Por Pedro Badô
Bolsonaro e os generais do governo não são a mesma coisa. Na verdade, eles vivem uma relação simbiótica, sempre bem descrita por Pedro Marin [1], na qual cada um dos lados tira certas vantagens e também as fornece. O militarismo já gozava de um difuso apreço entres as classes médias, mas foi Bolsonaro quem verdadeiramente arregimentou os contingentes pequeno-burgueses, arrastando parte dos trabalhadores, para consolidar uma alternativa eleitoral. Bolsonaro veio do lumpesinato carioca, ambiente da baixa bandidagem organizada, que inclui policiais expulsos da corporação, milicianos, militares reformados decrépitos, suas viúvas e filhas aburguesadas e trambiqueiros em geral. Os três filhos de Bolsonaro organizaram a expansão de sua influência entre a pequena-burguesia, atingindo o pequeno empresário premido pelo aumento dos salários de seus funcionários, o pequeno proprietário a beira da falência, setores proletários que começavam a perder seu “poder de compra”, bem como amplas camadas das classes médias do interior de país. Muitas vezes o problema assumiu formas de consciência religiosa e moral, como o pânico da destruição da família, da “erotização” das crianças, da corrupção dos valores, da ausência de “ética” na administração pública etc.
A burguesia apostava suas fichas em alternativas mais confiáveis para ela, com menos atritos. O PT foi defenestrado do butim burguês porque dificilmente poderia continuar governando sem fazer concessões a sua base proletária, impondo ao capital perdas inaceitáveis àquela altura da crise. Claro que havia o candidato tucano, velho conhecido da burguesia paulista. Mas o voto popular catapultou Bolsonaro, tornando-o a única alternativa ao PT. Apesar de toda sua instabilidade, seu arcaísmo tradicional (que agrada ao burguês apenas em conversas particulares), Bolsonaro levava a tiracolo Paulo Guedes, economista liberal de extração pinochetista, que apesar da pouca fama, não esboça nenhum tipo de caráter, bem ao gosto do “mercado”. Os mais incautos acreditavam que poderiam constranger Bolsonaro fazendo o admitir que não sabia nada de economia, mas o capitão sempre fez questão de dizer que o assunto estava nas mãos de Guedes. Isso era música para os ouvidos do capital. Liberdade de ação para um canalha com fundamentos teóricos que beiram a perversidade humana. Foi nessa barafunda que os generais decidiram embarcar.
Os militares não só entraram como fiadores do governo de um reconhecido idiota, como também viram nessa oportunidade a chance de mostrar suas fuças oficialmente na política. É evidente que os generais são mais inteligentes que Bolsonaro, mas isso não é nenhum mérito. Ingressaram nesse governo com um projeto próprio, entraram enquanto “casta” burocrática organizada. Mas se engana – ou pretende enganar – quem diz que os militares são técnicos, “pragmáticos” e científicos em oposição à “ala ideológica” do governo. Ideologia nem sempre está em oposição à cientificidade, à objetividade. As formas ideológicas podem ter elementos científicos ou não. Certamente mais racionais que Bolsonaro, os generais não deixam de compartilhar convicções com o capitão, vendo nele uma particular e original forma de expressão da histórica brutalidade brasileira que os agrada. Há quem tenha esquecido que o comedido, racional e bem relacionado general Mourão acredita que o branqueamento funciona como melhoramento racial [2].
De um ponto de vista rigorosamente marxista, os exércitos nacionais permanentes, genericamente, são uma forma específica de organização que surge na esteira da necessidade de estabilização e domínio de territórios para a expansão do capital. O Exército brasileiro não foge à regra, mas tem peculiaridades. Erigido sobre a violência colonial, as Forças Armadas são centrais na formação histórica do país, sendo protagonistas de eventos nada dignificantes. A Guerra do Paraguai, a repressão popular na República Velha, a participação no Estado Novo, a pressão golpista – primeiro sobre Vargas – que desembocou em 1964, quando os generais finalmente implantaram uma ditadura sanguinária de 21 anos. Corrupção, prisões, torturas, assassinatos, genocídio indígena e todo tipo de covardia. Mas temos visto os generais se sentirem ofendidos e injustiçados ao serem cobrados por isso.
