Entrevista a Gustavo Seferian, por Gabriel Landi Fazzio.
Militante e advogado trabalhista, Gustavo Seferian desenvolve em seus estudos uma reflexão marxista sobre o direito do trabalho – e uma crítica ideológica das ofensivas neoliberais contra o mesmo. Entrevistado, o pesquisador debate o avanço das formas de terceirização, o mito da “inspiração fascista” da CLT e a posição da classe trabalhadora frente ao direito do trabalho, nos tempos atuais.
“Por certo a fragmentação das unidades de produção e o esfacelamento dos laços classistas típicos do arranjo fordista trazem dificuldades à organização da classe trabalhadora em luta. Daí a aderir à paralisia romântica do fordismo, acho que é besteira.”
Sua obra de mestrado, “A Ideologia do Contrato de Trabalho”, será publicada em breve na forma de livro.
Você acaba de lançar, em conjunto com Jorge Luiz Souto Maior e Paulo Yamamoto Carvalho, o livro “O Mito: 70 anos da CLT”, publicado pela LTr. Por que falar em mito?
Gustavo Seferian: Essa é uma ótima pergunta, Gabriel, a esclarecer os intuitos que tivemos com a publicação da obra coletiva. Uma abordagem incauta do título do livro pode trazer eventuais avaliações errôneas quanto ao seu conteúdo. Explico-me: os textos presentes na obra são resultado de um processo coletivo encabeçado pelo Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC-USP), do qual nós três – Jorge, Paulo e eu – damos corpo desde sua criação, em meados de 2013. Naquele ano, no bojo das discussões de estudiosos e operadores do Direito do Trabalho, não se falava em outra coisa que não nos 70 anos da CLT. Na voz dos arautos da burguesia, “os 70 anos” eram propalados para animar a idéia de que nossa legislação trabalhista era vetusta, há tempos idosa, pelo que comportava urgente flexibilização (em proveito do capital, bem digamos). Nas vozes de outros tantos, ditos “progressistas” – e a meu ver, ainda defensores do modelo de exploração e reprodução social que dá o tom na nossa sociedade contemporânea –,os 70 anos recém completos anunciavam o alicerce de um monumento inabalável, monolítico e sem fissuras. Aliado a essa posição, bem verdade, recobrava-se o falacioso discurso de que sete décadas antes, fora Getúlio Vargas a forjar a proteção jurídica do trabalhador no Brasil, cristalizada na Consolidação. Uma dádiva do ditador, que veio a ser apreendida criticamente pela teoria social como o “mito da outorga”. Era esse o cenário que nos víamos envoltos, e que nos levou a desafiar tais concepções para, em coletivo e no curso do segundo semestre de 2013, ousar afirmar uma outra leitura do Direito do Trabalho: semanalmente, nos detivemos diante de textos que anunciam que o arranjo das relações de produção é fruto de processos históricos, e que o Direito do Trabalho em particular é conquista histórica da classe trabalhadora em luta. Só a partir dessas premissas poderia ser o Direito do Trabalho objetivado em sua complexidade e dinamicidade contraditória, sem mistificar ou turvar as análises feitas por aqueles que sobre ele se atém. Não por outra razão cada um dos artigos que compõem o livro – elaborados por membrxs do GPTC, bem como por professorxs convidadxs para colaborar com a obra e com nosso seminário de final de semestre, ocorrido em dezembro daquele ano –, anunciam, em recorte histórico-social específico, a importância dessa compreensão.
Assim, a perspectiva que pretendíamos – e que conseguimos em larga medida – alcançar era a reafirmação de que estas leituras idealistas do Direito do Trabalho são redutíveis à compreensão histórica da proteção jurídica da classe trabalhadora. Não por outra razão o “mito” venha entre aspas…
Em sua dissertação de mestrado, “A ideologia do contrato de trabalho”, você menciona a questão da materialidade da ideologia, tema que buscamos aprofundar. De que forma esse tema guarda relação com o direito do trabalho?
