Por Paulo Marçaioli
“O programa de paz dos bolcheviques enunciado antes mesmo de Outubro de 1917 se diferencia de uma paz imperialista imposta pelos vencedores da guerra, como foi a Paz de Versalhes de 28 de Junho de 1919. A palavra de ordem bolchevique era uma paz justa e democrática, sem qualquer anexação ou contribuição de guerra.”
LÊNIN E A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO
“Nossa revolução é burguesa, e por isso os operários devem apoiar a burguesia – dizem os Potresov, os Gvodiez e os Tcheideze, como dissera antes Plekhanov. Nossa revolução é burguesa – dizemos nós, marxistas, e por isso os operários devem abrir os olhos do povo para que veja a mentira dos políticos burgueses e para ensiná-lo a não acreditar nas palavras, a contar unicamente com suas próprias forças, com sua própria organização, com sua própria união, com seu próprio armamento. (…) Mostraremos em que consiste a especificidade deste momento, da passagem da primeira para a segunda etapa da revolução, e porque a palavra de ordem, a “ordem do dia”, neste momento deve ser: Operários! Vocês realizaram prodígios de heroísmo proletário e popular na guerra civil contra o tzarismo. Vocês devem realizar prodígios de organização do proletariado e de todo o povo para preparar o seu triunfo na segunda etapa da revolução” – CARTAS DE LONGE – Primeira Carta: a primeira etapa da primeira revolução. Escrita a 7 (20) de Março de 1917. V. I. Lênin
Quando Lênin retornou do seu exílio para a Rússia na noite de 3 de Abril de 1917 fazia poucas semanas do triunfo da primeira etapa democrático-burguesa da Revolução, que destituiu o secular czarismo e instituiu um governo provisório de natureza burguesa, com o apoio, por um lado, do imperialismo anglo-francês, e por outro lado, contanto com a mobilização de operários e camponeses pobres consubstanciada no Soviete de Petrogrado.
Quando do retorno de Lênin, o dirigente bolchevique tinha 47 anos de idade, estava em sua plena maturidade intelectual e já era então o principal dirigente do partido bolchevique, agrupamento que, ainda em abril de 1917, era minoritário nos Sovietes.
O contexto daqueles eventos envolvia a participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial. Consta que a vinda de Lênin e outros exiliados russos foi objeto de negociação com a Alemanha do Kaiser que tinha interesse no retorno à Rússia de revolucionários internacionalistas cujo programa envolvia a retirada da Rússia da guerra, ou, para ser mais exato, a transformação da guerra entre os imperialismos em guerra civil revolucionária de classes.
Sobre o retorno de Lênin à Rússia, muitos detratores buscaram associar este retorno a uma espécie de acordo espúrio de Lênin com os alemães. Contudo, Isaac Deutscher relata de forma detalhada como seu deu este retorno:
“Lênin cuidou desta viagem (de regresso à Rússia) por meio de bem conhecidos socialistas alemães, suecos, suíços e franceses. A única obrigação que assumiu diante do governo alemão foi fazer o possível para assegurar que um grupo de civis alemães tivesse permissão de sair da Rússia, como quid pro quo. O governo alemão, sabedor da oposição de Lênin à guerra, certamente esperava ganhar com sua propaganda dentro da Rússia. Lênin teve escrúpulos antes de decidir se valer das facilidades para viajar através da Alemanha. Os escrúpulos cederam diante da preocupação principal – estar o mais cedo possível no centro da revolução. Teria preferido ir à Rússia através da Inglaterra, mas o governo britânico recusou-lhe a autorização. Ao chegar, ninguém censurou a viagem. Os dirigentes dos partidos socialistas saudaram-no como um dos velhos e consumados líderes. Algumas semanas mais tarde, Martov e outros mencheviques seguiram o exemplo e viajaram para casa pelo mesmo caminho, sem nunca suscitar nenhuma censura ou crítica. Somente mais tarde, quando a influência de Lênin começou a crescer, foi que o vagão lacrado se viu transformado por alguns adversários num pacto sinistro entre o Estado-Maior alemão e os bolcheviques”. (Deutscher, 2006).
Não é difícil cogitar da profunda apreensão que um revolucionário em tempo integral como Lênin devia passar ao acompanhar os eventos revolucionários na Rússia à distância.
A primeira das cartas de longe foi escrita em 7 de Março de 1917, uma semana após o êxito da revolução de fevereiro. Começa a carta apontando que a primeira etapa da revolução não será a última, fato confirmado em outubro do mesmo ano.
Nestes escritos Lênin suscita a questão: como foi possível uma monarquia absolutistas secular ser destituída do poder em apenas uma semana? Como explicar este aparente milagre da história?
