Por Adriana Marino
Insistamos, pois ainda é preciso trazer algumas palavras sobre o isolamento social e porque receio que este seja mais um texto sobre os efeitos psíquicos da pandemia. Há quem diga que a quarentena é uma oportunidade. Desde a posição privilegiada do isolamento, em nossas ilhas mais ou menos burguesas, com ou sem sacadas e quintais, a imparidade do isolamento seria uma oportunidade para povoarmos a vida com vídeos de yoga, leitura de livros abandonados em estantes, oportunidade de aprender um segundo ou terceiro idioma, além de participar do curso gratuitamente oferecido de uma universidade internacional de renome qualquer. O reduto parecia oportunidade ideal se não fosse como, de fato, não é: férias ou spa.
Aviso de prudência à saúde psíquica do leitor: este é um texto pessimista da peste. Sua leitura representa um desserviço às lutas cotidianas daqueles que têm enfrentado, a duras penas, a quarentena ou, na hipótese de estarem prestes a desistir dela, também um desserviço à saúde pública e coletiva. Apesar de não trazer um empuxo para que se fure a referida medida, o conteúdo do texto pode fazer mal ou… piorar.
Antes de pirarmos, algumas observações sobre este nosso cotidiano em pouco mais de cem dias de solidão. Ainda não temos ideias claras e distintas sobre como este vírus se comporta, de tal modo que passamos a ler e assistir aos noticiários, além dos últimos artigos científicos e lives da semana para, quem sabe, tatear nosso dia a dia e descobrir o que fazer com as compras do mercado. Além do álcool-gel, o álcool 70%, o álcool pulverizado no capacho, água sanitária, sabão e outros produtos, o uso da máscara deixou de ser um simples equipamento de proteção individual (EPI) para um critério formal de educação, índice de pudor equivalente à nudez em público, método incerto para a proteção coletiva – já que nunca se sabe se a máscara encontra-se bem lavada ou corretamente utilizada – até para um metadiagnóstico de bolsonarista-negacionista à vista.
Não se tem ideia da duração do vírus – este troço sem vida, mas que insiste em querer apropriar-se e acabar com ela. Não se sabe quanto tempo dura por sobre as superfícies de metal, madeira ou plástico. Há quem lave as compras do mercado enquanto deixa as sacolas plásticas de quarentena, de nove a 15 dias, para não ter de lavar ou jogá-las definitivamente fora. Há, muito especialmente, dúvidas em relação aos ovos. Não exatamente quanto ao seu simples consumo – frito, mexido ou cozido –, tampouco como item a ser sofisticado por receitas da internet, mas quanto à sua correta desinfecção. Estamos imersos em tempos que nos convocam a práticas de excessivo cuidado, medo e limpeza por todos os lados, como se fôssemos enfermeiros ou médicos intensivistas, em constante capacitação para viver em ambientes hospitalares ultra higienizados, mas também como obsessivos, fóbicos e paranoicos tradicionais dos redutos de nossos consultórios clínicos.
Suspiremos. Além do indecidível método para a limpeza das compras, da insegurança quanto à eficácia do uso de máscaras de panos coloridos e temáticos, temos a incógnita sobre estar ou simplesmente se comportar como um constante infectado, num abismo assintomático, sob a correição para entrar e sair de casa e atentar ao metro e meio de distanciamento de qualquer pessoa. Temos também dúvidas em relação aos espaços abertos. Se não há pesquisas cabais que digam quanto tempo dura o perdigoto tóxico em ambientes fechados, também não se encontra pesquisas que afirmem que o vírus borboleteia pelo ar, o que torna atividades, como caminhadas, corridas e passeios de bicicleta ao ar livre, não somente um possível risco social como também o famigerado julgamento de que se trata de mais um bolsominion.
Aliás, tenho escutado bastante sobre a percepção de que boa parte daqueles que praticam atividades ao ar livre sem máscara é composta por homens brancos cisgêneros, o que daria uma boa pesquisa sobre o lugar de poder insistente do masculino em nossa cultura ou, simplesmente, um mais do mesmo do reiterado machismo cotidiano. Além disso, intuitivamente sabemos que, se todos nós acordássemos em circular por ambientes abertos – na hipótese de o vírus não se espraiar por aí – haverá aglomeração, inclusive nas praias e praças públicas. Neste caso, o vírus propagará como monstrinhos do Pac-Man. Como escutei, recentemente, em uma banca de qualificação de mestrado, paradoxalmente, ocupar espaços públicos se tornou um ato reacionário.
