Por Vitor Ferreira.
Em primeiro lugar gostaria de deixar claro que não pretendo aqui inovar em absolutamente nada, não é um debate inédito e muito menos uma descoberta de minha parte, mesmo que traga alguns pequenos elementos para tentar contribuir de alguma forma. Trata-se apenas de uma reflexão sobre o tema com a intenção de difundir e despertar o interesse pelo assunto, numa perspectiva de defesa do que como diria Malcom X “qualquer meio necessário” para emancipação humana
Iniciando o debate o primeiro apontamento que gostaria de fazer sobre o chamado “Socialismo Democrático” é que me parece extremamente redundante utilizar-se da bandeira do socialismo e precisar acrescentar o ‘democrático’. Hora, a defesa do socialismo por si só, no mais básico do que pressupõe o socialismo – a proposta de socialização dos meios de produção, que implica na socialização das riquezas produzidas como elemento mais primário para uma mudança na vida concreta dos trabalhadores e trabalhadoras, que são a maior parte da população de maneira esmagadora – já deveria bastar, já seria a própria bandeira da democracia nunca antes experimentada na história humana de maneira global. Então podemos dizer que acrescentar o “democrático” ao lado de socialismo enquanto bandeira ou no campo político não nos fornece nada a mais do que o próprio socialismo sozinho já propõe. Insistira nessa ideia dizendo que se o trabalhador ou trabalhadora sabe o que significa socialismo, não me parece nada relevante adicionar um substantivo (já que não cumpre papel de adjetivar) a essa bandeira. O mesmo poderia ser dito de “socialismo e liberdade”, se liberdade como já disse o professor José Paulo Netto em um de seus clássicos vídeos palestras de introdução ao marxismo, significa do ponto de vista de Marx “a possibilidade de escolher entre alternativas concretas”, hoje, no meio da pandemia quando boa parte das populações mundiais não tem acesso a vacina, renda, emprego e alimentação, o que implica diretamente em não ter mínima qualidade de vida a partir da saúde física e mental, temos a tradução disso em não se ter escolha sobre se expor ao vírus. Na contra mão disso, o socialismo nos países que passaram por uma revolução (China, Coréia Popular, Cuba e Vietnã cada um à sua maneira) possibilita melhores condições de vida durante a pandemia (mas não só) para os e as trabalhadores ao garantir um lockdown sem que coloque em cheque o emprego, a renda, o acesso a saúde e o acesso a alimentação, oferecendo uma alternativa a exposição do vírus, oferecendo uma possibilidade real da maior parte da população escolher viver e ter um futuro, ou seja, é a própria materialidade da liberdade ou do aumento dos níveis liberdade que o grosso das populações nos países capitalistas não tem, logo, socialismo é liberdade.
Agora vamos sair do jogo de palavras e redundâncias, que por si só não explica muita coisa e parece ficar só num debate de retórica superficial, vamos tentar aprofundar um pouco mais. Se a palavra ‘democrático’ não pode acrescentar nada que os e as socialistas já defendam, que outro papel poderia cumprir o socialismo democrático em quanto bandeira ou ação política? Talvez a intenção seja a de se diferenciar do chamado “socialismo real”, se for esse o caso, isso nada mais é do que parte do processo de autofobia, o medo de ficar e se ver só, o que Domenico Losurdo chama e intitula em uma de suas grandes obras de “Fuga da História”, processo que algumas esquerdas no mundo começam a desenvolver depois da queda do campo socialista encabeçado pela União Soviética. Para quem não entendeu ou não vê a relação entre o processo de autofobia dos socialistas democráticos para com o socialismo real tanto o que se foi, quanto o que ainda se mantém de pé, de forma resumida seria assumir o balanço histórico feito pelo campo liberal-burguês com a negação dos processos históricos revolucionários, seu legado e tradição. Isso acarreta também num “apagamento” da história das experiências de lutas de classes, não só no período do capital x trabalho e sim de maneira bem mais ampla como as lutas revolucionárias anteriores desse período, as próprias revoluções burguesas de enfrentamento ao absolutismo, as lutas de libertação colonial e as lutas dos escravizados. Ao fazer isso se assume a leitura da classe no poder hoje, que como toda classe minoritária e exploradora das maiorias, usa todas armas para acabar com as tentativas de superação da ordem presente, no campo físico e no campo das ideias, por tanto, negar o aspecto de ruptura com a ordem do direito histórico dos povos em usar a violência revolucionária é para além de negar a identidade revolucionária assumir a identidade “democrata” constituída por ideias e valores liberais da própria ordem burguesa. Como disse Lukács em – O processo de democratização – “democracia não pode ser tomada como uma forma política universal que caiba em qualquer momento histórico”, quem faz isso é a própria tradição filosófica liberal-burguesa.
