Por Gabriel Bichir
Quem odeia o destrutivo terá que odiar também a vida: apenas a morte é a alegoria do vivente não deformado
(Adorno)
Life is Strange é um jogo de história interativa desenvolvido pela empresa Dontnod e lançado em 2015. À primeira vista, pode parecer uma reciclagem de drama colegial americano barato com um toque de ficção científica, mas logo descobrimos que as coisas não são assim tão simples. Na história, controlamos Max, uma estudante de fotografia num renomado high school de Oregon, que descobre ter o poder de voltar o tempo por alguns instantes. Ela vê Chloe, sua melhor amiga de infância, sendo morta com um tiro no banheiro por outro estudante e, no calor da hora, faz o tempo retroceder até o momento em que estava numa sala de aula. Assim, já sabendo o que aconteceria em seguida, ela consegue impedir o assassinato da amiga e precisa lidar com as consequências, cada vez mais catastróficas, de sua interferência no fluxo temporal.
A premissa é banal e pouco difere das dezenas de filmes do tipo, que exploram loops temporais advindos do efeito borboleta; o jogo em nenhum momento faz profissão de fé de originalidade, pelo contrário, deixa claras suas intenções desde o momento em que Max vê uma borboleta no banheiro e tira uma foto dela. A questão é que ficção científica e a temática “coming of age” não passam de molduras a partir das quais a história se desenvolve, pois o jogo narra, de fato, uma história de amor entre Max e Chloe. Seus motivos são claramente retirados do Romantismo: a epopeia do amor que conduz à morte, uma atmosfera melancólica e nostálgica focada no conflito interior. Mas o jogo funciona precisamente porque mistura gêneros sem se comprometer com nenhum deles: a narrativa colegial “uplifting” logo vira uma história de detetive sombria com assassinatos e suicídios, a ficção científica não tem qualquer independência e sempre aparece subordinada à mecânica das escolhas e ao ritmo narrativo. Como o fio condutor é o amor tempestuoso das duas, o jogo se permite mudanças bruscas no gênero, que servem tanto para quebrar expectativas atreladas ao formato quanto para aumentarem a margem de experimentação.
Em relação à forma, cabe comentar a pertinência da assim chamada “narrativa interativa”, que consiste na escolha entre diferentes opções nos diálogos com as personagens que habitam aquele mundo. Max tem contato com vários estudantes, professores, funcionários etc e desenvolve uma série de conversas com eles que podem tomar diferentes rumos dependendo das escolhas feitas pelo jogador. Esse formato nada tem de revolucionário e é muitas vezes utilizado de maneira preguiçosa para simular uma espontaneidade e uma complexidade narrativa inexistentes. Busca-se realçar a liberdade do jogador através da criação de múltiplas possibilidades de caminhos e finais para a história, mas isso pode facilmente recair em seu contrário: uma experiência enrijecida do jogo que não consegue articular essas possibilidades de forma orgânica a partir de um fio narrativo comum; a dispersão pode facilmente levar ao desinteresse pela narrativa ou à multiplicação arbitrária de desfechos que atentam contra as próprias premissas do jogo. Esse não é o caso de Life is Strange, que faz o melhor possível com esse formato um tanto pobre de gameplay; aqui, muitas das escolhas efetivamente têm o peso que alegam ter, encontrando ressonâncias em todos os capítulos subsequentes e sendo comentadas por vários personagens principais e secundários. No entanto, o que separa o jogo de outros do gênero é que ele ensaia a negação de sua própria forma: a escolha final de Max no quinto capítulo nega todas as escolhas anteriores e torna-as, de certo modo, inúteis. Esse exercício de autonegação não atinge as alturas de Nier: Automata, em que a negação da forma é um elemento integrado ao conteúdo mesmo do jogo, mas ainda assim gera um choque interessante e uma espécie muito particular de frustração nos momentos finais – afinal, como veremos, a escolha derradeira é absoluta e precisa sê-lo para manter-se fiel ao desenvolvimento narrativo.