Por falar em monstrinhos, ainda estamos sem Ministro da Saúde. Mas, vejam pelo lado positivo e sem perplexidade, disso extraímos uma primeira certeza: encontramo-nos sob os aportes de uma nau desgovernada e reconhecemos um tanto de nossa situação – de desespero e angústia frente a uma experiência que traz consigo excessos de indeterminação, incrementados pelas poucas ou nula experiência de prazer. Quero dizer da certeza de que um tanto de nossa situação tem um lugar específico. Este deve ser colocado na peste de nossos governos e seus representantes. Para que não pareça mero ressentimento, explico: trata-se de dar ao governo a sua responsabilidade, a parte do bombom daquele ex-ministro mal-educado. Fazê-los engolir, goelas abaixo, já que parecem trazer um gosto cínico em devorar.
Insistamos, pois ainda é preciso trazer algumas palavras sobre o isolamento social e porque receio que este seja mais um texto sobre os efeitos psíquicos da pandemia. Há quem diga que a quarentena é uma oportunidade. Desde a posição privilegiada do isolamento, em nossas ilhas mais ou menos burguesas, com ou sem sacadas e quintais, a imparidade do isolamento seria uma oportunidade para povoarmos a vida com vídeos de yoga, leitura de livros abandonados em estantes, oportunidade de aprender um segundo ou terceiro idioma, além de participar do curso gratuitamente oferecido de uma universidade internacional de renome qualquer. O reduto parecia oportunidade ideal se não fosse como, de fato, não é: férias ou spa.
Aconteceu que o empuxo à produção, isto é, em não se acovardar e fazer nada, produziu seu avesso. Sem pretender generalizações, mas o que ando escutando em sessões on-line, de familiares on-line, colegas e amigos on-fucking-line, é um aumento do quantum em jogo nas neuroses – hipercatexias por sobre o pouco que restou. Ouso dizer que, quem ainda não passou por uma crise nesta quarentena, não a viveu ou, como é esperado em situações de emergências e desastres, que a crise emerja a posteriori. Os filhos em casa, a limpeza doméstica, a violenta imposição da condição de desempregado, o aumento da precarização nos serviços e mesmo o sobretrabalho gerado por plataformas online, criam ou inflamam nossas formas de sofrer.
Não bastasse a completa ou parcial impotência frente aos ditames do momento, por incrementar e tornar esta condição de vida uma imposta oportunidade, algo mais significativo se tornou gritante: a neura pelos quatro cantos da sala de estar. Mesmo a ótima, suficiente ou somente boa companhia tornou-se, conforme escuto em tantas sessões, pouco íntima com aqueles poucos com quem se passa a quarentena. O novo normal se situa, além dos pijamas, entre o vestir as novas vestes do capitalismo que, como a peste, adentra pelas portas e segue apropriando-se normalmente da vida, à constatação de uma experiência demasiadamente neuróticocentrada – como resultado do empobrecimento de nossa capacidade desejante.
Há quem esteja passando a quarentena com alguns, geralmente poucos, e o que tenho escutado é que isso tende a produzir um sufoco. Em espaços cercados por poucos metros quadrados, a reduzida convivência e o não poder sair de casa, tornam companhias e atividades excessivamente diárias, gatilhos para a emergência do que há de pior em nós. Eis a hiperneurotização endêmica que assola em tempos de pandemia. Reduzidos espaços sociais e encontros restritos aos ambientes online, ampliam outro espaço, a saber, um espaço a ser plenamente povoado pelos conflitos intrapsíquicos e por conflitos atrozes no interior das reduzidas relações com estes poucos outros.
Quero dizer que, se existe boa oportunidade em tempos de pandemia, esta é dedicada à importuna neurose. É ela quem ganha, magistralmente ocupa o salão de festas do casamento cancelado, a roda de samba suspensa, o encontro para o debate protelado, o show também postergado, o bar adiado com os amigos, parque de diversões, praias, parques e ruas. O resultado é uma modalidade inflacionada, inflamada mesmo, de nossas formas mais ou menos acostumadas de sofrer.
