Por Paulo Marçaioli
Resenha do livro Fidel e a Revolução – Judith Elaine dos Santos e Edgar Jorge Kolling (orgs.). Ed. Expressão Popular. 2017.
“O que primeiro temos que nos perguntar, aos que fizemos esta revolução, é com que intenção a fizemos. Se em algum de nós se escondia a ambição, ânsia de mandar, o propósito desleal. Se em cada um dos combatentes desta revolução havia um idealista, ou se com o pretexto do idealismo, tinha outros fins. Se fizemos esta revolução pensando que, quando a tirania fosse derrotada, desfrutaríamos dos ofícios do poder. Se cada um de nós subiria num carro “rabo de pato”[1], se cada um de nós viveria como um rei, se cada um de nós teria um palacete, e daí para frente a vida, para nós, seria um passeio, já que para isso havíamos sido revolucionários e havíamos derrotado a tirania. Se o que estávamos pensando era tirar uns ministros para colocar outros, se o que estávamos pensando era simplesmente tirar uns homens para colocar outros homens. Ou se, em cada um de nós, havia um verdadeiro desinteresse, se em cada um de nós havia um verdadeiro espírito de sacrifício, se em cada um de nós havia o propósito de dar tudo em troca de nada e se, de antemão, estávamos dispostos a renunciar a tudo que não continuasse cumprindo sacrificadamente com o dever de sinceros revolucionários. Temos que nos fazer essa pergunta porque o futuro de Cuba, o nosso e o do povo, pode depender muito do nosso exame de consciência”. Fidel Castro – 08/01/1959
As palavras supracitadas correspondem a parte do discurso pronunciado por Fidel Castro quando da sua chegada a Havana, na Cidade Liberdade, em 08/01/1959.
Fazia sete dias que os revolucionários do Movimento 26 de Julho haviam derrotado a ditadura de Batista, que perdurara por 11 anos, desde o golpe de estado de março de 1953.
O ditador Batista fugiu de Cuba para a República Dominicana na madrugada de 1 de janeiro de 1959. Fidel tinha então 33 anos: líder inequívoco dos revolucionários cubanos, já tinha atrás de si alguns anos de prisão, exílio e luta revolucionária.
Na verdade, foi o mal sucedido ataque ao quartel de Moncada em 26 de julho de 1953, quatro anos antes, portanto, o verdadeiro ponto de partida da Revolução Cubana: o ataque ao quartel militar corresponde ao ponto de partida da luta armada revolucionária na ilha. 43 revolucionários tombaram e Fidel Castro, então um jovem advogado, foi condenado a 15 anos de prisão.
Da reclusão, formulou sua conhecida defesa, “A história me absolverá”[2].
Após a saída de Fidel da cadeia em 12/06/1955, foi fundado o Movimento 26 de julho que dirigiria a luta armada a partir da Sierra Maestra. Em Julho daquele mesmo ano, os revolucionários no exílio no México prepararam politicamente e militarmente a luta. Foi neste período que Fidel conheceu Che Guevara, então um jovem médico que, nas palavras de Castro, se dedicava então a dissecar corpos de coelhos para estudo. Aprenderiam a arte militar na prática.
O embarque no Gramna no porto mexicano de Tuypaan ocorreu em 24/11/1956, barco que conduziu os 82 revolucionários pioneiros que desencadeariam uma luta guerrilheira no campo durante 3 anos, até a derrubada violenta da ditadura. Estavam no grupo Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro.
No dia 18 de dezembro de 1956 ocorre o encontro de Fidel com Raúl e cinco outros expedicionários, em Cinco Palmas. Consta ter havido o seguinte diálogo, após um emocionante abraço:
“- Quantos fuzis trazem? – pergunta Fidel
– Cinco – responde Raúl.
– Com os dois que tenho eu, sete! Agora, sim, ganhamos a guerra!”
Muitos anos depois, Fidel Castro, já presidindo Cuba, diria que a política é a arte de tornar possível o impossível. As diversas vitórias que a revolução alcançaria ao longo das décadas subsequentes certamente reafirmam este espírito nitidamente revolucionário de tornar o improvável uma realidade.