O jogo está predicado numa forte identificação com a protagonista, que é talhada na medida certa para suscitar a simpatia do jogador. Trata-se de uma garota comum, com gostos assumidamente hipsters, tendendo ao geek, que têm grande dificuldade de fazer amigos no colégio devido à sua timidez, o que o jogo deixa claro já na primeira vez que a controlamos: logo que sai da aula, Max coloca os fones de ouvido para ouvir música e atravessa um longo corredor sem conversar com ninguém, tentando fazer-se invisível. Temos também acesso ao seu celular, com pouquíssimos amigos, e a seu diário, em que relata as dificuldades de adaptação na nova escola. Apesar disso, ela não é uma protagonista passiva, nem desprovida de personalidade: podemos interagir com muitas pessoas e objetos e Max sempre tem opiniões fortes e, não raramente, irônicas, sobre tudo e todos. Apesar de tímida, é inteligente, curiosa e genuinamente disposta a ajudar aqueles que precisam dela. A dinâmica com Chloe funciona bem porque ambas têm personalidades opostas: enquanto Max é tímida e pensa mais do que age, Chloe é destemida, corajosa e extrovertida, tirando Max de sua zona de conforto. É dito que antes desse dia fatídico as duas passaram cinco anos afastadas, pois Max havia se mudado para Seattle e não contactara a amiga nenhuma vez durante esse tempo, o que gerou um forte ressentimento em Chloe, que se sente traída e abandonada.
A atmosfera do jogo, inicialmente leve e descontraída, adquire ares cada vez mais mórbidos e sombrios, até alcançar o clímax no final trágico. Uma situação de bullying no colégio leva ao potencial suicídio de uma aluna (dependendo de escolhas do jogador); o professor de fotografia de Max revela-se um assassino em série obcecado por tirar fotos de suas vítimas inconscientes; mudanças climáticas cada vez mais estranhas culminam numa tempestade que ameaça destruir toda a cidade. Com isso, o jogo deixa clara sua veia romântica na medida em que tematiza a projeção exterior dos estados emocionais turbulentos da protagonista. Com efeito, o dilaceramento subjetivo é imediatamente revertido numa força externa destruidora, pois os poderes de Max são diretamente responsáveis por causar o tornado. O problema é que não importa o caminho escolhido, Chloe sempre acaba morrendo de alguma forma; nas inúmeras tentativas de evitá-lo, Max provoca alterações temporais que interferem não só nas vidas das personagens, mas também no ecossistema.
O percurso do jogo até o final turbulento, que em breve comentaremos, conta as peripécias das duas amigas na tentativa de redescobrir o amor de infância. Chloe perdera o pai num acidente de carro pouco antes da mudança de Max, quando ambas tinham treze anos; depois disso, ela se sentiu sozinha e sem perspectivas e tornou-se uma típica jovem punk revoltada contra a mãe e o padrasto. Antes do retorno de Max por causa do curso de fotografia, Chloe conheceu Rachel e se apaixonou por ela; as duas tinham como objetivo fugir de Arcadia Bay e tentar a vida em Los Angeles, mas pouco antes de executarem seu plano Rachel desapareceu misteriosamente e Chloe começou a procurá-la por todos os cantos da cidade, sem sucesso. Defrontada com esse imbróglio, Max promete ajudar a amiga em sua busca, pois suspeita que Rachel fora sequestrada pelo estudante que quase atirou em Chloe no banheiro, o que é comprovado mais à frente. Com efeito, a investigação que as duas levam a cabo é visivelmente secundária diante do desenvolvimento de sua relação; o que realmente importa é a maneira como se relacionam à nostalgia da infância compartilhada e à impossibilidade de revivê-la no presente. As duas eram inseparáveis e passavam os dias juntas; nas interações presentes, revivem constantemente as antigas fantasias e sempre tentam reproduzi-las de alguma forma: dormem juntas, assistem filmes, criam aventuras e fazem planos para o futuro. Contudo, logo percebem que é impossível: Max sente-se culpada por abandonar a amiga no passado e Chloe a ressente por tê-la abandonado em seu momento de maior fragilidade. Particularmente interessante é o fato de o jogo não negar a força afetiva da nostalgia – inclusive assimilando-a como princípio formal nos gráficos impressionistas –, mas mostrar como a relação das duas só pode se transformar se aceitar a impossibilidade de revivê-la, sem abrir mão do amor previamente construído. Por isso, a própria natureza da relação permanece ambígua: elas se beijam, demonstram ciúmes e flertam de modo velado, mas nunca discutem explicitamente o status do relacionamento. Quando Max apresenta Chloe a um professor, hesita alguns instantes antes de chamá-la de “amiga”. Essa indeterminação é um elemento constituinte do amor das duas e, ao contrário do que se poderia esperar, fortalece-o em vez de enfraquecê-lo; justamente porque esse amor é absoluto, a escolha final de Max também precisa sê-lo.