As complexas relações entre as classes sociais forjadas na via colonial de constituição do capitalismo brasileiro parecem sempre legar ao Exército um certo protagonismo, uma ação relativamente autônoma na vida social do país. Claro, o Exército não é uma classe social. Em última instância, seus movimentos são sempre balizados pela dinâmica do capital, pela ação política da burguesia. Isso, no entanto, não elimina o fato de que, muitas vezes, os militares buscam realizar interesses próprios enquanto parte relevante da burocracia estatal. Tal fato em si não é uma particularidade da nossa formação nacional, basta que vejamos Marx argumentando sobre os interesses próprios do comando do Exército francês n’O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Mas a ideia de que os militares são incorruptíveis, são guardiões de qualidades divinas e que por isso devem liderar e merecem independência para ser a régua moral do país, os leva à ação mais decidida na vida nacional recorrentemente. Figuras como Góes Monteiro e Golbery do Couto e Silva [3] – guardadas suas diferenças – não são exceções, mas sim a síntese mais elaborada desse conteúdo ideológico que tem como um dos elementos a superioridade moral dos militares sobre os civis. Como já dito, a consciência sobre questões da sociedade brasileira se cristalizam em formas específicas, sejam reacionárias ou progressistas, mobilizando e lançando à ação parcelas da sociedade. Essas formas de consciência, essas formas ideológicas, muitas vezes se apresentam como aquilo que poderíamos chamar aqui de militarismo – ou carregam elementos deste -, extrapolam, inclusive, os quartéis e atingindo outros setores sociais, tal como o “jacobinismo” florianista ou as diferentes matizes do tenentismo.
Tal fato é matéria para uma investigação pormenorizada entre a formação histórica das Forças Armadas e sua expressão ideológica ( na qual devemos sempre lembrar de Werneck Sodré). A questão aqui é atentar para a necessidade de desmascarar a falsidade da versão dominante de que os militares estão do lado da democracia ou, ao menos, da ordem constitucional. Na verdade, os generais não são apenas um dos agentes históricos da miséria brasileira, como também são “cúmplices” da atual tragédia que se abate sobre nós. Os generais têm plena consciência e participação no morticínio projetado pelo governo durante a pandemia. É verdade que isso é uma bagatela perto de outras coisas feitas por eles – como a missão internacional do abjeto general Heleno, o carniceiro do Haiti [4].
Até o final do mês de junho, questionamos como seria possível que os liberais e seus jornalões esquecessem do dia em que o comando das Forças Armadas, na pessoa do general Villas-Bôas, pressionou o STF com um tuíte em desfavor de Lula [5]. Como poderiam ter esquecido do relato de Toffoli sobre os preparativos de um golpe militar [6]? E Pazuello – carrasco a serviço de Bolsonaro – que foi acobertado pelo comando do Exército [7]? E as recentes declarações golpistas e chantagistas do general Mattos [8]?
Mas a marcha dos acontecimentos tem nos dado razão. A rusga entre o senador Omar Aziz e os pirracentos ministro da Defesa general Braga Netto e comandantes das Forças Armadas deu mais um sinal da sanha golpista, do pó de mico que coça dentro das fardas. A mídia liberal burguesa até pouco tempo dizia que os generais eram democratas bem instruídos, agora repercute com preocupação a crise “entre os poderes da República”. Setores menores ainda alegam que é pura bravata, pois os generais não possuem condições de dar um golpe.
É verdade que os gorilões fardados são falastrões e que não contam mais com a popularidade que possuíram até os anos 1980. Sim, não estamos em 1964. Mas não podem os revolucionários duvidar, em primeiro lugar, da covardia e da brutalidade do generalato, que nunca hesitou em trucidar o mais desarmado indivíduo. Em segundo lugar, cabe não duvidar da atualidade da “vocação histórica” de mediador da luta de classes que possuía as Forças Armadas brasileiras. Não diríamos que os generais farão de tudo para salvar Jair Bolsonaro, mas certamente fariam para manter a salvo suas fardas. Bravata ou não, a temperatura aumenta. Todos sabem que Bolsonaro sonha com um golpe e que não o concretiza porque não se garante. Sua popularidade cai, é preciso vender cada vez mais a alma ao parlamento, a agenda de Guedes avança devagar demais e o capitão, no cercadinho, grita cada vez mais alto convocando sua tropa de choque lúmpen e pequeno-burguesa para ações golpistas, além da ameaça de extrapolar as “quatro linhas da Constituição”. O pedido por um impeachment vem das ruas. Convenientemente, há um general na linha sucessória da presidência. Há convulsões sociais nos países ao lado, as quais arrancaram uma nova Constituição no Chile e impuseram dias de greve geral na Colômbia. Quem ousaria adivinhar qual será o comportamento dos generais nesse balaio de gatos? Não se trata de imaginar teses conspiratórias sobre um golpe, mas apenas um desavisado poderia olhar ao redor, para a situação latino-americana e global, e duvidar da barbárie.
