A crise italiana (1924)

Por Antonio Gramsci, via L’Ordine Nuovo, traduzido por Mario Matos

A crise radical do regime capitalista, iniciada na Itália como no mundo todo com a guerra, não foi solucionada pelo fascismo. O fascismo, com seu método repressivo de governar, tornou muito difícil, e mesmo quase totalmente impediu, que se manifestassem na política os efeitos da crise capitalista, porém, não conseguiu em seu governo estabelecer a interrupção dessa crise e, menos ainda, uma retomada do desenvolvimento da economia nacional.


Geralmente se diz, e nós comunistas também afirmamos com frequência, que a situação italiana atual é caracterizada pela ruína das classes medias: é um fato, mas que precisa ser compreendido em sua totalidade. A ruína das classes médias é deletéria, pois o sistema capitalista, longe de se desenvolver, ao contrário, sofre uma limitação; tal ruína não é um fenômeno em si, passível de ser examinado isoladamente e cujas conseqüências faz dela objeto de um tratamento independente das condições gerais da economia capitalista, mas é a própria crise do regime capitalista que não pode e não poderá mais satisfazer as exigências vitais do povo italiano, que não mais consegue garantir comida e um teto à grande massa dos italianos. A manifestação atual, em primeiro plano, da crise das classes médias é um fato político contingente, não é senão a aparência deste período que, precisamente por isso, chamamos de “fascista”. Por quê? Porque o fascismo surgiu e se desenvolveu sobre as bases da fase inicial dessa crise; porque o fascismo lutou contra o proletariado e chegou ao poder explorando e organizando a inconsciência e o espírito domesticável da pequena burguesia entorpecida pelo ódio à classe operária, que por sua vez conseguiu, graças à sua organização, mitigar, em seu âmbito, os efeitos da crise capitalista.

Porque o fascismo se exaure e morre precisamente por não ter nenhuma de suas promessas cumpridas, por não ter dado esperanças, por não ter em nenhum grau compensado a miséria. O fascismo rompeu o elo revolucionário do proletariado, desmontou os sindicatos das categorias, diminuiu os salários e aumentou as jornadas de trabalho, mas isso não foi suficiente para garantir uma vitalidade, também reduzida, ao sistema capitalista. Precisou, portanto, igualmente abaixar o nível de condições das classes médias, espoliar e saquear a economia da pequena burguesia e, por conseqüência, acabar com toda liberdade, não apenas a liberdade proletária; daí da luta não só conduzida contra os partidos operários, mas que também se concentrou especialmente sobre todos os partidos políticos não fascistas, sobre todas as associações que fugiam ao controle direto do fascismo oficial. Por que a crise das classes médias teve, na Itália, conseqüências mais radicais que em outros países, e por que ela permitiu o nascimento e o acesso do fascismo ao poder? Porque, na Itália, devido ao fraco desenvolvimento industrial e seu respectivo caráter regional, a pequena burguesia não é apenas maior numericamente, mas é também a única classe “territorialmente” nacional. Depois da guerra, a crise capitalista assumiu a forma acentuada de uma desagregação do Estado unificador, favorecendo assim o renascimento de uma ideologia confusamente patriótica: depois que, em 1920, a classe trabalhadora falhara em sua missão, que era criar por seus próprios meios um Estado que pudesse igualmente satisfazer as exigências nacionais de unificação da sociedade italiana, não havia outra solução que não a fascista.

O regime fascista morre, não apenas porque não conseguiu conter a crise das classes médias, mas porque contribuiu para acelerá-la após a guerra. O aspecto econômico dessa crise se traduz na ruína das pequenas e médias empresas: o número de falências multiplicou-se rapidamente nos últimos dois anos. O monopólio do crédito, o regime fiscal, a legislação dos aluguéis destruíram a pequena empresa comercial e a indústria: constatou-se uma verdadeira transferência de riquezas da pequena e da média burguesia para a grande burguesia, sem que se desenvolvesse ao mesmo tempo o aparato de produção[1]; o pequeno produtor nem sequer se tornou um proletário, não é mais que um faminto permanente, um desesperado sem expectativas de um futuro melhor. O emprego da violência fascista para obrigar os donos de poupança a investir seus capitais num determinado sentido, raramente foi proveitoso para os pequenos industriais, quando teve êxito, não fez mais do que transferir os efeitos da crise de um setor da população para outro, contribuindo assim para aumentar novamente a insatisfação dos donos de poupanças com relação aos monopólios que existem no segmento bancário, o que se torna ainda mais grave dado a necessidade dos empreendedores de recorrer e assegurar crédito.