A confiança de Max em seus poderes é gradualmente minada ao longo do jogo porque suas escolhas levam frequentemente a situações piores do que aquelas que deveriam consertar. Em certo momento, ela retrocede cinco anos e consegue evitar o acidente que levou à morte do pai de Chloe; no entanto, quando vai atrás da amiga para verificar o resultado de seus esforços, encontra-a numa cadeira de rodas e é informada de que naquela realidade foi ela e não o pai que se acidentou. Sua condição é tão sofrida que ela pede a Max que aumente sua dose de morfina para matá-la por overdose (a escolha de fazê-lo fica a critério do jogador). Max não suporta a situação e decide retornar à sua realidade, deixando o pai de Chloe morrer para que ela possa viver. A escolha final do jogo reduplica a anterior elevando-a à segunda potência: Max deve escolher entre salvar Chloe e deixar a cidade inteira ser destruída pelo tornado ou voltar no tempo e permitir que ela seja assassinada para que as alterações no ecossistema nunca aconteçam. Por ser uma escolha absoluta, é pertinente que ignore todas as anteriores: desse modo, o jogo entende que o amor das duas é o fio condutor de toda a narrativa e o peso de levá-lo ou não às últimas consequências deve ter precedência sobre todo o resto. A história certamente seria muito pior se contasse com dezenas de finais talhados a partir de escolhas anteriores menos importantes. Contudo, é precisamente por ser uma escolha absoluta que a decisão final não deveria ser uma escolha: Max sacrificou tudo pela amiga sucessivas vezes até aquele momento, é evidente que não existe nada mais importante para ela do que evitar sua morte. Para esse amor que vai até o fim, preservar-se é a única escolha possível; supor que salvar a cidade seja uma possibilidade de mesmo peso é ignorar todo o desenvolvimento da protagonista até então. No mundo não-reconciliado, um ato de amor verdadeiro só é possível como afirmação do máximo egoísmo, em que o mundo mesmo desaparece diante do objeto amado.
É verdade, porém, que a simples possibilidade dessa escolha subverte os clichês típicos do gênero “efeito borboleta”: via de regra, os protagonistas descobrem-se presos num loop temporal indestrutível e precisam retornar ao ponto de origem para desfazer tudo ou, não raramente, sacrificar a si mesmos ao longo do caminho. Esse é o caso de Dark, que estrutura muito bem sua narrativa, mas falha em subverter tais lugares-comuns. Ora, o simples fato de Max poder escolher manter a amiga viva sacrificando uma cidade inteira fala a favor do ímpeto do jogo de permitir ao conteúdo fraturar a forma-pronta; ainda assim, seria mais radical eliminar por completo o mecanismo de escolha e fornecer como único final possível a salvação de Chloe.
Nos momentos finais, Max encontra-se, por assim dizer, num horizonte de fim de análise: pouco antes de deliberar por Chloe ou por Arcadia Bay, controlamo-la numa sequência semionírica em que se defronta com suas piores fantasias. Aqui, o dilaceramento subjetivo assume o primeiro plano e o jogador precisa executar uma série de tarefas nos “sonhos” de Max enquanto ela está desacordada e sendo carregada por Chloe até um local protegido. Tratam-se de várias cenas separadas construídas a partir de elementos de filmes de terror, em que Max precisa confrontar as pessoas que ajudou e prejudicou, juntamente com seus próprios medos. Nesse processo, ela mesma levanta a possibilidade de ter querido tudo aquilo, extraindo um prazer sádico de ver o mundo em chamas. Um momento particularmente marcante ocorre quando ela se encontra novamente na sala de aula do início do jogo e precisa conversar com Jefferson, o professor que fora revelado como o assassino em série; quando Max aproxima-se para conversar com ele, todas as opções de diálogo disponíveis são insinuações sexuais explícitas e propositalmente ridículas, de tal modo que a própria protagonista diz que “não vai falar nada daquilo”. Trata-se de um artifício muito bem construído pelo jogo, que busca reduplicar a violência dos pensamentos involuntários de Max tirando a liberdade do jogador de escolher outro tipo de opção na conversa. Emocionalmente, a protagonista está em frangalhos: sente-se culpada tanto por seus fracassos como pelos sucessos; fantasia com o professor que queria matá-la; imagina uma série de personagens transando com Chloe e questiona seu suposto altruísmo quando tentou ajudar os outros com seu poder. A escolha final só pode ser feita depois que Max atravessou o fantasma e aceitou seu desamparo – assim, após confrontar a violência de seu desejo, ela pode assumir o peso catastrófico de seu amor e afirmá-lo num ato final de negação do mundo.
