Por Arthur D’Elia
“Por conseguinte, em um texto chamado A natureza da metafísica, Lowe afirma que a metafísica tem como preocupação descobrir o que podia a totalidade da existência abranger. De modo a complementar, em A possibilidade da metafísica, ele fala em “estudo da estrutura mais fundamental da realidade”. Já no verbete de Stanford aparece uma formulação: estudo da estrutura fundamental da realidade.” Quero iniciar dizendo que o presente texto não tem como pretensão expor o que seria a história da metafísica ou da ontologia. Também não entrarei em uma discussão puramente etimológica-nominal da razão pela qual a obra lukacsiana não poder receber o título de metafísica. Em contraste irei usar alguns textos de um pensador contemporâneo chamado E. S. Lowe e o verbete de Stanford intitulado Metaphysics. Este (Lowe) que tem a pretensão de operar uma retomada dos problemas ditos metafísicos e deixa claro o entendimento “comum” desse termo.
Bem, de início, apenas aqui dizer o que é ontologia no que tange seu significado e função no interior da filosofia de modo geral. Trata-se de uma teoria ou estudo do ser. Sendo ela a assim conhecida “filosofia última”, tal como Hartmann denominou em sua Ontología. Sendo também a relação entre ontologia e ciência de mútua crítica para o conhecimento da realidade objetiva. Mas este complexo de questões não é o objetivo deste artigo.
Ela também se constitui como uma imagem de mundo necessária para compreender a realidade objetiva e fornecer resposta a um determinado período histórico. Tal fato que foi já dito por Lukács em seu primeiro livro sobre ontologia. Agora será exposta propriamente a questão envolvendo o que seria a metafísica.
Que a metafísica entendida como aquilo que busca as causas últimas da realidade ou as primeiras causas não é preciso maiores considerações. O caráter teológico disto foi até mesmo exposto na enciclopédia de Stanford, em um texto intitulado Metaphysics. Esse tipo de coisa predominou na idade antiga e idade média.
Por conseguinte, em um texto chamado A natureza da metafísica, Lowe afirma que a metafísica tem como preocupação descobrir o que podia a totalidade da existência abranger. De modo a complementar, em A possibilidade da metafísica, ele fala em “estudo da estrutura mais fundamental da realidade”. Já no verbete de Stanford aparece uma formulação: estudo da estrutura fundamental da realidade. Nos três textos ressalta-se uma distinção com relação à ciência, pois esta seria incapaz de realizar generalização.
Tal estrutura comparece sob formas de categorias, tais como: substância, essência, universal, singular, etc. Importante notar também que a investigação de tais categorias do ser remete a uma ontologia (sendo assim categorias ontológicas). Isso o próprio Lowe reconhece, Hartmann em sua obra já mencionada também e até Décio Krause em seu já citado texto. Que elas são frutos de um processo de generalização filosófica não há dúvidas. A pergunta, partindo já de Lukács, não as envolve exatamente, mas antes se trata do seguinte: Seria a ontologia do filósofo húngaro um procedimento tal como aparece nas já citadas definições?
É um excesso de preciosismo querer pautar toda uma argumentação em apenas definições. As definições que aqui foram postas dizem muito a respeito da tradição filosófica e da filosofia analítica contemporânea. Porém, mais do que definir, é preciso buscar o que está por trás do definido; ou seja, sua essência. Isso significa que é preciso perguntar pelo seguinte: De que maneira se articula a estrutura fundamental da realidade com a própria realidade no seu todo?
Outra questão que se coloca é do tradicional enquadramento da ontologia como subcampo da metafísica. A ontologia como estudo geral sobre o ser estaria embutida na metafísica. A argumentação a seguir mostrará como esse raciocínio não se aplica a Lukács, evidenciando o equívoco de chamar sua obra de metafísica.
“Um ser não objetivo é um não-ser”. Ora, como não recordar dessa famosa frase de Marx em seus Manuscritos econômico-filosóficos! Os que possuem tesão na definição pronta e acabada capaz de fornecer aquela segurança intelectual certamente largaram essa frase de mão tratando-a como “imprecisa”. Bem, pode-se agora explicar o que ela quer dizer e como responde à já anteriormente pergunta levantada.
Não é possível existir algo que não possua qualidades categoriais. “Existir, portanto, significa que algo existe numa objetividade de determinada forma, isto é, a objetividade de forma determinada constitui aquela categoria à qual o ser em questão pertence”. Lukács também vai dizer que no sistema de categorias do marxismo cada coisa é dotada de um ser categorial ou qualidade.
