Por Alex Martins Moraes
Em vez de outorgar parcelas iguais para culturas múltiplas e diferenciadas, por meio das quais as pessoas são reconhecidas como parte da humanidade de maneira indireta através da mediação de identidades culturais e coletivas, a universalidade humana descobre-se no ponto de ruptura de um evento histórico. É nas descontinuidades da história quando as pessoas cujas culturas foram forçadas até um ponto de ruptura compreendem que sua existência pessoal não é idêntica às coletividades culturais e conseguem, assim, expressar uma humanidade que vai mais além dos limites culturais.
Susan Buck-Morss, A história universal
Antropologias da revolução
Igor Cherstich, Martin Holbraad e Nico Tassi propõem uma antropologia da revolução. Eles desenvolvem seu enfoque no livro intitulado Anthropologies of Revolution. Forging Time, People, and Worlds (University of California Press, 2020). Ali, definem a problemática fundamental de uma agenda de pesquisa que se propõe a compreender os “fenômenos revolucionários” em diferentes “contextos etnográficos” a partir de sua relação com diversas configurações sociais, cosmologias, mitologias, práticas rituais, noções de tempo, espaço, poder e personalidade. Situadas nestes “contextos”, as revoluções seriam encaradas não apenas como “fenômenos políticos”, mas também, e, sobretudo, como “processos de transformação social em grande escala que penetram profundamente no tecido da vida das pessoas […] inter[agindo] com formas e estruturas localizadas […]” (Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 4). Em vez de delimitar de antemão a natureza e o escopo das revoluções, os autores pretendem partir de uma compreensão “ampla”, “flexível” e “intuitiva” a seu respeito. Neste sentido, haveria revolução sempre e quando se verificam “grandes turbulências destinadas a uma mudança total da ordem política, o que frequentemente implica um conflito no qual […] a própria constituição do mundo é posta em jogo” (ibid.: 9). A “antropologia da revolução” ambiciona colocar em evidência, precisamente, a dimensão “cosmogônica” de seu objeto: que mundos as revoluções desafiam e que mundos elas pretendem criar? Tal questão precisa ser respondida localmente, partindo-se da premissa segundo a qual “revolução” constituiu uma categoria situada e, portanto, variável de acordo com as “circunstâncias sociais e culturais” vigentes em cada momento e lugar.
A antropologia da revolução encontra seus antecedentes teóricos numa linhagem disciplinar que decidiu analisar as políticas radicais sobre o pano de fundo do ethos tribal, do parentesco, do ritual e da religião. Ponto alto dessa estirpe, Victor Turner avaliou a Revolução Mexicana de 1810, protagonizada por Miguel Hidalgo sob o signo de Nossa Senhora de Guadalupe, como uma suspensão das estruturas coloniais vigentes através da instauração de uma liminaridade que encontrou na Virgem Morena a expressão simbólica da communitas[1] subjacente entre índios, mestiços e criollos (ibid.: 26). Depois do grito de independência, em meio a uma desordenada campanha militar, as forças de Hidalgo sofreram graves revezes diante das tropas da coroa espanhola. Como consequência, Hidalgo foi removido do comando militar e a insurgência perdeu seu caráter mítico, ao passo que as hierarquias coloniais eram restabelecidas na ante-sala de uma independência negociada com a metrópole. Nesse processo, Turner divisou a oscilação trágica entre liminaridade e estrutura, este “fado” incontornável “de todas as communitas espontâneas na história” (Turner, 1969: 132 apud Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 27).