O processo em que se confunde a autocrítica e se assume a autofobia, aceitando o balanço da vitória capitalista, é parte fundamental para eclodir num processo de catabolismo organizacional, ou de degeneração das esquerdas. No campo da Biologia, o catabolismo muscular é um processo metabólico onde se decompõe moléculas complexas, transformando-as em moléculas menores, o processo de catabolismo é mais como um processo destrutivo ao organismo, um processo de quebra de substâncias onde a energia potencial converte-se em energia de movimento, seja para qual movimento for e pra onde for no limite do corpo, até que não se sobre energia e não se tenha capacidade de movimentação muscular (o uso do próprio músculo como fonte de energia para tentar gerar movimento no corpo). Um processo diferente é o de anabolismo, que é um processo construtivo a partir da absorção de nutrientes, mesmo que esses nutrientes não sejam todos da mesma qualidade é deles que se tira o potencial de construção, se converte energia de movimento em energia potencial de qualidade coordenada para construção muscular (transição de energia armazenada, que durante a realização de um exercício dará uma nova forma ao corpo a partir do movimento). No processo de autocrítica (anabolismo) se faz um balanço de todo o ocorrido, se absorve o que foi negativo tomando como dura lição para uma superação e se tira energia (nutre-se) de tudo aquilo que foi positivo, dos acúmulos e demandas da atualidade, cria-se novas sínteses e possibilidades de ação somadas a toda a musculatura adquirida nas lutas históricas, se mantém com independência de classe na luta prática e na luta teórica. Já no processo de autofobia (catabolismo) tira-se energia somente do agora, como se tem “um débito histórico” assumido pelos socialistas democráticos, se mantém em permanente distanciamento e em auto defesa sobre o passado, não se pode absorver nada que tenha tido algum tipo de sucesso prático no campo socialista, porque até se aceita elementos teóricos, mas vai se colocar em movimento a partir de algumas realidades ilusórias do próprio capitalismo, ou de debates superficiais da atualidade como é o caso do fetiche para com os países nórdicos. Uma clara redução nas possibilidades de sínteses de movimento ficando com aquelas que o jogo democrático-burguês permite, como é a eleição burguesa e as disputas institucionais burguesas, é como se aquilo que pudesse movimentar a ação fosse somente o que já é dado, o que leva a uma forma política pouco propositiva e uma diminuição drástica de horizonte tanto nas formas de luta quanto nas possibilidades de transformação, degenerando a complexidade do que são as transformações sociais.
É importante dizer que não é o fato abstrato de negação da história do movimento socialista/comunista que leva a degeneração catabólica, mas sim a simplificação das ações políticas a partir disso, o fato concreto de se abandonar o debate teórico das experiencias do século XX e atuais, suas contribuições efetivas, as formas de luta dos revolucionários (novamente, isso não necessariamente se refere somente ao período da história do capital x trabalho), levando ao abandono e a criminalização da violência revolucionária é o que leva ao catabolismo organizacional. Vejam, as experiências socialistas faziam política pela imposição de tomada do poder por todo e qualquer meio necessário, onde a tática era em primeiro lugar, se ter várias táticas, era parafraseando Lênin “análise concreta da situação concreta”, enfrentando de forma direta por várias frentes a ordem burguesa e isso passava pelas lutas sociais de rua, greves (sem aviso prévio ao estado), formação de quadros, treinamento físico, agitação e propaganda incessantes em favor do socialismo e contra o capitalismo, a construção de formas de aparelhos paralelos ao estado e até disputa eleitoral, sempre visando o horizonte estratégico de tomada do poder quando as condições estivessem postas. O metabolismo das experiências socialistas reais foi nutrido pelas formas expostas acima, o que gerava a energia necessária para ser um movimento coordenado de qualidade de construção organizacional, sempre foi a luta revolucionária de ruptura com a ordem que fez avançar reformas importantes fortalecendo os e as trabalhadores e não partir da pauta reformista para se fazer avançar uma transformação social. Abandonar todas as formas e processos que culminaram nas vitórias, nos períodos de duração do campo socialista e de grande acúmulo de forças é deixar de se nutrir daquilo que gerou energia suficiente para no mínimo construir uma alternativa de poder e enfrentamento ao imperialismo e colonialismo, se distanciar da complexidade do que foram e são as experiências reais implica no processo de catabolismo, em decompor as moléculas mais complexas das formas de luta do movimento socialista (as organizações de esquerda), em transformar o próprio movimento socialista em uma molécula menor.
