O desmoronamento da universidade pública e a proletarização da classe média

Por Yuri Freire

A universidade pública brasileira, que viveu seus anos áureos durante os governos democrático-populares, hoje passa por ataques sistemáticos que ameaçam sua existência. Diante disso, e em meio ao caos econômico, a classe média egressa da universidade se vê frustrada e sem horizonte.


O choro e ranger de dentes é generalizado entre acadêmicos brasileiros. Notícia após notícia, o que se vê cotidianamente são os cortes constantes e profundos nos órgãos fomentadores de pesquisa científica no Brasil. Exemplo notável disso é a involução orçamentária da Capes e do CNPq: se, em 2015, seus orçamentos somados foram de 13,4 bilhões de reais, em 2021, somam cerca de 3,6 bilhões[1]. Em outubro de 2021, outra notícia chocou: a pedido do Ministério da Economia, o Congresso Nacional aprovou uma realocação de recursos que cortou em 92% as verbas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação[2].

Esses fatos exibem a falta de visão estratégica e de projeto para a universidade pública brasileira. O que se torna cada vez mais cristalino é que, primeiro nos anos 1990, e, agora, nos pós-2016, a universidade pública se tornou um mero excremento inconveniente que os tecnocratas ultraliberais ainda não conseguiram extirpar. E por que ainda não conseguiram? Privatizar a universidade pública geraria uma comoção social grave, além de desencadear movimentos de luta e resistência de grande monta. Desfinanciá-la aos poucos, lhe asfixiar lentamente, parece ter sido a estratégia adotada, entretanto.

Nessa missão, os tecnocratas da área econômica, profetas do deus Mercado e asseclas do (neo)liberalismo autoritário, contam ainda com a ajuda da tropa de choque do fascismo. Disparos em massas de notícias falsas associam a combalida e heroica universidade pública brasileira ao que há de pior. Nesse processo, se constrói o consenso ideológico necessário para deslegitimar a instituição e autorizar subjetivamente sua extinção. É aí que se encontram Paulo Guedes e Jair Bolsonaro, Mansueto Almeida e Olavo de Carvalho, Adolfo Sachsida e Allan dos Santos.

O ultraliberalismo mofado e autoritário, requentado dos anos 1980 e cuja agenda de “reformas estruturais” não trouxe ao Brasil mais do que desemprego, inflação e fome, desorganizou o processo de expansão do ensino superior implementado durante os governos do PT (2003-2016). Muito embora esse processo tenha praticamente privatizado o ensino superior brasileiro, a partir de programas como Fies e Prouni, que empoderaram megacorporações transnacionais de educação privada, o ensino público também passou por uma ampliação nunca antes vista.

Nesse mesmo caminho, o sistema público de pós-graduação também experimentou um enorme aumento de tamanho nas últimas décadas. Se no ano de 1998 existiam 1891 programas de pós-graduação, em 2011, estes eram 3866 (CIRANI; CAMPANARI; SILVA, 2015). As matrículas em mestrado acadêmico, que foram 37.233 em 1987, em 2018 seriam 288.538 (CABRAL et. al, 2020).

Esse enorme crescimento, produto de mobilização social e de compromisso histórico de governos democrático-populares, entretanto, impõe reflexões sobre sua sustentabilidade. Um sistema de pós-graduação de tal magnitude – e é justo que assim o seja – só é sustentável em uma conjuntura econômica expansiva, de crescimento econômico substantivo e com ampliação permanente do sistema universitário. Do contrário, a quantidade considerável de quadros qualificados formados pela pós-graduação será supranumerária. É o que se vê, quando se constata que o Brasil amarga um dos piores índices de desemprego entre doutores do mundo[3].