No campo, o desenvolvimento da crise está estreitamente ligado à política fiscal do Estado fascista. Desde 1920, as despesas médias de uma família de arrendatários (meeiros)[2] ou de pequenos proprietários sofreram um incremento de aproximadamente 7000 liras como resultado do aumento de impostos, da precarização das condições de contrato, etc. A crise do pequeno empreendimento se manifesta de forma típica no norte e no centro da Itália. No sul, intervêm novos fatores, cujo principal é a falta de emigração e o consecutivo aumento da pressão demográfica[3], acompanhada de uma redução da superfície cultivada, e, por conseqüência, uma diminuição da colheita. A colheita de trigo foi, no ultimo ano, 68 milhões de quintaux[4] em toda Itália, o que significa que, se em escala nacional foi superior à media, ela foi, no Sul, inferior à média. Neste ano, a colheita foi inferior à média de toda a Itália, e completamente desastrosa no sul. As conseqüências dessa situação não estão ainda manifestas de modo brutal porque existem condições econômicas no Sul que impedem, de fato, que a crise se revele em toda sua amplitude, como ocorre nos países de capitalismo avançado: todavia, na Sardenha já se tem verificado graves episódios de insatisfação popular provocados pela privação econômica.

Portanto, a crise do sistema capitalista não foi impedida pelo regime fascista. Sob o regime fascista, as condições de vida do povo italiano diminuíram. Acompanhamos a restrição do aparato produtivo exatamente no momento no qual aumentava a pressão demográfica causada pela dificuldade de emigração transoceânica. A possibilidade de salvação do aparato de produção industrial reduzido se deu pela diminuição no nível de vida da classe operária por meio do rebaixamento dos salários, do aumento da jornada de trabalho e o crescimento do custo de vida: tudo isso provocou uma emigração de trabalhadores qualificados, o que equivale a um empobrecimento das forças humanas de produção que eram uma das grandes riquezas nacionais. As classes médias que haviam depositado suas esperanças no regime fascista foram tomadas pela crise geral, e se tornaram, no período atual, o símbolo da crise capitalista.

Este rápido esboço não almeja mais que lembrar toda a gravidade da situação, que não comporta, em si mesma, nenhuma potencial recuperação econômica. A crise econômica italiana só pode ser resolvida pelo proletariado. Apenas se inserindo em uma revolução européia e mundial o povo italiano poderá reencontrar a capacidade de fazer valer suas próprias forças humanas de produção e dar um novo vigor ao aparato nacional de produção. O fascismo apenas retardou a revolução proletária, mas não a tornou impossível: até mesmo contribuiu para estender e aprofundar as bases da revolução proletária que, depois da experiência fascista, será verdadeiramente popular.

A desagregação popular e política do regime fascista se manifestou pela primeira vez numa reação de massas quando das eleições de 6 abril. O fascismo tornou-se nitidamente minoria na região industrial italiana, isto é, onde se encontra a força econômica e política que domina a nação e o Estado. As eleições de 6 de abril, mostrando a que ponto a estabilidade do regime não era mais que aparente, encorajou as massas, provocando nelas certo movimento, marcou o início da onda democrática que culminou no dia que se seguiu imediatamente ao assassinato de Matteoti[5], conformando a situação atual. Depois das eleições, as oposições tinham assumido uma enorme importância política; a agitação que elas conduziram em seus jornais e no parlamento para questionar ou negar a legitimidade do governo fascista, foi muito eficaz para desmembrar todos os organismos do Estado controlados e dominados pelo fascismo, o que se repercutiu até no próprio seio do Partido Nacional Fascista e comprometeu a unidade da maioria parlamentar. Daí as campanhas inéditas de ameaças contra as oposições e o próprio assassinato de um deputado. A onda de indignação suscitada pelo crime pegou de surpresa o Partido Fascista, que foi tomado de pânico e buscou reaver suas perdas: os três documentos, redigidos nesse momento de tristeza e pesar, por Finzi, por Filippelli e por Cesarino Rossi[6], documentos que foram levados ao conhecimento das oposições, provaram como a própria liderança do Partido Fascista estava em descontrole e acumulara erro sobre erro: a partir desse momento, o regime fascista começou a agonizar e a depender de forças que chamamos de “simpatizantes”[7], forças que o sustentam tal como uma corda no pescoço sustenta o enforcado.

O assassinato de Matteoti deu a prova de que o Partido Fascista não será mais um partido e um governo normais, que Mussolini não possui nada de estadista e de ditador, a não ser seu comportamento pitoresco: Mussolini não é um elemento determinante da vida nacional, é um fenômeno do folclore do interior, destinando a passar à posterioridade sob diferentes máscaras provincianas da Itália ao invés de se estabelecer na linhagem dos Cromwell, dos Bolivar e dos Garibaldi.