Max não nega seu sofrimento, mas usa-o como único ingrediente possível numa escolha irracional, que pesa o destino de uma pessoa amada frente àquele de milhares de desconhecidos. Com isso, o jogo entrevê uma dialética possível entre humano e inumano: o ato de Max é verdadeiramente ético justamente porque não nega seu fundo inumano; ela compreende as consequências de permitir a destruição da cidade, mesmo porque a mãe de Chloe está lá e morrerá também, mas ainda assim afirma o amor egoísta acima de todo o resto e mantém-se fiel ao seu desejo, tal como Antígona, que deixa perecer a lei da pólis diante da tarefa de enterrar o irmão. A radicalidade desse ato falsifica todos os experimentos mentais abstratos do tipo “trolley problem”; aqui, a ação ética é forçosamente traumática, mas esse trauma é precisamente a força que fratura a subjetividade utilitarista calculadora de vidas – num mundo absolutamente desumano, a escolha impossível de Max resguarda a única afirmação possível do humano.
Nesse sentido, o mecanismo da teoria do caos funciona como uma espécie de metáfora da não-liberdade do mundo capitalista, algo que não é diretamente tematizado no jogo, mas surge como um lampejo num momento específico: quando visita a realidade alternativa em que Chloe é tetraplégica, Max descobre que sua família atolou-se em dívidas, sendo obrigada a hipotecar a casa, simplesmente para conseguir manter a filha viva. Ali, o sofrimento individual é imediatamente sofrimento social, denunciando implacavelmente a sociedade que ratifica e reproduz tamanha barbárie. A experiência de não-liberdade de Max, de não conseguir efetivamente mudar as coisas com seu poder, replica a impotência do indivíduo diante do destino que o capitalismo lhe impõe, juntamente com o sentimento de culpa que a acompanha. O desejo que não faz concessões e mergulha no que há de mais cinzento sem reivindicar pureza anuncia a possibilidade de uma sociedade livre.
Retornamos ao fio condutor de toda a narrativa, a saber, o tatear pela nostalgia da infância. O desejo abissal de Max é ao mesmo tempo afirmado em seu nome e contra ela; não se trata de negar abstratamente sua possibilidade, mas de afirmá-la insistentemente ainda que seus componentes não sejam mais os mesmos. Trata-se de uma nostalgia não passadista, que aceita sua impossibilidade no momento mesmo em que reitera sua promessa: Max quer a leveza do amor da infância com a felicidade futura que ele prometia, mas reconhece que terá de sacrificar tudo em seu nome. Ora, nem toda nostalgia é reacionária; ela pode conter um elemento utópico quando não se prende ao restauracionismo, mas compreende a impossibilidade de sua repetição – para que possa se realizar, aquilo mesmo que lhe servia de fundamento deve perecer. Isso não é desimportante quando consideramos que a alt-right fez da nostalgia uma poderosa plataforma de ação: ela invoca aquele vago “no meu tempo era melhor”, dando a entender que o mundo era perfeito quando as minorias não faziam tanto alarde, o politicamente correto não se intrometia nos jogos de videogame, as empresas não vendiam justiça social como algo moralmente superior etc. Não é mera coincidência que esse tempo seja comumente associado à infância. O jogo desativa essa falsa nostalgia na medida em que encena sua autonegação; por si só, ela poderia apenas gerar uma repetição sem fim de dor e sofrimento, pois tem como fundamento a frustração que advém da impotência de transformação do mundo hostil. Max e Chloe não só não repetem, mas criam algo novo a partir dessa impossibilidade: um amor redescoberto, que não se pretende livre dos ressentimentos do passado, mas ainda assim se afirma de modo absoluto e destrói tudo em seu caminho, até mesmo sua versão idealizada da infância. A verdadeira nostalgia é a nostalgia de um mundo sem nostalgia.