As ideias da classe dominante são as ideias dominantes? Uma resposta marxista

Por Caique de Oliveira Sobreira Cruz

O “axioma” Marxiano, “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (ENGELS, F; MARX, K. 2007. p.72), contido no livro “A ideologia alemã” é muito pertinente, tendo em vista que consegue reproduzir fielmente a práxis social de todas as sociedades que estão fraturadas em classes sociais opostas, fenômeno que ocorre desde a denominada “revolução da agricultura”, há alguns milênios, que deu fim às chamadas sociedades dos “caçadores-coletores”, ou nos termos marxistas: “comunismo primitivo”.

Para compreender o motivo pelo qual as ideias dominantes são as das classes dominantes, é necessário primeiro visualizar que as civilizações contemporâneas estão sempre divididas em classes sociais, umas são dominantes e outras são dominadas. A este sociometabolismo, Marx e Engels deram o nome de “relações de produção”, que significa como os homens se relacionam para produzir e reproduzir as condições materiais de sua própria existência, por intermédio do trabalho como ferramenta que altera a natureza, como um intercâmbio entre o homem, que é um ser social, e o mundo orgânico e inorgânico da natureza.

No capitalismo, sistema econômico no qual estamos inseridos na contemporaneidade, isto é muito evidente, basta capturar o movimento do real. Nós estamos distribuídos entre duas grandes classes diametralmente opostas, a burguesia e o proletariado. Lógico que dentro de cada uma dessas classes existem frações e, também, existem outras classes além dessas como classes remanescentes dos sistemas anteriores, mas não são centrais na produção da vida humana atualmente, este era o contexto analisado por Marx e Engels. A burguesia é a classe dominante, que detém os meios de produção, e a classe trabalhadora é a dominada que só tem a sua força de trabalho para vender e sobreviver, são os “assalariados”, como dito em vários momentos por Engels. A burguesia, como tem o domínio do poder econômico, pode controlar toda a produção da vida social, seja no âmbito econômico ou mesmo no político, social e cultural.

Para Marx e Engels, por exemplo, o Estado Moderno é um aparelho da classe dominante, seja de maneira estrutural, reproduzindo as “relações de produção” e garantido os interesses históricos de classe, reproduzindo as vontades do capital, enquanto relação social, mesmo não sendo ocupado pelos capitalistas ou de maneira instrumental, pois por meio do dinheiro a burguesia captura o Estado e o move da maneira que garanta seus interesses imediatos, como bem exemplificado por Engels na obra “Da origem da família, da propriedade privada e do Estado”. O Estado é um dos fios condutores de busca da hegemonia na sociedade capitalista por parte dos dominantes, através da força ou do consenso, como asseverava Antonio Gramsci. Só pelo domínio do Estado, de forma direta ou indireta pela classe burguesa, já é possível vislumbrar a assertividade da tese de que as ideias dominantes são as das classes dominantes em cada época, já que o Estado é um dos grandes aparelhos ideológicos da sociedade, conduzindo, inclusive, a produção do conhecimento, gerindo as Universidades e escolas públicas e, também, regulando e fiscalizando o ensino privado, desde as ementas até as questões mais burocráticas, como vemos no Brasil através do MEC.

Mas, não é só pelo domínio de classe do Estado que se justifica o “postulado” marxiano supracitado, pois, a ideologia dominante perpassa por todos os âmbitos da vida social. Os grandes filósofos e teóricos de cada tempo expressam as ideias da classe dominante, sendo eles ideólogos no sentido usado por Marx e Engels em “A ideologia alemã” (analisando os “pós-hegelianos”), ou seja, como tendo uma visão parcial da realidade, “manchada”, capturando apenas a aparência e não a essência fenomênica (o que não significa que a ideia esteja certa ou errada, apenas incompleta, parcial), ou mesmo outros que fazem de maneira deliberada e intencional, como é o caso dos apologistas do capital que são financiados para criar bases teóricas de consenso, no seio da população, sobre os “grandes feitos” da sociedade comandada pela classe burguesa.