A onda popular antifascista provocada pelo assassinato de Matteotti se encontrará sem expressão política na separação dos partidos de oposição no parlamento. A assembléia das oposições deve tornar-se efetivamente um centro político nacional em torno do qual se organiza a maioria do país: a crise que eclodiu no plano sentimental e moral assumiu um forte caráter institucional; foi criado um Estado no Estado, um governo antifascista oposto ao governo fascista. O Partido Fascista foi incapaz de frear essa situação: a crise o atingiu em cheio, devastando os quadros de sua organização; a primeira tentativa de mobilização da Milícia Nacional falhou completamente, apenas 20% dos homens responderam à sua convocação; em Roma apenas 800 milicianos se apresentaram nos quartéis. A mobilização só deu bons resultados em algumas poucas províncias agrícolas, como as de Grosseto e Perúgia, permitindo que fossem a Roma quaisquer legiões decididas a enfrentar uma luta sangrenta.

As oposições permanecem ainda como centrais no movimento popular antifascista, são a expressão política que caracteriza a fase atual da crise social italiana. Desde o início, a opinião da grande maioria do proletariado estava também direcionada para as oposições. Era nosso dever de comunistas, impedir que esse estado de coisas se consolidasse permanentemente. Por isso, nosso grupo parlamentar decidiu fazer parte do Comitê de oposições, reconhecendo e apontando assim o que se tornara o caráter principal da crise: a existência de dois poderes, de dois parlamentos. Se tivessem quisto cumprir seu dever, como as massas em movimento indicavam, as oposições teriam que dar uma forma política definida ao estado de coisas que existia objetivamente, mas elas se recusaram a isso. Deveria ter convocado o proletariado, único capaz de sustentar um regime democrático, deveria aprofundar o movimento espontâneo de greves que estava se delineando. As oposições temiam ser varridas por uma eventual insurreição operária: ao longo de toda campanha destinada a manter a agitação no país, recusaram deixar o terreno puramente parlamentar no tocante a todas questões políticas, assim como se recusavam a deixar o terreno puramente do poder judiciário com relação a tudo que dizia respeito ao assassinato de Matteotti. Os comunistas, que não podiam aceitar nem uma desconfiança da parte da ação proletária nem a forma de bloco de partidos dada ao Comitê das oposições, foram expulsos.

Nossa participação no Comitê num primeiro momento e nossa saída do comitê num segundo momento teve as seguintes conseqüências:

  • Permitiu superar a fase mais aguda da crise sem perder o contato com as grandes massas trabalhadoras; ficando isolado, nosso partido teria submergido na onda democrática.
  • Nós rompemos o monopólio que as oposições ensaiaram instaurar na opinião pública: uma parte cada vez maior da classe trabalhadora está se convencendo que o bloco das oposições representa um semi-fascismo que quer reformar, tornando mais palatável, a ditadura fascista, sem causar nenhum dano aos benefícios dos quais goza o sistema capitalista, que o terror e as ações ilegais lhes tem garantido ao longo dos últimos anos com o rebaixamento do nível de vida do povo italiano.

Dois meses depois, a situação objetiva não mudou. Existem ainda dois governos no país que lutam um contra o outro para disputar as forças reais de organização do Estado burguês. O desfecho dessa luta dependerá dos efeitos que a crise terá no seio do Partido Nacional Fascista, da atitude definitiva dos partidos que constituem o bloco de oposições e da ação do proletariado revolucionário guiado por nosso partido.

Em que consiste a crise do fascismo? Digamos que, pra compreendê-lo, é preciso inicialmente definir a essência do fascismo, mas a verdade é que a essência do fascismo não está no próprio fascismo. A essência do fascismo se encontrava, em 1922-1923, no sistema de relações de forças que existia na sociedade italiana: hoje em dia esse sistema mudou profundamente e a “essência” se dissolveu. O dado característico do fascismo consiste em que ele coordenou a organização de massa da pequena burguesia. É a primeira vez na história que tal coisa se produz. A originalidade do fascismo consiste em ter encontrado uma forma de organização adequada a uma classe social que sempre foi incapaz de ter uma unidade política e uma ideologia unificada: essa forma de organização é o exército em campo. A milícia é, portanto, a protagonista do Partido Nacional Fascista: não se pode dissolver a milícia sem dissolver todo o Partido fascista. Não existe partido fascista capaz de transformar quantidade em qualidade, ou que seja um aparato de seleção política para uma classe ou camada social: existe apenas um agregado mecânico, indiferenciado e indiferenciável do ponto de vista das capacidades intelectuais e políticas, que só vive porque adquiriu na guerra civil um prestígio extremamente vigoroso, grosseiramente identificado com a ideologia nacional. Fora do campo da organização militar, não ofereceu nada e nada pode dar, e mesmo nesse campo, o que ele pode dar é muito relativo.