Para os autores de Anthropologies of Revolution, a noção de liminaridade ajudaria a especificar as condições de possibilidade dos processos revolucionários em geral. A teoria do ritual seria, então, uma metalinguagem promissora para desenvolver o relato antropológico das revoluções, sempre e quando descentrarmos a “oscilação trágica” vaticinada por Turner e aceitarmos que a liminaridade pode engendrar um vislumbre poderoso de outro mundo; um vislumbre capaz de projetar sobre a estrutura social que deveria absorvê-lo a força disruptiva de quem outrora experimentou uma transcendência liminar e agora se dispõe a atualizá-la como força antagônica às instituições estabelecidas. Em termos teóricos e etnográficos, Maurice Bloch (1992) teria aberto caminho a esta reavaliação da communitas ao analisar como, por volta de 1863, os súditos merina de Madagascar, descontentes com a submissão dos reis aos invasores ingleses e franceses, declinavam de participar das performances reais de circuncisão. De modo desafiante, eles recusavam-se a deixar suas tarefas agrícolas e começavam a ser possuídos massivamente por espíritos ancestrais. Segundo a interpretação de Bloch, esta postura emulava a primeira etapa do ritual de circuncisão, na qual a morte do rei menino era evocada pelo ato de despi-lo dos seus atributos “femininos” e investi-lo de uma jovialidade masculina, tributária da linhagem de seus ancestrais agnáticos. Ato seguido, o ritual entrava numa segunda etapa em que a potência conquistada através da conexão com os ancestrais era realizada pela via de um retorno violento ao mundo, marcado pelo consumo da “vitalidade” de plantas, animais e mulheres e por eventuais campanhas militares contra grupos vizinhos. Bloch sugere que os súditos rebeldes replicaram a primeira etapa do ritual, mas não passaram à segunda fase, limitando-se a negar a autoridade dos reis e a afirmar a autoridade dos antepassados através da participação mediúnica em seu mundo atemporal. No entanto, segundo os autores de Anthropology of Revolution, nada, salvo sua eventual debilidade militar, impediria que os súditos merina dessem um passo mais e investissem violentamente contra os colonialistas franceses e ingleses, efetuando a culminação das cerimônias de circuncisão. Essa ativação revolucionária dos poderes violentos do ritual teria sido observada por David Lan (1985) entre as populações de língua shona da região de Dande, no norte do Zimbábue, durante a guerra de libertação nacional da década de 1970.
Lan acompanhou as relações tecidas entre os rebeldes do Exército de Libertação Nacional do Zimbábue (ZANLA) e os habitantes de Dande, cujos chefes costumavam amparar suas capacidades mágicas e seu controle territorial no beneplácito outorgado por reis ancestrais (mhondoro) que se manifestavam através de certos médiuns espirituais. A partir do final do século XIX, a administração colonial britânica restringiu o poder das chefaturas locais. Mais tarde, o governo da Rodésia reivindicou autoridade sobre a distribuição das terras, o que forçou a conversão dos shona em trabalhadores assalariados a serviço dos proprietários brancos. Neste contexto, os líderes tribais foram se tornando espécies de funcionários do governo, incumbidos de recolher impostos da população em troca de salários e outras regalias. Ditas circunstâncias determinaram uma drástica retração da autoridade e da legitimidade dos chefes, razão pela qual as pessoas comuns começaram a recorrer diretamente aos espíritos ancestrais – e aos seus respectivos mediadores – para operar diversas funções rituais consideradas de suma importância coletiva. Isto incrementou substancialmente a autoridade dos médiuns enquanto porta-vozes dos mhondoro que, por sua vez, mostravam grande aversão a tudo o que se relacionasse com o mundo branco. Estariam dadas, portanto, as condições para uma confluência dos shona – patrocinada pelos médiuns – com os rebeldes do ZANLA, que se propunham a expropriar os colonialistas e a redistribuir a terra entre os camponeses, fazendo cumprir, de certo modo, o mandato dos mhondoro. Ao serem vistos como cumpridores de uma ordem ancestral, os guerrilheiros conquistaram a simpatia dos shona. Estabeleceu-se, assim, uma aliança insólita na qual as apostas progressistas inerentes ao discurso socializante do ZANLA intersectaram-se com a voz de antigos reis para potencializar um movimento revolucionário duradouro com impacto decisivo no debilitamento do regime racista da Rodésia.