Podemos recorrer a mais centenas ou milhares de exemplos que podem corroborar a tese ora analisada. A categoria do trabalho era vista com péssimos olhos nas sociedades anteriores, o celebrado era a inércia nas sociedades feudais, todos queriam poder ser como os grandes reis e senhores feudais, ou, na época do escravismo grego da república ateniense, o trabalho era algo legado aos escravos, humanos que não eram considerados como humanos, e sim como objetos. Os “grandes homens” eram os senhores de escravos que não trabalhavam ou os grandes filósofos que “pensavam”, isto é dado nas obras de Platão e Aristóteles. Mas agora, na sociedade do capital que precisa de uma larga produtividade para a valorização do valor, da superexploração do trabalho e extração de mais-valor, a categoria do trabalho se tornou sacrossanta. Todos devem trabalhar para alcançar a dignidade, o trabalho dignifica o homem, as pessoas que não trabalham são consideradas como “vagabundas”. E o mais peculiar deste alastramento do trabalho, enquanto caracterizador de humanidade, é que os próprios burgueses não trabalham, mas fingem que o fazem, “administrando” suas grandes empresas e bancos, já que há a divisão do trabalho entre manual e intelectual. Evidentemente que não há sociedade possível sem que haja o “trabalho fundante”, como já destacamos outrora em (CRUZ, Caique. 2018). O que estamos pontuando neste parágrafo, é a forma como o “trabalho abstrato” da sociedade do capital passou a ser cultuado como etiqueta de dignidade ou indignidade, enquanto em formatações societais anteriores o “trabalho” existia, mas era relegado aos ‘seres inferiores” e tinha uma carga semântica pejorativa. Esta transformação no signo demonstra a carga ideológica que carrega até mesmo a “forma-linguagem” da sociedade capitalista.

No âmbito da religião, essa tendência da ideologia dominante fica ainda mais latente com o advento do protestantismo de Lutero e, ainda mais, com Calvino, como descoberto por Max Weber, teórico “liberal-nacionalista”, na sua obra: “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, ao analisar o Calvinismo como mola propulsora  e moldadora do espírito do homem perfeito para o máximo desenvolvimento da sociedade capitalista, ou seja, o homem que trabalha, poupa, dá primazia ao individual e não o comunitário, e que tem cede pelo lucro, pois o lucro comprova que é um dos escolhidos pela divindade. Entretanto, por ser um “Neokantiano” e “culturalista”, ele operou um recorte analítico, apartando o sujeito do objeto, e centralizou a sua análise na pesquisa sobre como a ideologia religiosa do Calvinismo poderia constituir o homem “perfeito” para reproduzir a sociedade do capital e as influências das religiões na questão econômica, uma espécie de “sociologia da religião” onde a questão primordial de sua investigação estava na influência religiosa na economia, deixando escapar, no livro supramencionado, o aspecto da totalidade social em que há uma interdependência e uma derivação entre todas as formas sociais. Partindo de uma análise materialista, a concepção que se propõe mais coerente é a de que a própria sociedade do capital abriu as bases concretas para que este novo tipo religioso pudesse ser engendrado e, também, ter angariado grande força contra o catolicismo das eras feudais.

Enfim, o largo crescimento do protestantismo mostra, nesta transição religiosa, como a ideologia dominante perpassa todas as formas sociais, a doutrina evangélica louva a categoria do trabalho que discutimos anteriormente, dentre tantos outros fatores que contribuem para o assentamento ideológico do capitalismo. Nos séculos XX-XXI tivemos o crescimento brutal da “teologia da prosperidade” além de outras da mesma espécie, verdadeiras amálgamas religiosas que servem como formas-ideológicas de reprodução do capital, seja instituindo uma suposta “ética” no cotidiano dos indivíduos, seja constituindo estruturas institucionais religiosas que interferem diretamente na vida coletiva, inclusive, tomando de assalto o Estado Burguês e acabando rapidamente com a tal noção de “Estado laico” no moderno Estado Democrático de Direito.