Assim fabricado pelas circunstâncias, o fascismo é incapaz de realizar qualquer uma de suas promessas ideológicas. Hoje, o fascismo afirma que quer conquistar o Estado; ao mesmo tempo diz querer se tornar um fenômeno essencialmente rural. É difícil compreender como essas duas vontades podem seguir ligadas. Para conquistar o Estado, é preciso ser capaz de substituir a classe dominante nas funções que tem importância essencial para o governo da sociedade. Na Itália, como em todos os países capitalistas, conquistar o Estado significa, antes de tudo, conquistar as fábricas, ter a possibilidade de superar os capitalistas na direção das forças produtivas nacionais. Isso pode ser feito pela classe operária, mas não pela pequena burguesia, que não ocupa nenhuma função essencial no campo produtivo, e que, no interior da fábrica, enquanto categoria industrial, exerce predominantemente uma função policial que não é produtiva. A pequena burguesia só pode conquistar o Estado se aliando à classe operária, aceitando o programa da classe operária, o que significa aceitar substituir o Parlamento pelo sistema dos sovietes na organização do Estado, e também substituir o capitalismo pelo comunismo na organização da economia nacional e internacional.

A fórmula “conquista do Estado” é vazia de sentido na boca dos fascistas, ou então pode significar apenas uma coisa: inventar um mecanismo eleitoral que garanta sempre e a qualquer preço a maioria parlamentar aos fascistas. A verdade é que toda ideologia fascista é absurda, bom apenas como entretenimento para os “Balila”[8]. Essa é uma improvisação de amadores que, no passado, favorecida pelas circunstâncias, iludiu os movimentos de base, mas que é hoje em dia fadada ao fracasso dos próprios fascistas. O único resíduo efetivo do fascismo é o espírito das forças militares, solidificado pela ameaça de uma insurreição popular: a crise política da pequena burguesia, a passagem da esmagadora maioria dessa classe para as fileiras das oposições, a fragilidade das medidas gerais anunciadas pelos chefes fascistas podem reduzir notavelmente a eficácia militar do fascismo, mas não podem anulá-la.

O sistema de forças democráticas antifascista encontra sua força essencial no Comitê parlamentar das oposições, que conseguiu impor uma certa disciplina a todo um conjunto de partidos, desde o partido maximalista[9] até o partido popular. Que os maximalistas e os populares[10] obedeçam à mesma disciplina e trabalhem para realizar um mesmo programa de ação, aí está o traço mais distintivo dessa situação. Isso é o que torna lento o processo de desenvolvimento dos acontecimentos que condicionam a tática de conjunto das oposições, tática de expectativa, de lentas manobras de envolvimento, de paciente desmonte do governo fascista. Os maximalistas, com sua participação no Comitê e sua aceitação da disciplina comum, garantem a passividade do proletariado, dando à burguesia, ainda hesitante entre fascismo e democracia, a segurança de que não haverá ação autônoma da classe operária, senão apenas bem mais tarde, quando o novo governo já estiver constituído e reforçado, quando esse mesmo novo governo já possuir condições de esmagar uma insurreição das massas desiludidas, tanto pelo fascismo como pelo antifascismo democrático. A presença dos populares coloca em jogo uma solução intermediária fascista-popular, como aquela de outubro de 1922[11], que se tornaria muito provável, pois fora imposta pelo Vaticano, caso os maximalistas se separem do bloco das oposições e se aliem a nós.

Os maiores esforços dos partidos moderados (reformistas e constitucionalistas), ajudados pelos populares de esquerda, foram, até o presente, direcionados a um objetivo: manter os dois extremos no mesmo bloco. O espírito servil dos maximalistas ocupou o papel de tolo na farça: os maximalistas aceitaram ter o mesmo peso que o partido dos camponeses e os grupos da “revolução liberal” no interior do bloco das oposições.

A maior parcela das forças de oposição é fornecida pelos populares e os reformistas que possuem grande público nas cidades e no campo. A influência dessas duas partes é complementada por aquela dos apoiadores de Giovanni Amendola[12], que garantiram a adesão ao bloco por certas frações do exército, aquelas do combatentismo[13] e dos tribunais. A divisão do trabalho de agitação se fez pelos diferentes partidos de acordo com suas tendências. Dado que a ação em bloco tende a isolar o fascismo, aos constitucionalistas cabe a direção política do movimento. Os populares conduziram a campanha moral sobre bases dos processos jurídicos ligados ao regime fascista, com a corrupção e a criminalidade que cresceram ao redor do regime. Os reformistas fazem a síntese dessas duas práticas, mas são muito fracos, diante de seu passado demagógico, para que se façam dignos de confiança, de que mudaram e estão na mesma linha que o deputado Amendola e o senador Albertini[14].