Gustavo Seferian: Pois bem. Essa idéia da materialidade da ideologia decorre, em larga medida, do construto althusseriano dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Sabe, não sou nada afinado com a leitura marxista de Louis Althusser e seus seguidores, mas o reconhecimento de uma idéia fundamental, teoricamente impactante, ainda que não vindique a tradição estruturalista, é um dever de coerência intelectual. É o caso dos AIE…
E penso que o imbricar de distintas abordagens da ideologia na formação de um conceito uno e dialético – tal qual fez Zizek, em seu Um Mapa da Ideologia, obra que tomei em meu mestrado por referência conceitual primeira – não poderia deixar de passar pelos AIE. Compreender a complexidade da ideologia nos leva a abandonar uma leitura que a afirma apenas como um conjunto de idéias concatenadas que dão o tom a práticas sociais, ou como instrumental para anuviar a realidade. A ideologia é mais que isso. Tem sua existência cristalizada em instituições e institutos – daí a importância da compreensão dos AIE – e se afirma e reproduz no seio das próprias dinâmicas sociais.
Dessa forma, imagino que a materialidade da ideologia está intimamente ligada ao Direito do Trabalho. Enquanto construto sócio-político do modelo capitalista, ainda que conquistado e delineado pela classe trabalhadora em luta, certo é que se alicerça em marcos ideológicos. Mas sua compreensão não pode se esgotar nessa faceta. O ampliar dialético da compreensão da ideologia, tal qual proposto por Zizek, dá a riqueza e potência dessa proposta que pretende abordar o ideológico em seu “em-si”, “para-si” e “em-si e para-si”. O grande problema é que – por conveniência ou familiaridade com o positivismo – uma parcela significativa dos juristas marxistas acaba esgotando suas críticas do direito nesse aspecto único, da ideologia “para-si”, dentro da chave dos AIE. Algo a se debater longamente, que penso não ter espaço nesse momento. Mas trata-se de questão fundamental para compreensão da crítica marxista do direito, seus limites e perspectivas.
No Brasil, até a legislação trabalhista varguista ser editada, a compra e venda da força de trabalho era realizada por meio de um contrato civil, o que pressupunha a igualdade formal entre as partes. Seria correto dizer que essa igualdade é “ideológica”?
Gustavo Seferian: Não há sombra de dúvida que esta igualdade formal, burguesa e liberal imanente ao ajuste contratual existente entre o vendedor da força de trabalho e seu explorador-contratante – ou seja, sob o império da autonomia privada individual nas relações laborais – reveste-se de marcos ideológicos. Seja antes do fundar de nossa legislação trabalhista, seja na afirmação do discurso neoliberal de nossos dias.
Uma vez reconhecida a desigualdade material entre o empregador e o empregado, o direito do trabalho parece querer fazer-nos crer que a desigualdade formal que ele positiva (nos ritos processuais, por exemplo, na inversão do ônus da prova) seria capaz de remediar a desigualdade material entre o capital e o trabalho. De que forma o advento do direito do trabalho representa uma ruptura ou uma continuidade com a ideia de uma igualdade jurídica entre o empregador e o empregado?
Gustavo Seferian: Sua pergunta vem bem a calhar, e fecha totalmente com a anterior.
Não podemos perder de mente o seguinte: tão ideológico quanto o discurso que prima pela igualdade formal dos contratantes – ainda que tão distintas sejam as condições materiais de cada um – é o discurso que afirma que uma desigualdade jurídica – a proteção jurídica do trabalhador – anula o descompasso econômico existente entre os sujeitos de direito do contrato de trabalho. Tanto uma igualdade quanto a outra são, igualmente, ideológicas, ainda que sejam instrumentalizadas para funcionalidades distintas. Chegando ao cerne de sua questão: “o advento do direito do trabalho representa uma ruptura ou uma continuidade com a ideia de uma igualdade jurídica”? É difícil dizer…de um lado, por certo, a proteção do trabalhador imprime um abrandar na lógica irrefreada de exploração imposta pelo capital. De outra, viabiliza condições mínimas para que a força de trabalho se reproduza, e o modo da exploração capitalista se renove. Dessa forma, entre “ruptura” e “continuidade”, fico com os dois. É a essência contraditória do Direito do Trabalho, que nesse processo de suprassunção (Aufhebung) dialética prima pelo novo e guarda o velho.