O vírus não só se achega com as compras do mercado, com os perdigotos impregnados em máscaras e roupas, sobre a casca de ovos orgânicos de galinhas criadas livremente, podendo matar a qualquer um. Aliás, mata principalmente idosos e pessoas mais vulneráveis, aquelas tornadas descartáveis por negacionistas, reforçadas pela classe endinheirada, dotada de planos de saúde, e pelos representantes do poder. Mas o vírus se achega e se apropria mesmo é do espaço vazio criado pelo pouco de prazer que nos resta. A quarentena, supostamente, apesar dos apelos otimistas sugeridos por discursos afora, faz com que a gente se depare com a gente mesma. E restamos atentos, porém, desconhecendo-nos profundamente.
Frente à impotência do ocaso da pandemia, a série de restrições instiga catexias por sobre o pouco que restou: o estar consigo mesmo e, com certa sorte, com alguns outros. É como se o espaço apertado comprimisse também o cérebro e, como tentativa inconsciente de defesa, a atividade psíquica passasse a se alimentar, como manifestação do movimento pulsional constitutivo do desejo humano, daquele antigo bichinho virtual da virada do milênio, o Tamagotchi da neurose.
Chegamos até a supor que a solidariedade fosse tarefa suficiente para gerar algum contentamento, uma espécie de otimismo revolucionário. Contudo, fingimos não ver a exposição da peste por sobre comunidades onde o Covid parece jamais ter chegado, como em favelas e por meio de encomendas, comestíveis ou outras, por motoqueiros de aplicativos. Segunda certeza: essas entregas aproximam a classe média da submissão ao trabalho arriscado e forçado pela sobrevivência – revelando boa parte de uma falsa solidariedade. Enquanto isso, a tal cortina de fumaça produzida cotidianamente pelo governo segue com os disparates do presidente, que enchem de visco nossas resguardadas moradias. Seguimos solitários, porém solidários.
Tática do medievo, a quarentena é bela oportunidade para que governos se ausentem do dever que têm de implementar políticas sociais, ao invés de apenas colocar por sobre os ombros dos cidadãos toda a responsabilidade. Nossa atual peste tem servido bem, isto é, oportunamente, à pós-verdade. Pode ser que a vacina chegue no final deste ano, como pode não chegar e também não se sabe se ela será suficiente ou capaz de imunizar a todos. Este vírus radicaliza o caráter miserável do humano frente à natureza e nos coloca frente a frente com o insabido. Talvez, psicanalistas, aqui, sintam-se mais em casa do que nunca: lugar de dejeto. Assunção à castração soa como música para nossos ouvidos.
Em lives já mortas pelo cansaço provocado no excesso de virtualidade, a vida torna-se morna e mesmo fria com a chegada do inverno. Após suspiros de entusiasmo, escuto de analisandos sobre seus corpos preguiçosos e órgãos cansados. A visão sem o olho no olho pelos dispositivos de câmera; a audição, cujos aparelhos não permitem a orquestra de vozes simultâneas; o tato tornado pouco ou oco, somam-se a uma espécie mesmice ou ausência de registro do olfato.
A restrição do espaço, dentro de casas, apartamentos e seus parcos ou pequenos cômodos, faz emergir um inevitável desconforto. Mesmo a virtude de um quintal comprime as cabeças. Em cafés da manhã, uma torrada torna-se um quiproquó de um casal de meia idade; as relações se exasperam, os problemas estão, a todo o tempo, demasiadamente próximos, excessivamente presentes, estão como o vírus: por toda a pequena parte. Para alguns, talvez só seja possível um lar quando se possa retornar. Enquanto a imagem congela, a internet cai, escuto um breve silêncio e me dou conta de que escrevo mais um texto sobre os efeitos psíquicos da peste.
* Psicanalista. Graduada em Psicologia pela Universidade São Marcos e em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP). Mestre e doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da (IPUSP). Membro do Fórum do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt. Docente do Programa de Residência em Psiquiatria da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.