A cumplicidade dos “democratas” com os generais vinha sendo total. Seus grandes jornais queriam convencer a todos que o Exército é apenas vítima de Bolsonaro [9]. Lula vivia a dizer que tem boa relação com os generais. Ciro Gomes tenta salvar a alma da instituição militar dizendo que os atuais generais são uma vergonha para o “Exército de Caxias” – o também carniceiro Caxias! Os principais meios de comunicação buscavam desconectar os fatos, confundir a ligação lógica da atuação dos generais, colocando estes sempre como bons senhores republicanos. Todos os tais “democratas” – que convocam por aí a “comunhão de interesses democráticos”, frente amplas pela democracia e outras bobagens ilusórias – cotidianamente dão sinais de que estão dispostos a dialogar. Como bons oportunistas, vendo que os gorilas estão montados no poder e não pretendem deixá-lo, gente da covardia de Lula e Ciro – ou um outro liberal qualquer – não negaria um acordo para que possam existir em sua mesquinhez institucional enquanto os generais permanecem exercendo o poder que conquistaram.
Com a rusga entre Aziz e Braga Netto, o Estadão e o Globo se pronunciaram contra a chantagem dos generais e em “defesa das instituições” [10]. A defesa que os jornalões burgueses faziam da suposta parcimônia dos generais foi obviamente contestada pela adesão dos três comandantes – Marinha, Aeronáutica e Exército – à nota pirracenta de Braga Netto contra Aziz. O comandante da Aeronáutica, corroborado pelo comandante da Marinha, chegou a dizer que estão dando apenas um primeiro e único aviso, pois um “homem armado não ameaça” [11].
A imprensa liberal aderiu à oposição a Bolsonaro porque sabe que tal personagem é passageiro. Seu objetivo é desgastá-lo enquanto protege o cerne do projeto de liberal prometido por Paulo Guedes. Para isso, contava com alguma esperança de que os generais, “técnicos e pragmáticos”, poderiam vender sua fidelidade a esse liberalismo. Mas estão vendo que a vontade dos militares de andar de mãos dadas com Bolsonaro é um pouco longeva do que calcularam. Isso pode ter diversos motivos. Na luta política para se agarrar ao poder muitos elementos se somam e vão marginando a possibilidade de que os planos originalmente idealizados se realizem completamente. Assim, obviamente os militares não agem apenas como querem. Se a popularidade eleitoral de Bolsonaro, seu falatório reacionário e brutal, elevou os gorilas diretamente ao centro do poder do Estado, os generais devem sempre ter em seus cálculos os desejos de Bolsonaro como um dos elementos da conjuntura. Recentemente, as investigações da CPI que apontam para a corrupção envolvendo parlamentares bolsonaristas no Ministério da Saúde e para quadros militares [12], traça, ao menos momentaneamente, interesses comuns de se protegerem entre o capitão e seus subordinados generais.
Devemos nos lembrar que quando os militares embarcaram nessa, ninguém poderia imaginar que o mundo seria tomado por uma pandemia. Como defendemos em outro lugar [13], Bolsonaro planejava um golpe – não sabemos se acreditava que parte do Exército o seguiria -, mas teve seus planos completamente interrompidos pela dinâmica imposta pelo vírus. Com certeza, os generais também tinham planos próprios que foram, ao menos, modificados e tiveram que se adaptar à conjuntura. Logo, como afirmamos, viver de suposições não nos levará a nada. O fato é que os generais retornaram à vida pública e parece que para ficar. Devemos lidar com aqueles fatos que podemos constatar, sem cair em previsões apocalípticas. É dever dos revolucionários responderem à altura às ameaças – fanfarronas ou não – de um dos principais algozes da classe trabalhadora brasileira, um dos principais serviçais do capital. Nossa resposta deve sempre ser desde o ponto de vista de nossa classe, o proletariado, ultrapassando as posições democratistas e pequeno-burguesas. Estamos construindo atos de rua cada vez mais significativos contra o governo Bolsonaro, os quais nem mais as grandes emissoras e veículos da imprensa liberal conseguem ignorar. É hora de agitar e demarcar nossa posição proletária.
É preciso evidenciar que a tal “politização” do Exército, posta nos atuais termos, é um engodo que pretende espalhar a ideia de que as Forças Armadas são “instituições de Estado” e não de “governo” e que, por isso, são originalmente imparciais. As Forças Armadas, como já dito, compõem o corpo do Estado e são, precipuamente, forças da classe dominante. Todos os grupos da ordem – partidos, meios de comunicação, movimentos etc., inclusive aqueles que se posicionam à esquerda – querem convencer que o problema é apenas eleger alguém que “depolitize” as Forças Armadas. Nós, pelo contrário, pretendemos “politizar” cada vez mais a questão militar. Estamos falando de uma instituição de papel histórico brutal que nunca foi publicamente reconhecida por isso. Uma instituição em que os praças recebem um soldo entre 2 mil e 6 mil reais, enquanto os generais chegam a receber 30 mil reais com gratificações.