A posição coerente e unificada das oposições logrou notáveis êxitos: é um sucesso indubitável ter provocado a crise das “forças de apoio”, ou seja, ter obrigado os liberais a se diferenciarem-se explicitamente do fascismo e impor a estes suas condições. Estas já tinham e terão ainda mais repercussões no seio do próprio fascismo, além de ter criado uma separação entre o partido fascista e a organização central da fração militar composta pelos veteranos[15]. Mas, à medida que se acentuou o caráter conservador do antifascismo, o equilíbrio do bloco de oposição ao fascismo escorregou ainda mais para a direita: os maximalistas não perceberam isso e estão dispostos a servir como base de apoio, não apenas para Amendola e Albertini, mas também para Salandra e Cordona[16].

Como se resolverá essa dualidade de poderes? Haverá um compromisso entre o fascismo e as oposições? Se tal compromisso for impossível, haverá luta armada?

Um tal compromisso não está excluído de antemão, contudo, é muito improvável. A crise que o país atravessa não é um fenômeno superficial que podemos combater com pequenas e parciais medidas: é uma crise histórica da sociedade capitalista italiana, na qual o sistema econômico não responde às necessidades da população. Todas as estratégias são exasperadas: entre as grandes massas da população se espera muito mais do que pequenos compromissos. E se estes compromissos se realizassem, seria o suicídio dos principais partidos democráticos; na ordem do dia da vida nacional, emergiria imediatamente a insurreição armada com objetivos radicais. O fascismo, por sua própria natureza, não tolera colaboradores que lhes sejam iguais em direito, quer apenas escravos acorrentados: não pode existir uma assembléia representativa no regime fascista; cada assembléia se torna imediatamente um centro de manipulação ou um bordel onde os oficiais subalternos ficam embriagados. Daí as crônicas cotidianas registrarem apenas uma sucessão de acontecimentos políticos que denotam a desagregação do sistema fascista, a lenta, mas inexorável, separação de todas as forças de auxiliares[17] do sistema fascista.

Haverá um choque armado? Tanto as oposições como o fascismo evitam algo nessas proporções. Acontecerá um fenômeno inverso ao de outubro de 1922: naquela altura, a marcha sobre Roma foi um movimento espetacular de um processo molecular que viu as forças reais do Estado burguês passar para o lado do fascismo (exército, magistratura, polícia, imprensa, Vaticano, maçonaria, tribunais, etc.). Portanto, caso o fascismo queira fazer resistência, somente ao termo de uma longa guerra civil, à qual não poderão se ausentar o proletariado e os camponeses, ele será destruído. As oposições e o fascismo não querem, e evitam sistematicamente, que um luta intensa tenha início. Ao contrário, o fascismo se esforçará por manter uma base de organização armada, que colocará em ação apenas caso se anuncie uma nova onda revolucionária, longe de desapontar tanto Amendola e Albertini quanto Turati e Treves[18].

O palco está pronto, em acordo com uma data já fixada, para o dia em que a Câmara dos deputados voltará à cena. A encenação militar de outubro de 1922 será substituída por uma coreografia democrática vibrante. Caso as oposições não reintegrem o Parlamento, ou no caso dos fascistas, como já se vem dizendo, convocarem a maioria nos termos de uma Constituinte fascista, haverá uma reunião das oposições já com semblante de luta entre as duas assembléias.

Contudo, é possível que a solução se encontre no âmbito da própria esfera parlamentar, quando as oposições a ela retornarem, no caso de uma provável cisão na maioria que colocasse em minoria o governo de Mussolini. Nesse sentido, haveria a formação de um governo provisório de generais, senadores e ex-presidentes do Conselho, a dissolução da Câmara e a proclamação do estado de sítio.

O processo judicial do assassinato de Matteoti continuará a alimentar a crise. Quando se tornarem públicos os três documentos, de Finzi, Filippelli e Rossi, haverá momentos de tensão dramática e personalidades do alto escalão do regime estarão sob o jugo do clamor popular. Todas as forças reais do Estado, especialmente as forças armadas, onde já se começa a debater a questão, deverão se alinhar a um dos lados, impondo uma solução já definida e consensual.