Importante notar também que no marxismo “a história é a história da transformação das categorias”. Desse modo, as categorias são partes que integram a efetividade. Além de evidenciar que a substância do ser é a história. E, ainda em cima disto, Lukács completa “Não pode existir absolutamente nada que não seja, de alguma forma, uma categoria”. Para que o leitor não se assuste, fala-se aqui das categorias ontológicas já citadas.
Em segundo lugar, de modo a diferenciar o marxismo da tradição filosófica, Lukács afirma o seguinte “(…) no marxismo, o ser categorial da coisa constitui o ser da coisa, enquanto nas velhas filosofias o ser categorial era a categoria fundamental no interior da qual se desenvolviam as categorias da efetividade”. Note-se aqui para uma não separação entre o que é existente e efetivo para com o que seria seu aspecto categorial. O que vai caracterizar o que é existente, efetivo, é justamente seu caráter categorial. A partir do que foi dito até então, tem-se que as categorias são formas de ser.
Considerando o que foi exposto, pode-se agora refletir sobre como se dá a investigação metafísica. Como já foi dito, esta pode ser definida como estuda da estrutura mais fundamental da realidade ou da estrutura fundamental da realidade. E Lowe também fala da preocupação em descobrir o que a totalidade da existência pode abranger.
Duas perguntas anteriormente foram postas. No entanto, para que possa responder à primeira envolvendo a ontologia de Lukács, é necessário expor o que seria o conteúdo da metafísica. Com isso, será necessário adentrar na relação entre a estrutura fundamental da realidade para com a realidade em seu todo. Em A possibilidade da metafísica, Lowe afirma que:
A minha perspectiva é que é efetivamente possível: ou seja, defendo que é possível obter respostas razoáveis a questões respeitantes à estrutura fundamental da realidade – questões mais fundamentais do que quaisquer das que se pode abordar competentemente através da ciência empírica. Mas não afirmo que a metafísica por si só pode, em geral, dizer-nos o que há. Ao invés – como abordagem preliminar – defendo que a metafísica, por si, apenas nos diz o que pode haver. Mas depois de a metafísica nos dizer isto, a experiência pode dizer-nos qual entre as diversas possibilidades metafísicas alternativas é plausivelmente verdadeira na realidade efetiva. O que está em causa é que embora o que é efetivamente real tenha, por essa mesma razão, de ser possível, a experiência por si só não pode determinar o que é efetivamente real, na ausência de uma delimitação metafísica do possível. Resumindo: a própria metafísica é possível – na verdade, necessária – como forma de investigação racional humana, porque a possibilidade metafísica é uma determinante inevitável da realidade efetiva.
O primeiro ponto a se notar é a contraposição entre metafísica e ciências empíricas. Sobre esta contraposição mais considerações serão feitas posteriormente. No já citado texto nosso saudoso Lowe diz que “a experiência por si só não pode determinar o que é efetivamente real, na ausência de uma delimitação metafísica do possível”.
Com essa perspectiva, Lowe vai de encontro a Lukács, o qual identifica que as categorias de efetividade não decorrem do ser categorial, sendo este último constituinte da própria efetividade.
A perspectiva Loweana inverte isso, ainda que reconheça o papel da experiência para provar a plausibilidade de determinada teoria metafísica. Tem-se o seguinte caminho: parte-se da metafísica para examinar o que pode haver e depois retorna à experiência para verificar sua plausibilidade. Então se por um lado a experiência não pode determinar o que é efetivamente real, por outro ela vai ser importante para afirmar qual teoria metafísica melhor corresponde ao que existe.
A limitação desta visão em comparação com Lukács é o prevalecimento da especulação em face dos problemas referentes à realidade objetiva. A ontologia por meio da qual parte Lukács busca examinar a realidade objetiva. A metafísica defendida por Lowe não pode oferecer certezas com relação à efetividade. De modo a trazer à tona mais desta limitação, tem-se que:
A possibilidade metafísica de um estado de coisas não é determinada simplesmente pela ausência de contradição nas proposições usadas para o descrever — embora, evidentemente, tal ausência de contradição seja um requisito mínimo da possibilidade metafísica.