É certo que a Revolução Cubana de 1959 não foi uma revolução socialista, como o Outubro de 1917 na Rússia.
O caráter socialista da revolução foi declarado em 16/04/1961: a proclamação do caráter socialista da revolução é uma resposta à agressão imperialista perpetrada por mercenários articulados pela CIA com a invasão da praia Girón e morte de sete cubanos.
O acirramento da violência entre a revolução cubana e o imperialismo norte americana acentuou-se com as medidas democráticas tomadas após a vitória de 1959. Por exemplo, uma lei de reforma agrária estabeleceu a desapropriação de latifúndios e terras detidas por estrangeiros, mediante uma indenização paga pelo estado por títulos públicos de prazo de 10 anos. Houve a nacionalização das refinarias de petróleo, das 36 centrais açucareiras e das companhias telefônicas e de eletricidade, em resposta ao cancelamento da cota açucareira por parte do governo dos EUA.
Mesmo com a atuação da contrarrevolução e sob sua ameaça, Cuba conseguiu, no ano de 1961, a proeza de extinguir o analfabetismo na Ilha. Tudo num prazo de um ano! Já a lei da reforma agrária beneficiou 200 mil famílias. Saúde e educação tornaram-se serviços de alcance universal. Até os jogos de basebol, esporte querido dos cubanos, tornaram-se necessariamente gratuitos, estabelecendo-se o direito ao lazer.
É certo que Fidel e seus companheiros conheciam o marxismo leninismo antes de 1961. Contudo, mesmo antes como depois da declaração formal do caráter socialista da revolução, parece que aquelas lutas eram mais inspiradas em José Martí e às jornadas de independência latino americana, do que em Marx, Engels e Lênin. Sobre o assunto, talvez seja sintomático que a denominação do partido dirigente revolucionário como Partido Comunista Cubano (PCC) só tenha ocorrido em 01/10/1965.
Muitos anos depois, Cuba exportaria especialistas militares e militantes internacionalistas para lutar pela independência de países na África, mesmo contando com críticas e reservas por parte das direções soviéticas. Cuba contribuiu diretamente com a liberação de Argélia, Angola e Guiné Bissau – só em Angola, os cubanos enviaram 300 mil combatentes em face de tropas fascistas sul-africanas, apoiadas pelos EUA.
É certo que houveram dificuldades e necessidade de retificações, de modo que a revolução cubana não se diferencia das demais no que se refere a existência de contradições. Nos discursos de Fidel referentes ao período que vai entre 1959/1961 há a defesa da mudança do regime econômico por meio da educação, do sacrifício individual, da disciplina consciente. Em 1961, os dirigentes cubanos, entre eles Che, suscitavam o trabalho voluntário e a necessidade de se criar um novo homem. Posteriormente, em pronunciamentos dos anos 1970, Fidel reconhece que os estímulos materiais podem ser necessários para o incremento da produtividade: para alcançar o comunismo, é necessário desenvolver as forças produtivas, desenvolver a produção para permitir que os produtos cheguem a todos.
É certo que o realismo dos dirigentes cubanos nunca foi um impeditivo para que aquele povo lograsse alcançar grandes objetivos, metas que poderiam parecer utópicas. No ano de 2000, Cuba tinha o maior número per capta de médicos e professores do mundo. Mesmo após a derrota do socialismo no leste europeu, os cubanos seguem com sua experiência revolucionária, inclusive após a morte de seu principal dirigente em novembro de 2016. Chamado de ditador por anticomunistas e liberais, Fidel Castro manifestou o desejo, antes de morrer, no sentido que seu nome não fosse inscrito em nenhuma rua, bustos e/ou estátua de Cuba.
Nota:
[1] “Rabo de pato”: expressão utilizada em Cuba para os luxuosos automóveis dos anos 1950, cuja parte traseira era semelhante a um “rabo de pato” e simbolizava o privilégio das elites dominantes.
[2] Resenha em http://esperandopaulo.blogspot.com/2014/12/a-historia-me-absolvera-fidel-castro.html