Por fim, o caso do direito também é elementar, as leis do direito moderno são baseadas nas formas das relações de produção. A forma-jurídica é uma derivação da forma-mercadoria, como um reflexo espelhado, não no sentido de cópia, mas de condicionamento e de origem (gênese), uma relação entre fundante e fundado. A ideia do que é “justo” e do que é “injusto” tem direta correlação com aquilo que atenta ou não contra a propriedade privada dos meios de produção, para comprovar isto basta vermos que as bases teóricas dos ordenamentos jurídicos burgueses, em especial no âmbito civil, configuram uma réplica da sociedade de trocas e contratos do capital que a reproduz em sua formalidade. Ou mais, adentrando na práxis social e na seara criminal, analisando quem está sendo punido na sociedade de classes, a realidade não nos deixa negar.

Temos como exemplo o Brasil, que passa por um período de explosão em massa de sua população carcerária, fato comum nas sociedades capitalistas contemporâneas em que ele está inserido. No país, em última pesquisa mais detalhada e completa feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2017, que foi retirada do site oficial, mas que pode ser encontrada ainda em sites secundários[1], tínhamos o número de 726.712 presos, sendo que os crimes de tráfico de drogas representavam entre 28% a 30% dos processos que envolviam réus presos; o crime de roubo, 21%; o de furto, 16%; o de homicídio, 11%; entre outros em menor escala, segundo o levantamento de 2017 do Conselho Nacional de Justiça[2]. Desta forma, a maior parte dos encarcerados estava enquadrada em algum dos artigos da Lei. 11.343/06, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – (Sisnad); que prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crime. A maioria destes presos era composta de negros, cerca de 64% a 65%. Do ano de 2017 para o ano de 2019 houve um aumento da massa carcerária absoluta total, que passou de 726.712 para 812.564 presos, sendo que destes, 41,5% (337.126) são presos provisórios, ou seja, cujos processos ainda estavam sem trânsito em julgado, o que, por consequência, também aumentou a porcentagem dos condenados ou réus relacionados com as tipificações da Lei 11.343/06[3]. Todos estes novos dados de 2019 foram divulgados pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0),[4] mas esta pesquisa mais contemporânea é pouco detalhada em relação às anteriores, pois não houve em sua metodologia o recorte racial[5] e, também, alguns Estados não fizeram a computação total de todos os seus presos, o que pode significar que temos uma população carcerária ainda maior, “O número de presos pode ser ainda maior porque alguns estados não completaram totalmente a implantação do sistema e por isso ainda fornecem informações parciais.” (BARBIÉRI, Luiz Felipe. 2019).

Diante de todos estes dados, fica evidenciado que o Estado brasileiro realiza uma política forte e punitiva de coibição às drogas, por meio da conhecida “guerra às drogas”, como chamada popularmente, onde ela realmente direciona-se, predominantemente, para indivíduos de determinada classe social e/ou cor de pele, constituindo uma forte estigmatização destes grupos sociais no país, como assevera Olmo, citado por Salo de Carvalho:

“[…] o problema da droga se apresentava como uma ‘luta entre o bem e o mal’, continuando com o estereotipo moral, com o qual a droga adquire perfis de ‘demônio’; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos ‘filhos de boa família’. (OLMO, A Face Oculta da Droga, p.34. In.: CARVALHO, Salo de. 2013, p. 64).”

Parte do mesmo entendimento da estigmatizarão o criminólogo, Ribeiro Giamberardino, quando faz a análise da política de criminalização das drogas nos EUA que foi importada para o Brasil, na seguinte citação:

“[…] é notável como a partir das políticas criminais decorrem a produção e a difusão de estereótipos sociais e como em torno a estes o discurso da guerra contra as drogas se colocou no centro das atenções, nos Estados Unidos, nos governos Nixon e depois Reagan (1980-1989). A ênfase no tema serviu de base às políticas repressivas do consumo tanto interno, quanto externo, assim como a guerra contra a produção e o tráfico de drogas dos países latino-americanos – sob o argumento da necessidade de reprimir o consumo nos Estados Unidos. (GIAMBERARDINO, André Ribeiro. 2010, p. 212).”