O livro de Cherstich, Holbraad e Tassi abunda em exemplos desse tipo. A Revolução Bolivariana é apresentada a partir da inscrição de Hugo Chávez no panteão dos próceres libertadores venerado no culto de María Lionza; o Proceso de Cambio boliviano é interrogado em referência à noção aimara de Pachakuti (Inversão do Mundo) que, em tensão com o relato “convencional” de uma emancipação progressiva, reivindica a potência atual de um submundo indígena destinado a prevalecer e a organizar a totalidade das relações sociais; o caso cubano é lido nos termos dos praticantes de religiões afro-caribenhas, para os quais a permanência da revolução depende de uma constante remessa de força vital (axé ou aché) assegurada por diferentes práticas sacrificiais; no Egito, o debate teológico sobre a predestinação divina do curso da história teria operado uma mediação entre o sagrado e o temporal, de modo a legitimar a participação das pessoas nos acontecimentos da Praça Tahrir, em 2011; na Líbia, a retomada do clamor autonômico tribal permitiu que o coronel Kadaffi conceitualizasse seu regime como um “governo das massas”, assente na celebração de constantes assembleias entre as diversas unidades políticas que povoavam o território nacional.
As experiências revolucionárias mais emblemáticas do século XX também são convocadas para exemplificar as potencialidades da antropologia promovida na obra que nos ocupa. Tanto na Rússia quanto na China, o impulso revolucionário teria se nutrido de tradições religiosas e metafísicas como o catolicismo ortodoxo e o confucianismo. O primeiro estaria explícito na importância atribuída por Lênin às práticas de “revelação”. Na ritualística ortodoxa, a revelação consiste em reconhecer os próprios pecados e em reiterar publicamente um compromisso de conversão religiosa. No leninismo, tal prática define a denúncia de certas condições de vida e de trabalho, conjugada à sinalização pública dos responsáveis pelo mal-estar popular, com vistas a promover a agitação das massas. Já o confucianismo encontraria prolongamentos na cosmogonia revolucionária chinesa sob o conceito de Homem Novo, produto de uma profunda reforma moral conduzida por indivíduos virtuosos, dispostos a converter-se num exemplo para as massas. O Homem Novo reapareceria no Ocidente como categoria central da Revolução Cubana, desta vez associado a uma lógica da redenção mediada pelo renascimento do indivíduo em uma nova fé ou verdade que guarda analogias com a salvação em Cristo.
As revoluções analisadas por Cherstich, Holbraad e Tassi definem noções de pessoa, de autoridade, de consciência e de inconsciência das quais emanariam critérios para a transformação do que se encara como “a realidade”. Segundo os autores, é em decorrência de seu movimento totalizante que as revoluções deveriam ser pensadas como práticas cosmogônicas “por direito próprio”, ainda que condicionadas à “ressignificação” das chamadas “noções convencionais” de revolução social (marxismos e anarquismos) e dos mitos e rituais localmente disponíveis. De fato, nossos autores acreditam que o mito e o ritual podem “produzir revoluções” ou, no mínimo, “inspirar ideias únicas de transformação revolucionária” (Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 136). Listo, sumariamente, algumas constatações que, ao longo do livro, vão pautando essa linha argumentativa principal:
– “Separar o estudo das revoluções de um enfoque estreito nos acontecimentos e explorar etnograficamente suas permutações em diferentes aspectos da vida social é, talvez, uma consequência da qualidade holística e global da pesquisa etnográfica” (39).
– “[No Irã, na Rússia, na China e em Cuba] o projeto político de transformar as pessoas em sujeitos revolucionários alinhou-se de uma ou de outra forma com ideias locais sobre o que as pessoas são, como estão constituídas e como se relacionam com os demais, incluindo poderes transcendentes e entidades divinas” (90).
– “[com relação ao maoísmo contemporâneo na Índia] observamos como as concepções convencionais de revolução […] estão sendo reconfiguradas e alteradas por meio de categorias religiosas e políticas hindus” (146).
– “No Haiti os rituais vodu se converteram no terreno onde instaurou-se a revolução” (149).
A sugestão de que as revoluções implicam um diálogo complexo entre diferentes “marcos e preocupações cosmológicos” (ibid.:155) é complementada, no final da obra, com um convite a entendermos esses processos não só em relação ao seu contexto cultural, mas também enquanto “projetos cosmológicos” sui generis. Logo, cada revolução expressaria, potencialmente, “noções nativas” específicas a respeito da criação do mundo e estas, por sua vez, poderiam ser lidas como paradigmas políticos transitórios. Aberta aos paradigmas em questão, a disciplina antropológica estaria autorizada a operar o “impulso” e a “checagem crítica” dos projetos de transformação revolucionária (ibid.: 169), tornando-se suscetível à influência de possibilidades diversas e impensadas, elas próprias capazes de inspirar a visão de outros mundos e de indicar, de alguma forma, o caminho para alcançá-los.