São três os pontos fundamentais que explicam a rápida queda dos Romanov para Lênin. Em primeiro lugar, a revolução russa de 1905-1907. Sem os três anos de formidáveis batalhas de classe não teria sido possível uma segunda revolução tão rápida.
“A primeira revolução (1905) revolveu profundamente o terreno, arrancou pela raiz preconceitos seculares, despertou milhões de operários e dezenas de milhões de camponeses para a vida política e para a luta política; revelou a cada classe (e todos os principais partidos) da sociedade russa, a verdadeira correlação de seus interesses, suas forças, seus modos de agir, seus objetivos imediatos e subsequentes”. (Lênin)
O segundo fator que determinou a breve vitória da revolução de fevereiro foi a guerra imperialista mundial. A natureza imperialista da guerra acelerou extraordinariamente e recrudesceu a luta de classes do proletariado contra a burguesia, transformando-se em guerra civil entre classes inimigas. O terceiro fator tem natureza política e diz respeito à constituição do Soviete de Deputados Operários de Petrogrado. Lênin neste ponto reforça que os bolcheviques não podem adotar qualquer política de apoio ao governo provisório: é necessário armar o proletariado, consolidar e desenvolver o papel e a importância e a força do soviet, como garantia da liberdade e da impossibilidade de restauração do cazarismo. É dada ênfase à constituição de milícias operárias: conforme as tradições da Comuna de Paris de 1871 e da Revolução Russa de 1905, dissolver e fundir as funções de polícia, exército e burocracia com todo o povo em armas.
Logo após a chegada de Lênin em Petrogrado em abril de 1917 seria publicado o seu famoso artigo “As Tarefas do Proletariado na presente revolução – Teses de Abril”.
LÊNIN A CAMINHO DO PODER
Logo após a chegada de Lênin em Petrogrado em abril de 1917 foi publicado o seu famoso artigo “As Tarefas do Proletariado na presente revolução – Teses de Abril”.
O texto foi publicado no jornal Pravda de 7 de abril de 1917 com a assinatura de Lênin e foi escrito provavelmente no trem, na véspera da chegada do dirigente bolchevique a Petrogrado. Lênin leu as teses em duas reuniões realizadas em 4 de abril: na reunião dos bolcheviques e na reunião conjunta de bolcheviques e mencheviques delegados da Conferência de Toda a Rússia de Deputados Operários e Soldados no palácio Taride.
A peculiaridade do momento da Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução que deu o poder à burguesia à sua segunda etapa, que iria por o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato. De um lado a continuidade da guerra imperialista e a ameaça da restauração do czarismo. De outro lado, a instauração de uma nova legalidade baseada na tomada do poder político dos operários e camponeses pobres.
A dualidade de poderes se expressa pelo governo provisório burguês de um lado e pelos sovietes de deputados operários e camponeses do outro. Ainda em abril os bolcheviques são minorias no sovietes, o que faz com que os comunistas devam ter uma política de explicar os erros da tática dos conselhos de um modo paciente, sistemático e adaptado às necessidades práticas das massas. Mesmo sendo minoria, os bolcheviques atuam nos sovietes e desenvolvem um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros.
A palavra de ordem naquele contexto era a de lutar para quebrar as ilusões do povo no governo burguês. Além de denunciar o governo provisório, combater a influência ideológica da pequeno burguesia sobre o movimento operário. De maneira reiterada, Lênin opõe o governo republicano burguês da nova experiência de poder do sovietes, cuja prima mais próxima fora a Comuna de Paris de 1871. A dissolução da polícia, do exército e da burocracia substituída pelo povo em armas. A constituição de milícias operárias com a participação de homens e mulheres de 15 a 65 anos de idade. O mais absoluto controle e revogabilidade dos cargos de eleição. A necessidade de mudança do nome do partido como forma de se opor à social democracia europeia que capitulou perante a guerra imperialista: de partido social democrata para partido comunista. Finalmente, a necessidade da criação da III Internacional, ante a completa falência da II Internacional, dos social chauvinistas (Plekhanov) e dos centristas (Kautsky).
OS BOLCHEVIQUES DEVEM TOMAR O PODER
No mês de julho de 1917, as jornadas contrarrevolucionárias dirigidas por Kornilov colocam em novos termos o desenvolvimento da revolução russa. A vitória dos operários e soldados sobre a contrarrevolução em Julho coloca na ordem do dia a tomada do poder. Já em setembro de 1917 os bolcheviques já são maioria nos sovietes de deputados operários e soldados de ambas as capitais. Ainda em 12/14 de Setembro, Lênin lança a palavra de ordem que os bolcheviques devem tomar o poder:
“Depois de ter conquistado a maioria dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de ambas as capitais, os bolcheviques podem e devem tomar o poder de Estado em suas mãos. Podem, pois a maioria ativa dos elementos revolucionários do povo de ambas as capitais é suficiente para levar consigo as massas, vencer a resistência do inimigo, derrota-lo, conquistar e manter o poder; podem, pois ao propor no ato a paz democrática, no ato de entregar a terra aos camponeses e restabelecer as instituições e liberdades democráticas, destruídas e destroçadas por Kerensky, os bolcheviques formarão um governo que ninguém poderá derrubar”.