Mas voltando: todo discurso é ideológico. O meu é, o seu também. Consciente disso, pelo menos, sei a posição de classe que optei defender. A da classe trabalhadora, que seguindo Löwy, coloco em posição privilegiada para aferir sua Verdade transformadora do mundo, em busca de uma sociedade mais justa e igualitária a todos e todas.
Existe uma crítica corrente na esquerda brasileira segundo a qual nosso direito trabalhista teria inspiração no corporativismo fascista, notadamente por conta das disposições de direito coletivo do trabalho, como a unicidade sindical e o imposto sindical obrigatório. Suas pesquisas nos marcos da ideologia justrabalhista corroboram ou desmistificam esse tipo de crítica?
Gustavo Seferian: Minha pesquisa de mestrado, especificamente, não se propôs a debater de forma ampla as questões relacionadas ao Direito do Trabalho em sua faceta coletiva. Abordei o contrato, larga medida, em sua acepção individual. O contrato individual – entre burguês e proletário – de compra e venda da força de trabalho. De toda sorte, a questão sempre me despertou interesse e seria impossível dizer que ela está à margem de minhas pesquisas. Sobretudo nesse momento em que desenvolvo meu doutorado e me dedico cada vez mais ao GPTC-USP. Enfim, tenho alguns pitacos a dar: primeiramente, acho que é inconteste a influência corporativista da nossa legislação trabalhista, sobretudo no tocante às relações sindicais. Olha que curioso: há quem diga, por exemplo, que a CLT teve sim foi influência do direito soviético! É o caso do jornalista político José Augusto Ribeiro. Não chegaria a esse ponto, porém. Os traços corporativistas na regulamentação sindical são mesmo marcantes. Mas daí anunciar que se trata de uma cópia ou tradução da Carta Del Lavoro italiana só pode ser fruto de ignorância ou má-fé deliberada. Tempos atrás, houve um reavivar dessa história, inclusive com publicação de livros sobre a influência fascista no Direito do Trabalho brasileiro, tudo no intuito de dizer que este teria que ser “modernizado”, “reformado”, “flexibilizado”. Ora, dizer que o Direito do Trabalho, em sua perspectiva sindical, necessita transformações abruptas é quase que uma constatação unívoca daqueles que se preocupam com o Direito do Trabalho. A liberdade sindical efetiva mostra-se uma bandeira cada vez mais atual na busca da atenção dos interesses da classe trabalhadora. Mas o que se pretendia com o reanimar desse discurso era, por certo, jogar o bebê com a água do banho. Colocar o Direito do Trabalho, em sua perspectiva de proteção dos ajustes individuais, no mesmo balaio, o que me parece inadmissível.
Ou seja, em suma, há traços corporativistas. Muitos. Mas esse discurso deve ser construído com cautela. É tudo que os apologistas do império do mercado querem é que se associe a CLT – inteira! – a algo “retrógrado”, “fascista”, “paternalista”, ou qualquer outra alcunha de cunho pejorativo.
De que forma a crise do fordismo, a reestruturação produtiva e o neoliberalismo teriam incidido sobre a ideologia do contrato de trabalho? Em sua dissertação, você afirma que “contratação “part-time”, “parassubordinação”, “teletrabalho”, “terceirização”… não passam de novas formas de contratação que operam da mesma forma desumana e predatória que os vínculos trabalhistas ocorridos nos primórdios da industrialização”. Isso significa que há um retrocesso, em termos ideológicos?