Não vou me deter na crítica das fontes empíricas selecionadas pelos autores. Tampouco pretendo debater a interpretação que fazem daquelas obras com as quais dialogam e polemizam. Neste comentário exploratório, quero interrogar apenas as condições conceituais que a “antropologia da revolução” pretende dar a si mesma. Como veremos, seus conceitos estruturam, em primeiro lugar, uma problemática. Em segundo lugar, servem para estabelecer critérios de resposta a essa mesma problemática. Finalmente, eles também operam como categorias de seleção, análise e interpretação de um referencial empírico que abastece a agenda investigativa geral, convertendo-a numa “antropologia”, isto é, num saber que encaminha suas práticas cognitivas mediante interlocução direta com as pessoas ou através de evidências fiáveis desse tipo de interlocução.
Metapolítica antropológica e categorias circulantes
Mesmo recusando-se a definir a “revolução” sem antes investigá-la, os autores esboçam, como não poderia deixar de ser, uma definição mínima, supostamente “intuitiva”, de seu objeto de estudo. As revoluções seriam um “processo de transformação social em grande escala” que interage com “formas e estruturas localizadas”. Esta interação permite abordá-las como cosmogonias, na medida em que colocam em jogo a “própria constituição do mundo”, ou seja – valha a redundância – as “formas e estruturas” localmente estabelecidas (ibid.: 4). Temos, aqui, os traços gerais de uma típica definição histórico-sociológica que apresenta as “revoluções” como processos visíveis que conduzem determinadas sociedades de um estágio a em direção a um estágio b, separados por um lapso temporal em cujo marco ocorrem certos eventos de ordem múltipla. A particularidade da “antropologia da revolução” seria seu interesse em articular a totalidade desses eventos sob a noção de “cosmogonia”. No argumento dos autores, a noção de “cosmogonia” depende da de “cosmologia”, posto que as coordenadas que definem a lógica de um mundo, seu funcionamento, etc. (cosmologia) poderiam alcançar uma efetuação prática e criativa na produção de mundo (cosmogonia) – e não apenas em sua reprodução via reiteração das estruturas. Daí que a problemática dessa “antropologia da revolução” se bifurque, por um lado, na pergunta sobre o mundo que as revoluções desafiam (definido por uma cosmologia) e, por outro lado, na pergunta sobre o mundo que a revolução quer criar (definido, este último, por uma cosmogonia que se nutre de cosmologias). Tal problemática desemboca na exploração empírica e na elaboração teórica da relação “revolucionária” existente entre cosmologias e cosmogonias.
Diremos, então, que a “antropologia da revolução” ancora-se em três categorias circulantes – “revolução”, “cosmologia” e “cosmogonia” – que fazem de qualquer referencial empírico um caso de si mesmas e do processo que elas formalizam. Adicionalmente, essas categorias articulam-se num discurso com pretensões metapolíticas.
Especifiquemos algumas noções: categoria circulante é um termo desenvolvido por Sylvain Lazarus (1996; 2013) – antropólogo que se dedicou à crítica da palavra “revolução” como categoria de análise empírica dos processos políticos e que não é citado uma vez sequer em Anthropologies of Revolution – para designar aqueles conceitos que circulam entre a multiplicidade dos espaços de pensamento, subordinando uns aos outros e desconhecendo sua singularidade. “Revolução”, por exemplo, é a categoria circulante por excelência: vai e vem entre a história e a política, entre a filosofia e a política, entre a economia e a política, entre a sócio-antropologia e a política. Em seu movimento, ela autoriza analogias e afiança comparações: permite, no final das contas, que a ciência faça seu trabalho disseminando um mesmo “objeto” em variados “contextos” a fim de transformar suas particularidades em matéria para o pensamento. Já por metapolítica devemos entender, referenciados em Jacques Rancière (1996), uma espécie de acompanhamento científico da política que se propõe a identificar seu verdadeiro conteúdo. Assim, no registro da metapolítica, qualquer fenômeno pode ser abordado como a demonstração da verdade de sua falsidade, ou ainda, como a ocultação discursiva de sua base essencial e decisiva que, do ponto de vista da “antropologia da revolução”, consiste no jogo “dialético” entre cosmologia e cosmogonia – independentemente da pretensão “retórica” dos protagonistas concretos de uma política específica. (Palavras dos nossos autores: “[…] o calendário [revolucionário francês] se propunha a purgar a medida do tempo de qualquer associação religiosa, completando a agenda recionalizadora e anticlerical de decimalização, mas mantendo crucialmente em seu seio uma noção de progressão cronológica linear” [Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 37]; “A forma escolhida por Mao para seguir seu caminho rumo ao comunismo tinha um tom inconfundivelmente confuciano – o que constitui claramente um paradoxo, levando em conta que o conteúdo do confucianismo tinha sido apresentado, desde o início, como inimigo da revolução” [ibid.: 83]).