(…)
Assim vemos que a validade da afirmação de que um determinado estado de coisas é metafisicamente possível não depende simplesmente da questão de as proposições que se usa para o descrever implicarem ou não-contradição, mas antes da questão de os princípios e categorias metafísicas aceitáveis permitirem ou não a existência desse estado de coisas. E isto é matéria de uma discussão especificamente metafísica.
Novamente se submete aquilo que Lukács afirmou como sendo “categorias de efetividade” às categorias que comparecem na investigação metafísica. Não sendo assim entendido que a efetividade abarque as categorias ou que tudo aquilo que existe é já, de algum modo, uma categoria.
Keith Campbell em um texto chamado ontologia, afirma o seguinte acerca da ontologia: “Mas no seu significado mais formal, a ontologia é o aspecto da metafísica que visa caracterizar a Realidade identificando todas as suas categorias essenciais e estabelecendo as relações que mantém entre si”. O que é metafísica e como é sua estrutura não aparece no já mencionado texto. Mas é fato interessante que o autor veja na ontologia aquilo que busca tratar do que é efetivo, do ser e de suas categorias.
Para já demonstrar de modo evidente a distinção entre tais disciplinas que aqui foram traçadas, importante notar a diferença entre ontologia religiosa e a ontologia que Lukács chama de filosófica-científica. Esta última citada examina a realidade objetiva, como já foi dito. Buscar tratar de como a realidade é.
Já a ontologia religiosa fornece uma imagem de mundo em que os desejos não satisfeitos na vida cotidiana, que devido à situação histórica transcendam a vida cotidiana dos seres humanos, contêm a perspectiva de satisfação de tais desejos em um além apresentado com pretensão ontológica (LUKÁCS, 2018). Com isso, a ontologia filosófica-científica e a ontologia religiosa partem de necessidades teóricas e práticas e afetivas do ser humano, mas suas construções seguem diferentes caminhos.
Considerando tudo o que foi exposto, pode-se dizer que a ontologia busca examinar e construir uma imagem acerca do que a realidade é. Historicamente a metafísica aparece como busca das causas últimas da realidade, do período antigo ao medieval, ligando-se a uma pretensão teológica. Em Lukács ela vai aparecer como um tipo de construção predominantemente lógico-formal. Disso derivaria grandes antinomias metafísicas como entre liberdade e necessidade. Já Lowe prioriza o aspecto mais especulativo e uma clara sobreposição do ser da coisa ao ser categorial. Lukács está claramente indo na contramão dos que põem a efetividade, o existente, como efeitos de uma estrutura fundamental permeada por categorias, etc.
Aliás, há de se notar que é consenso (atualmente) o entendimento da metafísica como aquela que busca estudar a estrutura fundamental da realidade. No entanto, não se diz qual seria a base de tal estudo ou a relação entre o “ser categorial” e o “ser da coisa”. Sobre a relação com a experiência empírica, importante notar que a ontologia de Lukács, tal como o autor húngaro a entende, parte da vida cotidiana, desse campo imediato com o qual seres humanos se deparam. De certo modo possui, tal como a metafísica, essa relação com a “experiência “. Isso significa que a ontologia lukácsiana parte sim de aspectos mais gerais da realidade ou de generalizações filosóficas como qualquer sistema filosófico.
A grande questão que permanece, então, é buscar o que se está por trás da já mencionada definição de metafísica como aquela que busca tratar da estrutura fundamental da realidade. Dizer que a metafísica busca ser um estudo de X ou Y ou que busca tratar de A ou B não diz muita coisa. É necessário, como já foi dito, dizer o que seria a essência da metafísica. E Lowe possui a virtude de ter buscado fazer isso. Até em outro texto como A lei da não-contradição como princípio metafísico, define-se a metafísica da mesma forma como foi posta aqui, mas não fala nada para além disso. Eu arrisco, por fim, dizendo que Lukács ao afirmar que “enquanto nas velhas filosofias…” ele inclui, mesmo sem ter vivido para conhecer o atual quadro da filosofia, todas teorizações atuais intituladas de “metafísicas”.
Bibliografia:
https://criticanarede.com/ontologia.html
https://criticanarede.com/natmetafisica.html
https://criticanarede.com/posmetafisica.html
https://criticanarede.com/metafisicadopnc.html
HARTMANN, N. Ontología I. 3. Ed. México: Fondo de cultura económica, 1986.
https://plato.stanford.edu/entries/metaphysics/
LUKÁCS, G. Prolegômenos e Para a ontología do ser social. Alagoas: Coletivo veredas, 2018.