Disputar os soldados para o nosso lado é uma ideia que merece alguma atenção. Mas é claro que não devemos nos perder em tal objetivo. A sublevação revolucionário de soldados, observando suas devidas particularidades, parece que sempre esteve ligada à questão de transformar a guerra entre nações em uma guerra civil de classe contra classe, na qual o soldado deixa de ver o inimigo em outro povo e passa a identificá-lo em seus próprios generais e na burguesia de seu país (podemos aqui citar o caso da Comuna de Paris em 1871 e a Revolução Russa de 1917). Assim, devemos estar cientes de que, hoje, as Forças Armadas brasileira contam com um contingente reduzido, com um total de 334,5 mil militares na ativa. Também não estamos metidos em nenhuma guerra e, por tudo isso, mesmo sabendo que parte significativa dos praças provém de camadas médias e pobres da população, dificilmente encontraremos condições de trazer o soldado para o campo da revolução nesse momento. O essencial é evidenciar a canalhice dos generais, um grupo que desfruta de uma vida de regalias, com altos salários [15], o que os aproxima do modo de vida dos ricaços. Tudo isso usando a força das armas como chantagem, enquanto os trabalhadores têm fome, vendem o próprio couro para sobreviver e morrem infectados pelo vírus. Os gorilas, quando não estão empunhando seus rifles, estão usando canetas para materializar suas imbecilidades. Por sua identificação com a burguesia, facilmente vendem suas consciências por aumento de seus salários e do orçamento militar.
O segundo ponto é destacar a imoralidade que permeia os círculos do generalato. É provável que em pouco tempo venham à tona evidências de corrupção envolvendo o alto escalão militar. É preciso transformar tais denúncias em palavras de ordem! De quebra, é hora de acertar as contas. Cobrar pela covardia, pela crueldade dos assassinatos, das torturas e dos estupros perpetrados contra os combatentes da classe operária e dos camponeses brasileiros. Os generais devem prestar contas, mesmo porque os que hoje aí estão, são pupilos de bandidos como o general Médice e Amaury Kruel [16]- este último vendeu sua lealdade ao presidente João Goulart por propina paga pela FIESP.
Devemos fazer todo o possível para enfrentar tais questões – para lembrar das palavras de Lênin – “de maneira revolucionária”, isto é, em absoluto acordo com a estratégia socialista. O fio nos guia do centro dos gabinetes dos generais aos escritórios de negócios da burguesia. Constatar que a formação do capitalismo brasileiro é profundamente autocrática não pode ser mero exercício teórico de historiografia. Sem enfrentar os instrumentos da dominação burguesa no Brasil, nós perdemos o fio da meada. Deixamos de enfrentar uma das mediações do poder do capital, que é tão real e concreta quanto o próprio capital. Se não colocamos na ordem do dia tais questões, perdemos a chance de demonstrar o caminho lógico da revolução socialista e damos espaço ao reformismo, ao etapismo, ao ufanismo e a toda sorte de maluquice pequeno-burguesa. Antes de tudo, devemos ter a clareza de que, contra o poder material das armas militares, só o poder da classe trabalhadora organizada e consciente pode vencer. Por isso, não podemos perder a chance histórica de mostrar a podridão daqueles que comandam as armas.
Entre nossas palavras de ordem devemos deixar claro que os generais são serviçais da burguesia! Vendem-se facilmente em troca de mais dinheiro e poder!
Nós não queremos gorilas gerenciando nossas vidas! Queremos os militares imediatamente fora do governo! Os generais mataram e torturaram na ditadura militar de 1964 e agora também são responsáveis pelas mais de 500 mil mortes de brasileiros pelo coronavírus!
[1]https://revistaopera.com.br/2021/06/10/pazuello-bolsonaro-e-os-generais/
[2]https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/06/mourao-cita-branqueamento-da-raca-ao-falar-que-seu-neto-e-bonito.htm
[3]https://revistaopera.com.br/2020/11/27/a-politica-no-quartel-o-quartel-na-politica/
[5]https://www.otempo.com.br/brasil/tuite-de-general-villas-boas-sobre-lula-foi-discutido-por-ministros-de-bolsonaro-1.2447248
[6]https://veja.abril.com.br/politica/dias-toffoli-o-stf-deve-oferecer-solucoes-em-periodos-de-crise/
[10]https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/nao-ha-espaco-para-o-silencio.html
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,chega-de-chantagem,70003774824
[13]https://pcb.org.br/portal2/25267/quem-podera-dar-o-golpe-no-brasil/
[14] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/tamanho-polvora-forcas-armadas-brasil/
[15]https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/05/salario-bolsonaro-reajuste/