A metapolítica sempre reivindica uma intenção política convergente com a verdade que ela pretende iluminar. Por isso, a “antropologia da revolução” se apresenta como eventual agente de “checagem crítica” dos processos de transformação sobre os quais se debruça. Em outras palavras, ela deseja explicar o motor real desses processos e indicar os limites e paradoxos de suas ambições declaradas; limites e paradoxos que coincidiriam com os de suas próprias condições cosmológicas de possibilidade.
Temos, então, que a “antropologia da revolução” repousa sobre um conjunto de categorias circulantes das quais se extrai uma analítica e uma metapolítica. Cabe, agora, perguntar sobre o que não pode ser pensado sob tais condições de pensabilidade. Os autores nos dizem algo a respeito na introdução do livro: seu programa de pesquisa prioriza contextos que se afastam da compreensão da revolução como “fenômeno predominantemente político”. O objeto da “antropologia da revolução” aparece na intersecção de uma categoria histórico-sociológica – “revolução” – e de duas categorias circulantes tipicamente sócio-antropológicas – “cosmologia” e “cosmogonia” –, arremessando para fora de si o acontecimento político que, às vezes, aparece no mundo – seja ele qual for – sob o nome de “revolução”. Devemos frisar que todo esse procedimento de fixação de um objeto ocorre com anterioridade à pesquisa empírica. Por conseguinte, ele não serve à melhor compreensão de algo pré-existente, mas à instauração do objeto que será investigado. De qualquer modo, em meio ao conjunto de processos heteróclitos que a disciplina antropológica irá amalgamar de acordo com sua formulação de objeto, sempre haverá esforços intelectivos singulares e irredutíveis, que enunciam a si mesmos e aos seus respectivos problemas a partir de proposições próprias.
Quando testemunhamos a enunciação de uma possibilidade transformadora que diz respeito ao poder-ser de certo conjunto de pessoas e coisas, podemos afirmar tranquilamente que uma política está acontecendo. Se esta política embaralha as categorias de pensamento herdadas ou as retrabalha à luz de categorias e intenções relativamente novas, estamos presenciando a suspensão da separação das linguagens, o que certamente supõe a redistribuição dos lugares de fala. Algo está sendo dito e feito no lugar “indevido” pelas pessoas “erradas”. Este procedimento fica evidente, por exemplo, quando observamos a articulação de elementos cosmológicos contextualmente disponíveis num enunciado que antecipa a transformação daquele mesmo espaço social onde, até então, dita cosmologia existia sem valor disruptivo. Tal operação representa, em si mesma, a singularidade de uma política. A política é o que apresenta a cosmologia, ou seus fragmentos, como algo dotado de valor disruptivo. Inverter essa ordem de causalidade não é apenas uma operação imaginária, mas também uma prova de arrogância: depois que alguém empreende o esforço titânico e infrequente de enunciar uma nova possibilidade de existência em meio à linguagem estabelecida, vem um antropólogo e diz que a linguagem estabelecida oferecia, desde sempre, as condições para a sua própria revolucionarização… Ora, essa não é uma descoberta da antropologia nem uma lei universal, mas sim o resultado incerto de uma aposta subjetiva arriscadíssima que opera “de direito próprio”, subtraindo-se à legalidade vigente e opondo-se a ela de maneira consistente.
