguma forma, inconscientemente, não quer tomar conhecimento de algum desejo, fantasia, pensamento ou sentimento. Anna Freud classificava a negação como um mecanismo da mente imatura porque entra em conflito com a capacidade de aprender e lidar com a realidade. Atualmente, a psicanálise mantém quase a mesma definição desse conceito.

Nesse sentido, a realidade deixada fora da mente consciente, o processo de sublimação (elaboração) envolve um equilíbrio de não esquecer nem lembrar completamente. Isso permite que o trauma ressurja na consciência se envolver um processo contínuo, como uma doença prolongada. Alternativamente, a sublimação pode iniciar o processo de resolução completa, onde o trauma finalmente afunda em um eventual esquecimento. Portanto, a negação é, sem dúvida, um impedimento para o desenvolvimento de uma vida saudável, plena e estável, que envolve a pessoa em uma realidade fictícia que não pode durar por muito tempo.

Dadas as duas primeiras variáveis do nosso texto, a última dele é menos psicológica, apesar de ter um forte apelo emocional: os militares. De fato, neste dia que escrevo, 28/05/2020, o país vive apreensivo por mais uma ameaça, velada, às instituições democráticas pelo governo bolsonarista. O turbilhão de acusações e provas contra este governo já seriam, a priori, suficientes para acabar com a farsa de um governo fascista, que se autoproclama democrático. Porém, existe um grave empecilho a povoar o imaginário da maioria da população, e grande parte das autoridades do legislativo e judiciário: a absurda (re)militarização de um governo civil, eleito pelo voto popular.

Nessa toada, o Estado é laico e civil, portanto, nem autoridades eclesiásticas ou de outras religiões, nem autoridades das forças armadas, deveriam se imiscuir em assuntos que não dizem respeito a eles. E vice-versa. Assim, todas as religiões e o braço armado do Estado estariam seguras das intemperanças do poder civil em qualquer situação política de impasses ideológicos, bem como também não interfeririam com seus dogmas próprios de instituições altamente hierarquizadas. Mas, eis que vivemos o caos de uma pandemia dentro de outro caos ainda maior da política. O Dr, Dráuzio Varela bem exemplifica na sua coluna de hoje no site do www.uol.com.br. Diz ele:

“O Brasil caiu numa armadilha sinistra. Duas trocas de ministros numa fase crucial da disseminação da epidemia mantêm o Ministério da Saúde de mãos atadas há mais de um mês, enquanto o presidente faz o diabo para acabar com o isolamento social e impor um medicamento inútil, com efeitos colaterais eventualmente graves. Por que essa obstinação? Para dar a ilusão de que existe cura para quem contrair a doença nas ruas?”

É vero que as forças armadas no Brasil sempre estiveram em conluio com o poder civil. O golpe da Primeira República encabeçada por um Marechal é emblemático nesse sentido. Uma breve contagem de governos civis, com eleição direta, não ultrapassa em muito a conta de 1/3 do tempo, desde o fim da monarquia em 15 de novembro de 1889. Nesses últimos cento e trinta anos, governos civis derrubados, “suicidados”, afastados, renunciados, impedidos são a tônica de uma nação que deseja(?) uma identidade civil-emancipatória. Ao invés disso, recorre-se ao fardamento para tudo, desde os casos rasos de pequenos tráficos (resolvidos em outros países com medidas sócios-educativas), até golpes militares a bem do “status quo” da mesma árvore elitista desde a chamada “República da Espada”.

Não se trata aqui, que fique bem claro, de desmerecer esses importantes ramos de qualquer país. As forças armadas, na sua função de guardiã das fronteiras nacionais (nos moldes da modernidade), bem como da última instância de pacificação da sociedade tresloucada pelo sistema fetichista de consumo e conflitos de interesses pessoais menos, digamos, magnânimos, deveriam ser preservadas exatamente assim: como guardiã e pacificadora. Nada mais que isso. O que já seria muito nobre, e custoso, para um país como o nosso com dimensões continentais.