Tentando elencar mais um ponto sobre o ‘socialismo democrático’, vamos dizer que na realidade a tática não seja reformar o estado, o que seria uma tremenda ilusão, achar que se distanciar do socialismo e da revolução para competir por dentro da ordem permitirá moldar a ordem sem consequentemente se deixar moldar, como se a burguesia e suas instituições armadas e não armadas fossem ter uma espécie de epifania e fossem aderindo a esse processo. Vamos dizer que a tática seja ganhar uma eleição para aí então se propor uma ruptura devido aos conflitos dentro do governo de estado, que para alguns seria a “verdadeira aplicação” do – Programa Democrático Popular – (que se é popular, logo é…) “supostamente abandonado” pelo Partido dos Trabalhadores. O que me intriga nisso é, se existe força social suficiente para eleger um ou uma governante abertamente socialista, que defende a socialização dos meios de produção, que forneça alternativas de escolhas concretas para que os e as trabalhadores exerçam a liberdade e que defende soberania popular, por que esperar que a eleição burguesa lhe de legitimidade eleitoral para transformar a realidade? Existe nisso algum tipo de garantia que não haverá uma contrarrevolução violenta? O imperialismo se tornaria ‘imperialismo democrático’ e respeitaria a ruptura com a ordem de um governo eleito? As respostas para essas perguntas parecem ter mais haver com desejos e fetichismos do que com bases empíricas, ainda mais se levarmos Florestan Fernandes a sério e entender que permanente por aqui, somente a – contrarrevolução preventiva -. Falando em base empírica, seja na vitória eleitoral para reformar de dentro o estado e a sociedade, ou na vitória eleitoral para legitimar uma transição em direção ao socialismo faltou combinar com a história das lutas de classes, pois por dentro da ordem “democrática” burguesa somente o que foi permitido na história como algum tipo de transição sem ruptura violenta foi o de democracia burguesa para estado fascista ou para estado ditatorial militar e nada mais. Hitler e Mussolini não chegaram ao poder por meio da força, o mesmo pode se dizer do neofascismo de Trump e Bolsonaro e da ditadura militar no Brasil que teve STF e mídias legitimando o golpe. É claro que houve ação golpista e interferência imperialista para que esses chegassem ao poder, houve um claro consenso da burguesia com apoio e financiamento para que esses se estabelecessem no poder e a partir daí dar sua forma política ao estado, uma transição do modelo de governo sem ruptura com a ordem burguesa-capitalista. Vale lembrar que mesmo nos processos de transição do feudalismo para o capitalismo houveram lutas de classes e naqueles países como Inglaterra, que não decapitou a monarquia, não o fez decapitando a classe trabalhadora e mantendo viva uma das primeiras fake news da história escrita, alguém com sangue divino escolhido para governar, legitimando um falsa pessoa e um falso cargo responsável por atravessar séculos escravizando e matando milhões de pessoas sem nenhum tipo de julgamento ‘democrático’.
Para finalizar, é evidente que só nos apoiarmos nas experiências passadas e em simplesmente tentar repeti-las não é o suficiente, elas são formas históricas que podem nos auxiliar em encontrar nosso próprio caminho, considerando nossa atualidade e as particularidades nacionais, mas com diria Hegel “o universal se realiza no particular”, e se podemos tirar algo de universal não é a defesa abstrata de democracia (nesse caso composta de valores liberais-burgueses), mas a concretude das lutas dentro e principalmente fora da ordem para construção de uma ruptura da ordem. Num período de crise estrutural, de acumulação capitalista como vivemos hoje o campo da esquerda e os e as trabalhadores de modo geral também está atravessando uma clara crise de subjetividades devido a todo esse processo catabólico de organização a partir da degeneração das formas de luta, produção teórica e horizonte estratégico. Essa crise de subjetividade não pode ser sanada por aqueles e aquelas que “em nome do novo” cometem a autofobia, que parafraseando Gramsci “o velho está morrendo e o novo está com medo de nascer, ou de nascer só”.