Não foi sem vacilação que os demais dirigentes da fração mais consequente e revolucionária da Rússia encaravam a proposta de Lênin da tomada imediata no poder. Uma opinião era de que os bolcheviques devessem aguardar a realização da Assembleia Constituinte do governo provisório. Outra opinião dizia que os bolcheviques devessem aguardar a realização da Conferência Democrática. Mais do que uma mudança na data da insurreição, estavam em jogo diferentes posições táticas com implicações estratégicas: o partido bolchevique deve tomar para si o poder ou deve apenas tomar o poder para imediatamente entrega-lo aos sovietes de toda a Rússia? Quem é o sujeito histórico e quem é o sujeito político da revolução?
Neste aspecto, Lênin, seguindo as trilhas de Marx, chama atenção para o fato de que a insurreição deve ser encarada como uma arte: havia o risco objetivo da tomada da capital para contrarrevolução e o atraso da insurreição em Petrogrado e Moscou poderia colocar tudo a perder. A iminente tomada de Petrogrado tornaria as chances cem vezes maiores. Lênin chama a atenção de que não é possível “esperar” a Assembleia Constituinte, pois Kerensky, por conta da rendição de Petrogrado, pode perfeitamente frustrar sua realização.
“E para tratar a insurreição de um modo marxista, isto é, como uma arte, devemos, ao mesmo tempo e sem perder sequer um minuto, organizar um Estado-Maior dos destacamentos insurgentes, distribuir as forças, lançar os regimentos de confiança contra os pontos mais importantes, cercar o Teatro Alexandrinki e tomar a Fortaleza de Pedro e Paulo, prender o Estado-Maior general e o governo enviar contra os cadetes e contra a divisão selvagem tropas dispostas a morrer antes de permitir que o inimigo abra passagem em direção aos centros da cidade; devemos mobilizar os operários armados, convocando-lhes a uma luta desesperada, à luta final; devemos ocupar imediatamente as centrais de telégrafos e de telefones, instalar nosso Estado-Maior da insurreição junto à Central de telefones e coloca-los em contato telefônico com todas as fábricas, com todos os regimentos, como todos os pontos em que se desenrole a luta armada, etc.”.
Nos escritos “Conselhos De Um Ausente” de 8 de outubro de 1917 e na “Carta Aos Membros do Comitê Central” de 24 Outubro, Lênin reforça que a demora na ação equivale à morte, que o triunfo da revolução russa e da revolução mundial depende de dois ou três dias de luta.
Finalmente, em 25 de Outubro de 1917, às 10 horas da manhã o Comitê Militar Revolucionário adjunto ao Soviet de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado anuncia a queda do governo provisório e a vitória da revolução operária, dos soldados e dos camponeses.
LÊNIN NO PODER – 1917/1923
No dia 25 de Outubro de 1917 (7 de Novembro) o comunicado escrito por V. I. Lênin “Aos Cidadãos Russos” informou a população da derrubada do governo provisório. O poder foi tomado pelo Comitê Militar Revolucionário, órgão do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado.
Poucos dias depois a insurreição de Outubro se estenderia de Petrogrado à Moscou e às províncias. Uma cruenta guerra civil teria início imediatamente após a Revolução Socialista de Outubro: aliada até então dos imperialismos inglês e francês, a Rússia sairia pouco depois da I Guerra Mundial através de uma paz em separado com os Alemães. Entre 1917-1921, uma guerra civil brutal mobilizou nada menos do que 14 estados nacionais contra o poder soviético.
Aleksandr Vasiliyevich Kolchak dirigiu a contrarrevolução da Sibéria mobilizando os exércitos brancos de 1917 até a sua derrota em Omsk no ano de 1919. Anton Denikin dirigiu o exército branco desde o sul até a captura de Moscou, sendo derrotado em 1920. Tropas japonesas intervinham pelo oriente e os grupos contrarrevolucionários obtiveram apoio em dinheiro e armas principalmente de Inglaterra, França e EUA.
Em uma intervenção naquele período Lênin comparou a situação da Rússia após a revolução de outubro à situação de alguém que ao mesmo tempo busca erguer do zero a sua casa e tem de defendê-la dos ataques e torpedos de um assaltante.