Quais devem ser as atitudes políticas e táticas de nosso partido na situação atual? Se a situação é “democrática”, isso ocorre porque as grandes massas trabalhadoras estão desorganizadas, dispersas e pulverizadas no próprio seio da indiferença do povo. Porque, independente de qual for o desenvolvimento imediato da crise, podemos prever apenas pequenas conquistas da classe operária e não sua luta vitoriosa pelo poder. A tarefa essencial de nosso partido consiste na conquista da maioria da classe trabalhadora, a fase que atravessamos atualmente não é a da luta direta pelo poder, mas uma fase preparatória de transição para a luta pelo poder, em suma, é a fase de agitação, de propaganda, de organização. O que evidentemente não exclui que possam ocorrer lutas sangrentas e que nosso partido não deve se preparar desde já para o enfrentamento, ao contrário: essas mesmas lutas deverão ser entendidas, no quadro da fase de transição, como os elementos de propaganda e agitação para a conquista da maioria. Se no nosso partido existem grupos ou tendências que, por fanatismo, gostariam de forçar a situação, será necessário também combatê-los em nome de todo o partido e dos interesses vitais e permanentes da revolução proletária italiana. A crise do assassinato de Matteoti nos trouxe, quanto a isso, muitos ensinamentos. Ensinou que as massas, depois de três anos de terror e opressão, tornaram-se muito prudentes e não querem dar um passo maior que a perna[19]. Essa prudência se chama reformismo, se chama maximalismo, se chama “bloco das oposições”. Ela está certamente fadada a desaparecer num lapso de tempo muito curto: mas enquanto existir só pode ser superada se, em cada dia, em cada ocasião, em cada momento, avançando, não perdermos o contato com o conjunto da massa trabalhadora. Portanto, precisamos lutar contra toda tendência de direita que buscar um compromisso com as oposições, que tentar criar entraves aos desenvolvimentos revolucionários, à nossa tática e ao trabalho de preparação para a fase futura.

A primeira tarefa do nosso partido consiste em se ajustar de modo a ser capaz de cumprir sua missão histórica. Deve se formar em cada usina, em cada cidade uma célula que represente o partido e a Internacional, que saiba trabalhar politicamente e tenha iniciativa. Por isso, é preciso lutar contra certa passividade que existe em nossas fileiras, contra a tendência de não aumentar os quadros de nosso partido. Devemos nos tornar um grande partido, devemos nos concentrar em trazer para nossas organizações o maior número possível de operários e camponeses revolucionários para os preparar para a luta, para formar os organizadores e os dirigentes de massa, para aumentar seu nível político. O Estado operário e camponês só pode ser construído se a revolução tiver à disposição muitas pessoas qualificadas; a luta pela revolução só pode ser vitoriosa se as grandes massas estiverem sendo guiadas nas formações locais por camaradas honestos e capazes. Caso contrário, acabarão retornando, como dizem os reacionários, aos anos 1919-1920, ou seja, aos anos da impotência do proletariado, aos anos de demagogia maximalista, aos anos da derrota da classe trabalhadora. Nós comunistas não queremos mais retornar aos anos 1919-1920.

Um grande trabalho deve ser realizado pelo partido no campo sindical. Sem grandes organizações sindicais não saímos da democracia parlamentar. Os reformistas podem querer os pequenos sindicatos, podem formar corporações apenas com operários qualificados. Nós, comunistas, queremos o contrário dos reformistas e devemos lutar para organizar as grandes massas. Certamente, é preciso colocar o problema concretamente e não apenas formalmente. Se as massas abandonaram os sindicatos, é porque a Confederação geral do trabalho[20], que tem grande eficiência política (nada mais é que o Partido Unitário[21]), não se preocupa com os interesses vitais das massas. Não podemos considerar a criação de um organismo novo que tenha por objetivo superar a negligência da Confederação; contudo, podemos, e devemos, nos concentrar no problema de desenvolver, por meio das células das fábricas e dos bairros, uma ação efetiva. O Partido Comunista representa a totalidade dos interesses e aspirações da classe trabalhadora: não somos um simples partido parlamentar. Nosso partido conduz uma verdadeira e autêntica ação sindical, se coloca à frente das massas precisamente nas pequenas lutas cotidianas por salário, pela duração da jornada de trabalho, pela disciplina industrial, pela habitação, pelo pão. Nossas células devem impulsionar as comissões das fábricas a incorporar todas as atividades proletárias no seu funcionamento. É necessário, consequentemente, suscitar nas fábricas um vasto movimento capaz de alargar-se sobre uma organização de comitês proletários das cidades eleita diretamente pelas massas, que na crise social que se anuncia, assuma o controle dos interesses gerais de todo o povo trabalhador. Essa ação concreta nas fábricas e nos bairros, revalorizará os sindicatos, dando-lhe de volta um conteúdo e uma eficiência se, paralelamente, se verificar o retorno à organização de todos os elementos de vanguarda para lutar contra os atuais dirigentes reformistas e maximalistas. Aqueles que se mantém atualmente afastados dos sindicatos são hoje um aliado dos reformistas e não militantes revolucionários: poderá muito bem se valer de uma fraseologia arquisante[22], mas não fará mover um milímetro as condições reais nas quais a luta se desenvolve.