Pois bem, algo aconteceu, uma política teve início: coisas foram ditas fora de lugar graças à interrupção de certa partilha dos códigos, da linguagem e das capacidades expressivas. Uma situação foi criada. Nada nos impede de tomá-la como seu próprio contexto, pois nela formula-se a lógica do que passou a acontecer. Atribuir tal situação a outra lógica é o mesmo que restituí-la ao substrato do qual ela já se separou escandalosamente, no exato momento em que embaralhou os códigos disponíveis para prescrever, em descontinuidade com eles, sua própria possibilidade de existência. Diga-se de passagem, o chamado a encarar os acontecimentos políticos em sua irredutibilidade não é totalmente alheio ao livro que me ocupa. Ali, encontramos a citação de uma passagem de Michel Foucault, escrita no calor da Revolução Iraniana, onde o filósofo sugere que “os levantamentos pertencem à história, mas, de certo modo, também escapam dela. O movimento através do qual um homem solitário, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz ‘não quero mais obedecer’ e manifesta a disposição de arriscar suas vidas diante de um poder que acreditam ser injusto me parece irredutível” (Foucault, 1979 apud Ghamari-Tabrizi, 2016: 70). Grifos meus. Esta observação de Foucault – que bem poderia aplicar-se como questionamento ao projeto de pensar as revoluções pelo prisma dos “marcos culturais” sedimentados – não é reconhecida e acolhida pelos autores em toda a sua radicalidade. Eles, ao contrário, parecem mais preocupados em sublinhar os prolongamentos do xiismo no discurso revolucionário iraniano ou em reconstruir as estruturas locais de autoridade que explicam a adesão de algumas populações ao movimento liderado por Khomeini.
Encarar sem reservas o escândalo criativo e autonômico da política é perguntar-se pelo conteúdo e pela efetivação prática – e não tanto pelas formas – do seu dizer excêntrico; um dizer que só pode ecoar no mundo que lhe deu origem à custa de reconfigurá-lo. Para não perder o acontecimento real, para não substituí-lo pelo movimento daquilo que ele já não é, precisamos ser sutis. O acontecimento está situado: seu horizonte coincide com a experimentação paulatina de suas premissas numa circunstância dada, que pode ou não ser excedida. O acontecimento é pontual. Não existe especulação que possa acelerar seu processo e definir a lógica geral de seu devir. O que irrompe é um começo. Convém seguir seu desenvolvimento, avaliar seus efeitos e, chegado o caso, aceitar sua culminação como o desfecho de uma obra que atualizou certas premissas e operou o balanço prático de um possível conjunturalmente inédito.
Perdendo o acontecimento
A “antropologia da revolução” só reconhece seu próprio direito: o direito de raspar os fenômenos ditos revolucionários em busca da matriz que supostamente os define. Feito isso, todo o trabalho analítico-interpretativo resume-se em extrair dessa matriz alguns princípios de transformação do mundo que são totalmente genéricos, ou seja, indiferentes ao que está em jogo num acontecimento político situado. Vejamos com mais atenção como os antropólogos da revolução se dispõem a explicar um caso específico – o da Revolução Haitiana. Em seguida, contrastemos sua orientação analítica com outro tipo de abordagem que também se debruça sobre os “mesmos” fatos, mas sem dar as costas à singularidade que os caracteriza.
Para Cherstich, Holbraad e Tassi, o movimento revolucionário no Haiti teria “nascido” de “práticas cosmológicas”:
“o vodu se tornou o meio da revolução porque os escravos viajaram quilômetros para cantar, dançar e praticar seus ritos para os camponeses dispersos, gerando espaços de congregação e resistência nos quais puderam questionar as regras e as formas da escravidão. Consequentemente, as estruturas rituais do vodu transformaram-se em ferramentas para a organização da ação revolucionária e não surpreende que o primeiro líder da Revolução Haitiana, Boukman, fosse um papaloi ou alto sacerdote” (148).