No mesmo sentido, Mariana Glenda Santos e Thais Elizabeth Santos Silveira, em artigo sobre o uso crescente das drogas e a criminalização da pobreza, asseveram:

“Na presente sociedade capitalista, onde o ter é muito mais importante que o ser, os jovens das periferias das grandes cidades brasileiras são geralmente vítimas da violência e da criminalidade, decorrentes de um violento processo de criminalização que a questão social vem sofrendo, e que atingem as classes subalternas. Recicla-se a noção de “classes perigosas”, sujeitas à repressão e extinção. (SANTOS, Maria Glenda; SILVEIRA, Thais Elizabeth Santos. 2013).”

A fictícia “ética” da sociedade do capital não passa de uma moralidade burguesa, transformando aquilo que é particular (interesses burgueses) em universal (interesses de todo o povo). Quando, em verdade, as classes estão colocadas objetivamente em situações de combate e interesses opostos, não há uma “ética” no capitalismo, já que não existe uma dissolução entre os antagonismos de classe, há uma antinomia absoluta entre os interesses individuais e os do gênero humano.

Por todos estes fatores estruturantes das sociedades divididas em classes, foi que Marx e Engels descobriram que todas as formas sociais vigentes nestes tempos estão moldadas de acordo com os interesses das classes dominantes, seja a forma-política, forma-jurídica, religião, cultura stricto sensu, ou, até mesmo, sistemas de pensamento como os filosóficos ou sociológicos, etc.


Referências bibliográficas

Agência CNJ de Notícias, Levantamento dos Presos Provisórios do País e Plano de Ação dos Tribunais. Estava disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos%20provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais>. Acesso em: 01/12/2017. Levantamento apagado do site atualmente, 14/10/2019.

BARBIÉRI, Luiz Felipe. 2019. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml>. Acesso em: 06/10/2020.

CRUZ, Caique. A subsunção do real ao estético, a miséria do pós-modernismo. REBELA – Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v.8, n.3 (2018).

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Tráfico de drogas e o conceito de controle social: reflexões entre a solidariedade e a violência. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, 2010, n. 83, p. 212).

<https://br.noticias.yahoo.com/negros-perifericos-mais-afetados-aumento-populacao-carceraria-114119040.html>. Acesso em 15/10/2019.

Lei 11.343/06. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 06/10/2020.

OLMO. A Face Oculta da Droga, p.34. In.: CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. – 6. Ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2013.

Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro de 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-726-mil-presos> Acesso em 15/10/2019.

SANTOS, Maria Glenda; SILVEIRA, Thais Elizabeth Santos. O uso crescente das drogas e o processo de criminalização da pobreza. In: 3º Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais – CRESS-MG, 2013, Belo Horizonte. Anais eletrônicos… Belo Horizonte: CRESS-MG, 2013.

Disponível em: <http://www.cress-mg.org.br/arquivos/simposio/O%20USO%20CRESCENTE%20DAS%20DROGAS%20E%20O%20PROCESSO%20DE%20CRIMINALIZA%C3%87%C3%83O%20DA%20POBREZA.pdf>. Acesso em: 06/10/2020.

[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-726-mil-presos> Acesso em 06/10/2020.

[2] Agência CNJ de Notícias, Levantamento dos Presos Provisórios do País e Plano de Ação dos Tribunais. Estava disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos%20provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais>. Acesso em: 01/12/2017. Levantamento apagado do site atualmente, 14/10/2019.

[3] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 06/10/20.

[4] BARBIÉRI, Luiz Felipe. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml> Acesso em: 06/10/2020.

[5] Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/negros-perifericos-mais-afetados-aumento-populacao-carceraria-114119040.html> Acesso em 06/10/2020.

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