Quando se analisa as intervenções de Lênin após a tomada do poder, duas questões de imediato surgem: a necessidade de vencer a resistência contrarrevolucionária e a nova questão de aprendizagem quanto à administração do estado soviético.
Quanto ao tema da contrarrevolução, a paz de Brest-Litovski de 3 de Março de 1918 cumpriu o importante papel de estabelecer uma trégua, ainda que profundamente desfavorável aos russos, dos inimigos externos possibilitando direcionar as forças vermelhas sobre a contrarrevolução interna (Kolchak, Denikin, socialistas revolucionários, mencheviques, etc.).
O programa de paz dos bolcheviques enunciado antes mesmo de Outubro de 1917 se diferencia de uma paz imperialista imposta pelos vencedores da guerra, como foi a Paz de Versalhes de 28 de Junho de 1919. A palavra de ordem bolchevique era uma paz justa e democrática, sem qualquer anexação ou contribuição de guerra.
Este tema da Paz foi abordado por Lênin em setembro de 1917 no escrito “As Tarefas da Revolução”:
“O governo soviético deverá propor sem demora a todos os povos beligerantes (isso é, a seus governos e, simultaneamente, às massas de operários e camponeses) a conclusão imediata de uma paz geral sobre bases democráticas e, além disso, um armistício imediato (ainda que somente por três meses). A condição fundamental para uma paz democrática é renunciar às anexações, mas não no sentido falso de que todas as potências devam recuperar o que tenham perdido, mas no único sentido justo, ou seja, no sentido se que todo o povo, sem exceção alguma, tanto na Europa, quanto nas colônias, obtenha liberdade e possibilidade de decidir por conta própria se deseja constituir um Estado independente ou participar de qualquer outro. Ao propor estas condições de paz, o governo soviético deverá, por sua vez, coloca-las em prática sem qualquer demora, isto é, deverá tornar público e anular os tratados secretos que ainda nos ligam, tratados concluídos pelo tsar, nos quais se promete aos capitalistas russos o saque da Turquia, Áustria, etc.”.
A vitória da Revolução de Outubro, a Paz de Brest Litovisk e a vitória vermelha na Guerra Civil 1917/1921 marcam a primeira fase de existência do poder soviético, período caracterizado como “comunismo de guerra” (expressão utilizada por Lênin).
Nesta primeira etapa, pode-se falar de uma revolução democrática no sentido de acabar com os resquícios feudais da economia, da cultura e das instituições políticas soviéticas. Vencer este atraso medieval, considerando a esmagadora maioria populacional russa de pequenos camponeses, envolveria mesmo o estabelecimento de um capitalismo de estado, caracterizado por Lênin, como uma antecâmara do socialismo. Neste primeiro momento, havia a necessidade urgente de reestabelecer a grande indústria e organizar a troca direta dos seus produtos pelos da pequena agricultura camponesa, contribuindo para a socialização desta; tomar aos camponeses, a título de empréstimos, uma determinada quantidade de víveres e matérias primas através da requisição. Com o fim da Guerra Civil, surge a necessidade de aumentar a circulação de mercadorias através de concessões pontuais ao capitalismo: ao invés das requisições armadas dos tempos da guerra civil, o imposto em espécie.
Uma segunda etapa da revolução tem início com a partir da primavera de 1921 e esta nova situação se expressa nas cogitações de Lênin nesta última fase de sua vida pública.
Os comunistas devem colocar a si a tarefa de elevar a produtividade do trabalho social – nesta etapa não há a necessidade de impulsos histéricos, como na fase imediata após outubro, mas uma marcha cadenciada, sabendo avançar e recuar conforme as exigências do momento. “Melhor Menos, Porém Bom” e “Sobre o Cooperação” são textos representativos desta última fase dos escritos de Lênin, quando surge a ideia de uma revolução cultural e mudanças nas instituições soviéticas, como a criação da Inspeção Operário Camponesa para melhorar e reformar o estado soviético.
Em cartas direcionadas ao XII Congresso do Partido, Lênin sugere o aumento número de membros do comitê central de 50 até 100 militantes, que deveriam ser recrutados dentro da base operária. Uma das razões é que Lênin já previa uma cisão no partido e cita nominalmente Trótsky e Stálin como a provável origem da cisão.
Desde a segunda metade de 1921, Lênin sofre de dores de cabeça e insônia regulares. Em 30 de agosto de 1918 já havia sido vítima de um atentado a bala, o que debilitou desde então a sua saúde. Em março de 1923 Lênin sofreu um terceiro acidente vascular cerebral e perdeu sua capacidade de fala. No dia 21 de janeiro de 1924 falecia Vladimir Ilyich Ulianov, Lênin.