Por Felipe Duarte
O rompimento com a institucionalidade e o direito é medida que se impõe a todos os que buscam um horizonte emancipatório. A forma política estatal e a forma jurídica são engrenagens necessárias ao modo de produção capitalista, constituindo, a partir da derivação da forma valor, uma unidade relacional de mútua implicação (MASCARO, 2019, p. 25 e 39).
Desse modo, sendo as nossas mazelas consequências diretas da dinâmica de valorização do valor, a sugestão de sua abolição, pela via institucional e/ou jurídica, que a sustenta e por ela é sustentada, afigura-se obviamente infantil. A forma jurídica, longe de libertar, mistifica a realidade concreta e afasta qualquer possibilidade de ruptura.
Apesar disso, quem se engaja na construção de um novo amanhã não pode se furtar às determinações de seu próprio tempo. É precisamente nesse contexto que se insere a tributação. Longe de considerá-la elemento central na solução da questão da desigualdade, como pretendem certos reformistas, tal qual Piketty (2014, p. 480-525), a apreensão do movimento lógico e concreto do processo político e jurídico de tributação nos revela potentes formas de intervenção no real.
No Brasil, o discurso hegemônico consolidou a falsa premissa acerca da absurda carga tributária, sendo consectário lógico deste falso consenso nosso fracasso econômico. Este discurso vulgar chega, inclusive, a encontrar respaldo em obras de cunho técnico, por exemplo, em Crepaldi (2019, p. 52):
Uma queixa recorrente entre quase todos os brasileiros é o peso que a carga tributária exerce sobre a vida das pessoas e empresas. Entra ano, sai ano e o Governo Federal sempre anuncia medidas que mexem diretamente no bolso dos consumidores e das empresas.
[…]
O modelo ideal de sistema tributário é aquele em que a participação da carga tributária não deveria ultrapassar os 25% do PIB. Dessa forma, atenderia melhor às necessidades de crescimento vegetativo da economia e da infraestrutura do país.
A carga tributária brasileira de 35,6% do PIB, em verdade, encontra-se abaixo da média de 42,4% dos países da OCDE, conforme destacam Cerqueira e Cardoso Jr (2019, p. 41), em brilhante trabalho publicado na Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento. Mas o que se oculta por trás do mito? Evidentemente, assume relevância o recorrente debate acerca da forma como se distribui a tributação. Isto é, se ela incide diretamente sobre a renda/patrimônio ou indiretamente sobre o consumo.
A estrutura tributária nacional assenta-se, de forma predominante, sobre os tributos indiretos, a saber, aqueles que incidem sobre o consumo, tais como o ICMS, IPI, ISS, PIS, COFINS e CSLL (SABBAG, 2012, p. 183). Todos estes tributos são repassados aos consumidores, independentemente de sua capacidade contributiva, de tal sorte que ricos e pobres, indiretamente, pagam de forma semelhante.
Somado a ampla tributação indireta e à baixa progressividade do sistema, o Brasil é ainda um dos poucos países em que os dividendos a acionistas são totalmente isentos de imposto de renda, cuja isenção foi introduzida em 1995, juntamente com a possibilidade de se deduzir do lucro tributável uma despesa fictícia denominada juros sobre capital próprio (GOBBETI; ORAIR, 2016, p. 07).
O resultado deste sistema tributário não poderia ser mais trágico: classe trabalhadora acaba arcando com a maior parcela dos custos do Estado.
Engana-se, no entanto, quem acredita que a forma de tributação brasileira seja produto da criatividade das autoridades. Em verdade, ela reflete a dinâmica da luta de classe e possui suas raízes em concepções de políticas econômicas muito difundidas nas décadas de 1980 e 1990. A esse respeito, Gobbeti e Orair (2016, p. 07-08) esclarecem, in litteris:
Essa literatura deriva de uma evolução metodológica e histórica da teoria da tributação ótima, que, originalmente, baseada no alegado trade-off entre equidade e eficiência e em hipóteses muito restritivas sobre o comportamento individual e a dinâmica econômica, produzia modelos extremos, em que o IR deveria ter uma alíquota linear e as rendas do capital não deveriam ser tributadas para não distorcer incentivos econômicos.
Por influência de leituras restritivas da literatura de tributação ótima, num contexto em que a revolução novo-clássica dos anos 1970 questionava toda a política fiscal do keynesianismo, construiu-se uma espécie de consenso no mainstream e entre policymakers de que a política tributária, para não introduzir distorções no sistema econômico, deveria se abster dos objetivos distributivos, transferindo-se ao gasto público essa função clássica da política fiscal (grifo nosso).
Sobre a tributação e sua forma arrecadatória, Domenico Losurdo (2019, p. 275-281) assevera que, já em Hegel e Rousseau, ela constituía importante instrumento para atenuar as desigualdades materiais, através de um sistema progressivo. Outro, no entanto, era o posicionamento de Monstesquieu, Locke, Constant, Hobbes e Tocqueville para quem a tributação ideal deveria assentar-se apenas sobre o consumo e de forma linear.
Lenin (1913), sem ilusões reformistas, faz uma defesa contundente da substituição da tributação indireta pelo imposto progressivo sobre a renda, in verbis:
Vemos que a demanda erguida pelos social-democratas [revolucionários] – a completa abolição de todos os tributos indiretos e a substituição destes por um imposto de renda progressivo real, não apenas simbólico – é totalmente realizável. Esta medida, sem afetar as fundações do capitalismo, daria um alívio tremendo e imediato para nove décimos da população; e em segundo lugar, serviria como um ímpeto gigante para desenvolver as forças produtivas da sociedade, expandindo o mercado interno e liberando o Estado dos obstáculos absurdos impostos à vida econômica, que foram introduzidos com o propósito de cobrança de tributos indiretos (grifo nosso).
Afastadas as mistificações liberais, bem como tendo em conta os projetos de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional, impõe-se a rejeição em bloco de qualquer proposta tendente apenas a aglutinar tributos, simplificar a arrecadação, alterar sua nomenclatura ou majorar as isenções ao empresariado de forma leviana.
Em conclusão, na mesma esteira da defesa de Lenin, é imperiosa e urgente, ainda que limitada, a construção de alternativa legislativa pela oposição que tenha por desiderato a abolição da tributação indireta e a radicalização da progressividade tributária sobre a renda, tudo isso com vistas a mitigar os efeitos perversos de nosso capitalismo dependente sobre a classe trabalhadora.
*Felipe Duarte é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Servidor Público Federal e militante de base do SINDJUFE – MS.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERQUEIRA, B. S; CARDOSO JÚNIOR, J. C. Reforma administrativa, mitos liberais e o desmonte do estado brasileiro: Riscos e Desafios ao Desenvolvimento Nacional. Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento. Brasília, v. 9, n. 2, p. 32-64. 2019.
CREPALDI, S. Planejamento tributário: teoria e prática. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
GOBETTI, S. W; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: a agenda negligenciada. Texto para discussão. Ipea. Rio de Janeiro. n. 2190. 2016. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27549. Acesso em: 19/02/2021.
LOSURDO, D. Hegel e a liberdade dos modernos. São Paulo: Boitempo, 2019.
LÊNIN, V. I. Capitalismo e Tributação. 1913. Disponível em: https://18.118.106.12/2019/02/01/capitalismo-e-tributacao/. Acesso em: 19/02/2021.
MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
SABBAG, E. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.