E mais adiante:
“A cosmologia, as religiões e práticas de possessão espiritual localmente existentes oferecem o fundamento não apenas da rebelião, mas também da definição de uma nova ordem política. No Haiti, os rituais vodu se transformaram no terreno onde a revolução foi encaminhada […]” (149)
Esta apresentação da situação haitiana no final do século XVIII expõe dramaticamente aquilo que uma “antropologia da revolução” precisa deixar de lado quando delimita seu próprio domínio discursivo: dele restam excluídos os obstinados esforços intelectuais e organizativos localmente necessários para construir e partilhar não exatamente uma visão do cosmos, mas sim, e fundamentalmente, uma definição específica de como um mundo pode ser exposto à transformação de acordo com práticas inovadoras e categorias especiais de pensamento que constituem, elas sim, o meio e o fundamento da ação coletiva emancipatória.
Numa interessante análise das diferentes etapas e formas de pensamento que constituíram o acontecimento político chamado Revolução Haitiana, Michael Neocosmos (2016) relata que a rebelião dos escravos foi formalizada numa cerimônia vodu celebrada em Bois Caïman. Ali, Boukman – mencionado, também, pelos autores de Anthropology of Revolution – teria declarado o seguinte aos seus camaradas: “couté la libeté li palé nan cœur nou tous!” (“Ouçam a liberdade, ela fala nos corações de todos nós”). Há dúvidas sobre se esta cerimônia realmente aconteceu (Buck-Morss, 2013: 122). No entanto, de acordo com Neocosmos, o certo é que a categoria libeté (“liberdade” em créole), juntamente com liberté générale, droit naturel e humanité, foi recorrente durante as diferentes sequências políticas que compõem a Revolução Haitiana. No entanto, estas palavras, herdadas da linguagem de Diderot, Rousseau e Robespierre, receberam, no pensamento de pessoas como Boukman e, principalmente, Toussaint Louverture, uma inflexão que redefiniu os limites da própria humanidade política em escala universal. Isto aconteceu na medida em que, enquanto “homens mantidos na escravidão” (Louverture), os revolucionários haitianos empregaram um vocabulário que supostamente não lhes competia, com o propósito de nomear uma autonomia que seu movimento explorou pela via das armas e anunciou como possibilidade para toda a humanidade.
Com o passar do tempo, o processo revolucionário haitiano foi conhecendo outros desdobramentos subjetivos, de forma concomitante à multiplicação dos desafios com os quais seus protagonistas precisaram lidar. Cabe dizer que um novo mundo não nasce pronto, mas é tecido na superfície da realidade existente até redefinir radicalmente seu semblante. Assim, depois de subsidiar um pensamento antiescravista fundado na ideia de uma única humanidade, a noção de “liberté générale” teve de ser retrabalhada no terreno da construção de outro modo de existência coletiva. Neste ponto, os chamados bossales (ex-escravos nascidos em África) postularam a necessidade de fragmentar as grandes propriedades agrícolas monocultoras em unidades familiares de subsistência. Esta prescrição política colidiu com a estratégia de Louverture e outros líderes revolucionários, que patrocinaram a reintrodução da plantation sob justificativa de que dela dependeria a sobrevivência econômica do Haiti. A partir de 1809, aproximadamente, a liberté générale sinalizaria um debate sobre a relação entre a terra, as pessoas e os cultivos, articulando-se, portanto, como um pensamento da emancipação que transcendia o problema da liberdade jurídica e questionava a necessidade da subordinação laboral em geral. Neste contexto, “os bossales africanos começaram a adquirir a propriedade de parcelas rurais e o sistema de plantation foi amplamente destruído” (Neocosmos, 2016: 79). A partir de então, “no interior da sociedade camponesa, diversos métodos de auto-regulação – muitos deles de origem africana – permitiram restringir a diferenciação e fazer predominar um sistema de igualdade que se manteve à distância do Estado” (ibid.: 80). A permanência desse sistema também exigiu o desenvolvimento de várias formas de restrição das hierarquias e das autoridades, sobre a base de um ideal de generalização da condição de moun mouayen (algo assim como “camponês médio”).