Já as religiões, bem essas estão com o “homo sapiens sapiens” (homem que sabe que sabe) desde a sua aurora. Ao longo da história do homem, foram muitas as tentativas frustradas de acabar com seu lado esotérico. Nenhuma foi permanente. Talvez o período iluminista de Voltaire, Rousseau, Kant, tenha sido o mais duradouro. Nem mesmo o socialismo científico foi capaz de apagar a chama do inexplicável para a humanidade. Assim, se para os “philosophes” ds século XVIII, e até muitos dos anteriores, o projeto de uma civilização universal só era possível através de uma moralidade universal, longe da diversidade de tradições e crenças religiosas, para os iluministas dos séculos passados e atual, não importa a ideologia, essa moralidade universal passa, necessariamente, pela aceleração do progresso científico.

Entretanto, se mesmo entre os iluministas clássicos, como David Hume (1711 – 1776), houve discordância sobre a religião como consenso para as pessoas consideradas à época “sensatas”[2], no atual momento histórico da modernidade, especialmente para países periféricos como o Brasil, a religião monoteísta serve, a bem da verdade, para um jogo duplo contra suas populações: desinformação e fundamentalismo. Um não vive sem o outro e, no Brasil bolsonarista, o requinte de crueldade vem da aliança armada desse jogo, qual seja, o poder armado (bancada da bala, milícias, forças armadas) e o poder da ignorância religiosa. Como romper essa armadilha em que nos metemos, sem cairmos no vazio de máquinas cegas oriundas do cientificismo? Ou talvez seria melhor refletirmos sobre a pergunta da personagem “Cândido” (1985) de Voltaire: “Se este é o melhor dos mundos possíveis, como serão os outros?”.

Para finalizar, gostaria de retornar à realidade atual do nosso país, para fazer o leitor atentar-se frente à nossa desmesura. De fato, o núcleo do poder nacional, desde o final de 2018, encabeçado pelo presidente da república, reúne duas matrizes que, combinadas, estão levando o país à beira do precipício: a primeira é a matriz psicológica, subdividida na estruturação psicótica do principal mandatário e a imaturidade da negação do óbvio (pandemia, ecologia, livre-mercado, democracia etc.), como mecanismo de defesa para seus interesses pessoais e do mercado; a segunda matriz é o conluio entre força e fé, levado ao pé-da-letra por uma parcela significativa dos militares no poder, além de uma parcela também significativa de uma ala radical de fundamentalistas religiosos.

Nesse sentido, depois de quase trinta anos de democracia representativa aparentemente sólida, a sociedade brasileira revirou as covas (termo, infelizmente, na moda) de um passado obscuro e recolocou no poder o mesmo modelo centralizador da poliarquia dos poderosos coronéis de outrora, ou, se quiserem, da velha oligarquia financeira do início do século XX pra cá, apenas com sujeitos diferentes. Mais do mesmo. Entretanto, uma coisa precisa ser questionada: se o bordão “pátria, família e propriedade” era a salvação do nosso país, por que as forças que assolaram a sociedade “sensata” voltairiana da última ditadura (1964 – 1985) precisaram bater em retirada tão precocemente, após a aleivosia contra essa mesma sociedade em meros 21 anos?

Acima de tudo, é preciso fazer chegar a essa parte da sociedade nacional que acreditou, e ainda acredita, nesses dogmas como uma vereda para fanáticos, que a nossa emancipação coletiva não passará por mais um “apartheid” social. Ao contrário, a teodiceia do novo Deus-progresso apenas aprofundará a distância entre as pessoas, já bastante isoladas justamente por umas das prerrogativas desse novo ser supremo, a saber, a capacidade de nos manter vivos (uma pequena parte no futuro) ou nos levar à morte por seres quase invisíveis, como o novo coronavírus.


 REFERÊNCIAS

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1901-1905]. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

LACAN, J. O seminário. Livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

LACAN, J. (1957-58). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, J. (1974-75). O seminário. Livro 22: R.S.I. Inédito;

VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo. Scipione Autores Editores. 1985;

[1] Artigo intitulado: Ainda o novo coronavírus e o nosso enigma emancipatório. Publicado nesse mesmo blog.

[2] Hume discordava do monoteísmo como credo original do homem primitivo, afirmando na sua obra História Natural da Religião que o politeísmo foi o credo aborígene da humanidade.

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