O modo como nosso partido como um todo, sua massa de militantes, terá sucesso em cumprir sua tarefa essencial de conquista da maioria dos trabalhadores e de transformação molecular das bases do Estado democrático, demonstrará o grau de nosso progresso rumo à revolução e permitirá a passagem a uma fase posterior do desenvolvimento. O partido por completo, em todos os seus organismos, mas especialmente na imprensa, deve trabalhar unificadamente para obter de cada um o seu máximo de esforço. Hoje estamos alinhados na luta geral contra o regime fascista. Respondamos às estúpidas campanhas de jornais das oposições dando a prova de nossa real vontade de abater não apenas o fascismo de Mussolini e Farinacci[23], mas também o semi-fascismo de Amendola, Sturzo e Turati[24]. Para tanto, é preciso reorganizar as massas e tornar-nos um grande partido, o único que a população reconheça como expressão de sua vontade política, defensor tanto de seus interesses mais imediatos quanto aqueles mais permanentes na história.


* Mario Matos – professor da rede estadual de ensino de Minas Gerais e militante do PCB na corrente sindicalista Unidade Classista, no Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais – Sind-UTE/MG.


Notas:

[1] Apparato di produzione, no original. Na tradução francesa, appareil de production. Nesta tradução será mantida a noção semântica de aparato, embora uma leitura crítica pareça permitir seu entendimento como “forças produtivas”, num sentido marxiano.

[2] Mezzadri­ ­­– uma modalidade semelhante à parceria no Brasil. Trata-se de uma forma de arrendamento, na qual o agricultor ingressa com a força de trabalho e o proprietário fundiário garante a terra e os insumos. Existem diferentes formas repartição dos lucros, a depender do acordo estabelecido.

[3] Gramsci usa pressione demográfica. No francês, pousée demographique. Para entendimento do termo, a definição geográfica de densidade demográfica, que indica a relação “habitante por quilômetro quadrado”, pode oferecer subsídios para ilustrar a questão. Sem emigração, prática corrente da região Sul naquela altura, com fluxos inclusive para o Brasil, o número de habitantes tornou-se maior, ou seja, maior considerando as dimensões territoriais da região sul.

[4] Medida equivalente a 100 quilogramas. No orginial, quintali (no plural). Quintaux, na tradução francesa.

[5] Referência ao assassinato de Giacomo Matteoti, eleito em 1919 deputado pelo Partido Socialista Unitário, por um grupo fascista, em 10 de junho de 1924, pouco após as eleições de 6 de abril mencionadas por Gramsci, caracterizando um momento de acirramento do terrorismo do regime fascista. Em 30 de maio, Matteoti havia discursado no Parlamento dizendo que o Partido Nacional Fascista havia fraudado as eleições gerais de abril.

[6] Aldo Finzi, Filippo Filippeli e Cesare Rossi. Aldo Finzi era militar e político, sendo nesta altura subsecretário e vice-comissário da Força Aérea do governo de Benito Mussolini.  Foi um dos organizadores da Marcha sobre Roma. As investigações do assassinato de Matteoti chegaram a seu nome, o que levou a sua renúncia. Redigiu um documento que continha informações comprometedoras indicando a existência de uma equipe especial no Ministério do Interior. Filippo Filippeli era secretário de Arnaldo Mussolini, irmão de Benito Mussolini. Foi cúmplice do assassinato de Matteoti fornecendo o veículo no qual o deputado do Partido Socialista Unitário fora seqüestrado. Ainda em 1924 escreveu seu testemunho e participação no crime como forma de suplicar sua inocência. Neste testemunho, afirmou a existência de uma polícia no interior do Partido Nacional Fascista, responsável por atividades clandestinas e ilegais. Cesare Rossi era um político e sindicalista fascista. Ocupou o cargo de chefe da assessoria de imprensa do gabinete do Primeiro Ministro no governo Mussolini e vice-secretário do Partido Nacional Fascista. Foi um dos organizadores da polícia secreta do Partido Nacional Fascista, a Ceka. Estava diretamente envolvido no assassinato de Matteoti. Ficou foragido durante alguns dias, depois dos quais reapareceu junto de uma nota publicada no jornal Il Mondo, na qual acusava Mussolini como responsável pelo crime. De acordo com seu relado, Mussolini havia lhe dito “este homem não deve mais circular”, referindo-se a Matteoti e mais particularmente ao teor de seu discurso sobre a fraude nas eleições de 6 de abril de 1924 perpetrada pelo Partido Nacional Fascista.