Gustavo Seferian: Olha, eu não usaria o termo “retrocesso”. A tradição política que me alio, sobretudo no período do fim do século passado para cá, firmou-se muito nessa questão da crítica da ideologia do Progresso e tudo mais. Bensaïd, Löwy…gente que admiro muito, teórica e politicamente. Então fico meio reticente em usar esse termo…
De todo jeito, é inegável que estamos diante de um intento de ruptura com modelo que prima pela proteção do trabalhador nessa relação nitidamente desigual. Essas chamadas “novas formas de contratação” são apenas o repaginar da velha autonomia privada individual, imersa na lógica liberal, que em nada se compatibiliza com a lógica dos Direitos Sociais. Não há “empoderamento” discursivo que faça cair por terra essa dependência material que o trabalhador tem. E nem que os sicofantas juslaboralistas queiram muito o trabalhador estará em pé de igualdade com o proprietário dos meios de produção para negociar os ajustes de seu contrato laboral. Nem mesmo um “alto empregado” tem condição para tanto.
Há, pois, uma afronta à visão social de mundo que se porta ao lado do trabalhador. Empreitada essa que, como não poderia deixar de ser, é ideológica.
É claro que com a complexificação das relações de trabalho, em larga medida decorrentes das inovações tecnológicas, essa bitola tipicamente “moderna” – que aqui tomo na acepção de Lefebvre – torna-se mais difícil de se assimilar de plano. O exercício mental necessário para ver a fundo como essas relações se dão torna-se ainda mais sofisticado, assim como também sofisticadas se mostram as artimanhas do capital para se furtar à aplicação das salvaguardas sociais historicamente conquistadas. Veja o exemplo recente, que está “na boca do povo”, que é o do aplicativo Uber. Para além de toda a questão da regulamentação, taxação etc – que foge à minha competência jurídica –, é certo que a relação que a empresa mantém com os motoristas é de subordinação econômica, estrutural. Mas esses são colocados como “parceiros” do aplicativo, que ganha em cima de cada uma das corridas por estes realizados. Curioso que os motoristas são “admitidos” após análise de documentação, antecedentes, entrevista etc. Tal qual um processo seletivo em um empresa. Mas daí considerá-los empregados, merecedores de proteção social legal? Aos olhos da patronal, e aos olhos do discurso liberal/neo-liberal, seria um ultraje…
Por fim, sobre o tema da reestruturação produtiva: trabalhei, recentemente, com a hipótese de que existe na esquerda uma “nostalgia do fordismo”, cujo maior equívoco seria tratar a expressão fordista da classe trabalhadora (que alguns autores chamam de salariado) como a expressão por excelência da classe trabalhadora. Segundo sua pesquisa, há sentido ou não em tal equivalência? A reestruturação produtiva significaria a derrota histórica do proletariado, um novo terreno de luta, ou mesmo uma nova potencialidade para sua organização em um sentido revolucionário?
Gustavo Seferian: Não nego que existe uma “nostalgia do fordismo” na esquerda. Seja naquilo que o Ruy Braga foi desenvolver em seu doutorado, seja em um apego às relações laborais de caráter mais perene, menos voláteis, que aquele arranjo particular da produção capitalista “proporcionou” a massas de trabalhadores industriais urbanos, acho que o termo não é equivocado. Mas essa nostalgia não pode ou deve ser transposta a uma questão relacionada à composição da classe trabalhadora, ou do sujeito histórico. Com isso eu não posso compactuar. Não perco de mente que o proletariado é a classe revolucionária por excelência, ator histórico de maior importância porquanto perdurar o modelo de exploração capitalista. E que como lançou Marx enquanto lei tendencial, não para de crescer. O número de assalariados no mundo é maior a cada dia, ainda que em um contexto de crise global. Achar que o proletariado é composto apenas pelo operariado fabril urbano, “fordista”, é um engano. Todos os movimentos de reestruturação produtivas importam em alteração na caracterização desse sujeito histórico, mas não em sua derrota. Até porquê não há derrota definitiva, não é? Mesmo nos períodos mais sombrios da humanidade, do ascenso nazi-fascista à degeneração burocrática dos estados operários, recobradas foram possíveis. Por certo a fragmentação das unidades de produção e o esfacelamento dos laços classistas típicos do arranjo fordista trazem dificuldades à organização/re-organização da classe trabalhadora em luta, mas daí aderir à paralisia romântica do fordismo, acho que é besteira. Enfim, não que eu não caia em romantismos, mas acho que o meu é outro. Mais pujante, benjaminiano.
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