Idealmente, um projeto de país demanda, necessariamente, quadros qualificados para pensar, planejar e decidir sobre os rumos da formação econômico-social nacional. Apesar disso, o que se vê, historicamente, é uma conjuntura política e econômica que atira mestres e doutores em um mundo de desemprego, precarização e baixa ocorrência de concursos públicos. Não é de se estranhar que a desesperança, a incerteza e o medo sejam afetos dominantes em qualquer conversa informal entre acadêmicos brasileiros – especialmente entre pós-graduandos. Afinal, enfrentar uma década de estudos, passando por graduação, mestrado e doutorado, e, mesmo assim, não ter boas perspectivas profissionais, gera uma imensa frustação. Esse é o drama de toda uma geração de acadêmicos órfãos dos anos lulistas.

Não é estranho, portanto, a imensa fuga de cérebros que acomete a universidade brasileira. Também não são estranhas as desistências pelo meio do caminho. Não são poucos os enormes talentos acadêmicos que abandonaram ou abandonarão os estudos pós-graduados por falta de uma bolsa – ou porque esta é insuficiente para se manter. Não são poucos os graduados e mesmo pós-graduados que trabalham como motoristas ou entregadores por aplicativo, vitimizados pelo fenômeno da precarização uberizada.

Dentro dessa conjuntura sorumbática, cabe pensar se a universidade pública ainda cumpre o papel de prestígio e de distinção sociais que historicamente exerceu. Essa instituição foi/é o núcleo de formação da classe média brasileira, justamente por formar gestores, administradores, altos e médios funcionários públicos, profissionais liberais etc. Mas isso ainda é possível dentro de uma economia marcada por uma onda longa recessiva? O regime de acumulação neoliberal, sua tendência à financeirização e o consequente débil crescimento econômico permitem que esses quadros qualificados aspirantes à classe média realizem sua vocação?

Parece que cada vez menos. A universidade sobrevive, mesmo subfinanciada, formando, continuamente, quadros profissionais qualificados. Apesar disso, a economia brasileira, depredada pelo velho neoliberalismo, segue cada vez mais primarizada, financeirizada, desnacionalizada e com baixos índices de demanda efetiva e de investimento. A consequência é uma grave contradição entre formação acadêmica e mercado de trabalho – este sendo determinado pelo grau de dinamismo da economia. Em outras palavras, isso quer dizer que a árdua formação em nível superior (ou ainda em pós-graduação) pode resultar em nada mais do que… desemprego! Em outras hipóteses, também há a possibilidade de atuação fora da área de formação, especialmente no setor informal.

É nesse sentido que se pode enxergar a proletarização da classe média brasileira. Seu lugar de origem, a universidade, já não é capaz de garantir a ascensão socioeconômica esperada. O desemprego, a precarização, a insegurança alimentar etc. passam a ser problemas, também, de quem foi formado no espaço privilegiado da universidade.

Tal é o resultado da devastação generalizada provocada pelas classes dominantes. A tragédia anunciada da austeridade fiscal pode ser observada na deterioração da universidade pública e na decadência da classe média. Salvar a universidade pública, dar sentido, função, projeto e emprego aos seus estudantes é uma das pautas básicas da reconstrução do Brasil. Sem isso, doutores seguirão vendendo bolo de pote para sobreviver.


Notas:

[1]https://www.nexojornal.com.br/grafico/2021/10/20/Or%C3%A7amentos-da-Capes-e-do-CNPq-ca%C3%ADram-734-desde-2015

[2] https://www.cartacapital.com.br/politica/congresso-aprova-corte-de-92-de-recursos-da-ciencia/

[3] https://primeirapauta.ielusc.br/2020/12/10/brasil-forma-mestres-e-doutores-para-o-desemprego/


Referências:

CABRAL, T. L. O. et al. A Capes e as suas sete décadas: trajetória da pós-graduação stricto sensu no Brasil. Revista Brasileira de Pós-graduação-RBPG, v.16, n. 36, 2020.

CIRANI, C. B. S.; CANPANARIO, M. A.; SILVA, H. H. M. A evolução do ensino da pós-graduação senso estrito no Brasil: análise exploratória e proposições para pesquisa. Revista da Avaliação da Educação Superior, v.1., n. 20, 2015.


* Yuri Freire é sociólogo e mestrando pela UFRN.

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