[7] No original “fiancheggiatrici” – ver em L’Ordine Nuovo, 1 de setembro de 1924. Acesso em: http://www.centrogramsci.it/riviste/nuovo/ordine%20nuovo%20p6.pdf

[8] Aparentemente uma espécie de formação para a juventude nos termos da ideologia defendida pelos nacionalistas fascistas. Cristina Souza da Rosa, doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, afirma em “Pequenos soldados do fascismo: a educação militar durante o governo Mussolini”, que “A Opera Nazionale Balilla foi criada em 1926, nos moldes da organização dos Boys Scouts, com o objetivo de educar moralmente, psicologicamente e fisicamente os futuros fascistas”. Material publicado pela revista Antíteses, vol. 2, n. 4, jul. – dez. de 2009, pp. 621-648, Universidade Estadual de Londrina (http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/viewFile/2704/3929).

[9] “O maximalismo, conhecido sobretudo como corrente política no interior do Partido Socialista Italiano, criado por Giacinto Menotti Serrati em 1919, busca realizar os objetivos anticapitalistas e revolucionários do socialismo, mesmo se, de fato, tenha uma ação reformista e parlamentar. O qualificativo é, de fato, historicamente mais amplo. O termo foi por muito tempo utilizado também para designar o anarquismo e o marxismo revolucionário como extremismo, em razão dos programas do século XIX que se completavam: programa máximo e programa mínimo. Com a onda revolucionária no começo do século XX, a maioria dos anarquistas e dos marxistas revolucionários rejeitaram o reformismo (programa mínimo) para defender o programa máximo” (traduzido de Wikipédia <https://fr.wikipedia.org/wiki/Maximalisme>).

[10] Gramsci usa “i popolari” referindo-se aos integrantes ao Partido Popular Italiano. Frações desse partido participaram do governo Mussonili. Em 1925, no seguinte a esta publicação, o partido foi declarado ilegal pelo regime fascista.

[11] Marcha sobre Roma, em 29 de outubro de 1922, performada e organizada pelo Partido Nacional Fascista liderado por Benito Mussolini. Há um livro chamado “O papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa”, publicado no ano de 2014, de David I. Kertzer, antropólogo e historiador estadunidense, cujo propósito é desvelar a relação entre o Vaticano o as forças políticas do fascismo (https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/05/como-igreja-catolica-ajudou-consolidar-o-fascismo.html#:~:text=A%20hist%C3%B3ria%20de%20como%20a,pol%C3%ADtica%20e%20religiosa%20da%20It%C3%A1lia.); e também em ( https://www.theguardian.com/books/2014/mar/06/pope-mussolini-secret-history-rise-fascism-david-kertzer-review)

[12] Giovani Amendola, jornalista liberal que já havia ocupado cargo de ministro no Ministério das Colônias no governo do primeiro ministro Francesco Saverio Nitti; era defensor de ideais liberais Jornalista e político liberal, chegou a ser deputado por três mandatos e ministro. Alinhado a uma coalisão liberal, foi derrotado nas eleições de 1924. Sua força no cenário italiano ganhou peso após publicações ligando a morte do deputado Matteoti a Mussolini. Foi assassinado pelo regime fascista em 1926.

[13] Combatentismo – movimento nacionalista de direito formado por veteranos da segunda guerra. Na tradução em francês “mouvements d’anciens combattants”, literalmente “movimento dos veteranos”.

[14] Luigi Albertini, jornalista e político antifasista.

[15]Combattentismo, formado por veteranos do exército real.

[16] Luigi Cadorna, que se tornaria marechal de Mussolini em 1924, e Antonio Salandra, ex-primeiro ministro (1914-1916) e apoiador da ascensão de Mussolini ao poder.

[17] Forze periferiche no original, e forces annexes, na tradução francesa.

[18] Filippo Turati, um dos fundadores do Partido Socialista Unitário (PSU), em 1922, ao qual pertencia o deputado G. Matteoti que foi assassinado em 1924. Turati era membro do Partido Socialista Italiano (PSI) antes de 1922, quando já apontava a necessidade de superação do programa do PSI de combate ao fascismo e defendia alianças estratégicas com a oposição. Isso acabou por produzir uma cisão no PSI, sua saída do partido e sua conseqüente participação na fundação PSU.  Claudio Treves, foi também um dos fundadores do PSU e ex-membro do PSI.

[19] No original: non vogliono fare il paso più longo della gamba; na tradução francesa: ne veulent avancer qu’à pás comptés.

[20] Confederazione Generale del Lavoro – organização sindical fundada em Milão em 1906. Boa parte da composição de suas lideranças e dirigentes eram militantes do Partido Socialista Italiano. Durante o governo fascista, atuou clandestinamente.

[21] Partito Socialista Unitario ­­– Partido Socialista Unitário (1922-1930).

[22] Fraseologia anarcoide, no original. “Phraseologie anarchisante”, na tradução em francês.

[23] Roberto Farinacci, membro do Partido Nacional Fascista e fundador do diário Regime Fascista.

[24] Luigi Sturzo, sacerdote católico e fundador do Partido Popular Italiano.


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