Uma abordagem como a de Neocosmos resguarda-se da tentação de construir relatos imaginários que pretendem recolocar as políticas (ou as “revoluções”) sobre sua “verdadeira” base cosmológica, obliterando o hiato criador que separa esses processos de subjetivação das lógicas de pensamento preexistentes. No que diz respeito ao caso haitiano, as constatações de Neocosmos assemelham-se às desenvolvidas por Susan Buck-Morss em dois potentes ensaios que discutem a particular historicidade da insurreição dos escravizados no Haiti. Através de uma argumentação implacável e bem documentada, a autora desafia certos estudos etnográficos que se concentram em identificar o ressurgimento coerente de elementos religiosos e sociais africanos nas formas culturais do Haiti. Para Buck-Morss, “[…] se os mundos e as estruturas da linguagem cultural tinham permanecido, o que se dizia naquela linguagem, em resposta a eventos históricos sem precedentes, era algo totalmente novo […] nenhum dos precedentes vodu em África poderia ter imaginado alguma vez a tentativa de eliminar por completo o pacto institucional entre senhor e escravo. Nenhuma nação europeia tampouco. A antiescravidão radical em Saint-Domingue não tinha precedentes políticos” (Buck-Morss, 2013:121).
Mais que uma cosmogonia, os revolucionários do Haiti apresentaram a todos nós – assim como fizeram outros revolucionários antes e depois deles – um momento temporário de clareza: “a ideia de um fim das relações de escravidão que chegou muito mais longe do que o pensamento ilustrado europeu do momento poderia chegar” (ibid.: 129). Esta ideia, prossegue Buck-Morss, “é o resíduo de um acontecimento”: algo que, em meio à orquestração de múltiplas formas, códigos e estruturas, definiu para si uma lógica própria e, partir dela, conseguiu traçar, durante algum tempo, seu campo original de possibilidades. É nestes termos que as políticas de emancipação nos convidam a pensá-las. Se nos recusarmos a abordá-las a partir de sua relativa auto-nomia, simplesmente perderemos sua singular grandeza: passaremos a falar de outra coisa que já não lhes diz respeito e que seus protagonistas jamais terão a oportunidade de ponderar ou refutar.
Referências
Bloch, M. (1992). Prey into Hunter: The Politics of Religious Experience. Cambridge: Cambridge University Press.
Buck-Morss, S. (2013). Hegel, Haití e Historia Universal. México: Fondo de Cultura Económica.
Holbraad, M., Cherstich, I., Tassi, N. (2020). Anthropologies of Revolution. Forging Time, People and Worlds. Oakland: University of California Press.
Lan, D. (1985). Guns and Rain: Guerrillas and Spirit Mediums in Zimbabwe. Los Angeles: University of California Press.
Lazarus, S. (2013). La catégorie de révolution dans la Révolution Française In. Michel, N. & Lazarus, S. L’intelligence de la politique. Paris: Al Dante.
Lazarus, S. (1996). Anthropologie du nom. Paris: Seuil.
Neocosmos, M. (2016). Thinking Freedom in Africa: Toward a theory of emancipatory politics. Joanesburgo: Wits University Press.
Rancière, J. (1996). O desentendimento. Política e filosofia. São Paulo: Editora 34.
Turner, V. (1974). O processo ritual. Estrutura e Antiestrutura. Petrópolis: Vozes.
[1] Para Victor Turner (1974), a communitas é uma situação de suspensão temporária das normas estruturais vigentes que ocorre de modo deliberado, geralmente através de mediações rituais. Estas incluem o despojamento das marcações de hierarquia, o estímulo à convivência com os demais sob o signo de uma igualdade genérica e, finalmente, o retorno à estrutura, mediante a imposição de novas insígnias de pertencimento social que reconhecem a nova vitalidade alcançada sob communitas ao passo que tendem a funcionalizá-la num espaço social regrado e hierárquico. Nas palavras de Turner (1974: 161), “a espontaneidade e a imediatidade da ‘communitas’, opondo-se ao caráter jurídico e político da estrutura, podem raramente ser mantidas por muito tempo. A ‘communitas’ em pouco tempo se transforma em estrutura, na qual as livres relações entre os indivíduos convertem-se em relações, governadas por normas, entre pessoas sociais”. Já a liminaridade é uma manifestação da communitas que não chega a constituir um assunto de escolha consciente, configurando-se como artefato contingente da “ação cultural”.
1 comentário em “Antropologias da revolução: ou de como perder os acontecimentos.”
Texto maravilhoso. Tava procurando uma comentário sobre o livro para entender melhor o argumento, que eu achava duvidoso, e esta exposição me fez reconsiderar tudo o que eu li. Obrigado pelo material!