Rosa Luxemburgo e a derrota na Revolução Alemã de 1919

Por Gabriel Landi Fazzio

A partir de um dos últimos escritos de Rosa Luxemburgo, uma série de questões podem ser erguidas, no tocante às trágicas derrotas do movimento revolucionário comunista e seu potencial para ir além da repetição histórica.


A derrota de 1919

Nascida na Polônia, a revolucionária Rosa Luxemburgo foi assassinada em 15 de janeiro de 1919.  O auge do sufocamento da Revolução Alemã de 1919 foi seu corpo atirado a um canal de Berlim, ao lado de mais alguns companheiros. A social-democracia consolida seu poder, em coalizão com as forças do antigo regime. A Constituição de Weimer precisou que o proto-fascismo derramasse sangue em seu favor, e vigorou somente o tempo necessário à consolidação do fascismo. Uma boa exposição é oferecida pelo companheiro Valério Arcary.

Nunca é demais lembrar, no entanto, como a social-democracia iniciou seu primeiro governo em toda a história: por convocação do próprio chanceler imperial. Friedrich Ebert foi o último Chanceler do Império Alemão, até que eu 11 de fevereiro de 1919 virou Presidente da Alemanha. Um democrata exemplar! Ainda que não tenha saído dele a ordem para assassinar Rosa, fato é que a leniência da social-democracia alemã com o proto-fascismo foi sua mais fatal marca: a própria consolidação do poder republicano contra a insurreição proletária dependeu imensamente de violência armada de tais grupos. Não é de espantar, portanto, que a Fundação Friedrich Ebert se proponha até hoje a “promover a democracia e o desenvolvimento, contribuir para a paz e a segurança, criar uma globalização solidária” – e, claro, para isso, apoie o regime de Angela Merkel, cujo imperialismo é reconhecido mesmo no mundo das finanças (decerto qualquer frustração aparente é menos de princípio e mais de interesse tático). Estar associado ao nome de Friedrich Ebert é uma das vergonhosas manchas que carrega o Partido dos Trabalhadores, em sua guinada cada vez mais funda rumo ao oportunismo.

É preciso tirar o véu de glória que cobre toda a atrocidade por trás dessa “vitória” dos “direitos sociais”. Preferível, nos termos de Rosa Luxemburgo, a memória lúcida da derrota:

Onde estaríamos hoje sem estas “derrotas” das que tiramos a experiência histórica que nos permite reconhecer a realidade das coisas em toda a sua dimensão? Na atualidade, quando temos conseguido chegar já ao limiar da batalha final, é precisamente quando melhor podemos reconhecer que é sobre todas essas “derrotas” sobre as que nós ficamos em pé. Não podemos prescindir de nenhuma delas, porque cada uma das mesmas faz parte da nossa força atual.

Vitória na derrota e derrota na vitória.

Este é justamente o contraste e a aparente contradição que diferencia as lutas revolucionárias das lutas parlamentares. Na Alemanha contamos com quarenta anos de “vitórias” parlamentares, de forma que pode dizer-se que durante todo este tempo estivemos marchando de vitória em vitória, sendo o resultado a grande prova histórica de 4 de Agosto de 1914: a derrota política e moral mais catastrófica e inesquecível.

 […]

A ordem reina em Berlim!… Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não reparastes em que a vossa “ordem” está a alçar-se sobre a areia.”

Há algo aqui mais profundo do que uma grandeza de espírito que exalta como “tudo vale a pena”; ou da consideração de Darcy Ribeiro: “Os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Aqui, Rosa parece retomar a tese marxiana sobre um importante elemento distintivo do movimento revolucionário proletário. Em seu “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, Marx nota, sem qualquer pessimismo, como:

A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase. […]

As revoluções proletárias […] se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: aqui está Rhodes, salta aqui!”

Marx parece apostar que essa constante crítica abria à revolução proletária a potencialidade de não apenas encenar, sob a fantasia dos fantasmas do passado, uma revolução como a burguesa – que ora se vestiu de República e ora de Império, mas de todo modo invocava formas da antiguidade quando, em seu conteúdo, carregava a própria modernidade. Do mesmo modo, Rosa apresenta as derrotas do passado como fonte prática da experiência histórica, e pinta um quadro onde as lições aprendidas dos fracassos de ontem se empilham sob os pés dos revolucionários que, no presente, travam sua luta cada vez de um patamar mais elevado.

Alguns anos mais tarde, Lenin apresentaria semelhantes considerações, em seu balanço da Revolução de Outubro, ao falar sobre “recomeçar do começo, de novo”:

“Estão condenados aqueles comunistas que imaginam ser possível realizar um empreendimento histórico como assentar as bases da economia socialista (especialmente em um país de pequenos camponeses), sem cometer erros, sem retrocessos, sem numerosas alterações àquilo que falta completar ou ao que foi malfeito. Os comunistas que não têm ilusões, que não se deixam vencer pelo desânimo e que conservam a força e a flexibilidade para “recomeçar do começo”, de novo, e ainda outra vez, encarando uma tarefa extremamente difícil, não estão condenados (e muito provavelmente não perecerão).

18 anos após sua mais famosa obra, “Reforma ou Revolução”, a acidez de Rosa contra a social-democracia só fez aumentar – talvez não na mesma velocidade que a própria degeneração da social-democracia progrediu. Rosa deixou a vida e a política do mesmo modo como lutou por anos: sem qualquer ilusão quanto aos gritos raivosos da “democracia” parlamentar contra a ditadura do proletariado. Diante de uma crise revolucionária de grandes proporções, Rosa passou seus últimos meses anunciando em alto e bom som sua convicção inabalável na causa da emancipação do proletariado, lastreada em sua síntese da experiência histórica:

Realizar o socialismo pela via parlamentar, por simples decisão majoritária, mas que projeto idílico! É aflitivo ver que esta fantasia cor-de-rosa caída dos céus nem mesmo tem em conta a experiência histórica da revolução burguesa e ainda menos o carácter próprio da revolução proletária.

[…]

O parlamentarismo, é verdade, foi uma arena da luta de classe do proletariado e isso enquanto durou a vida tranquila da sociedade burguesa. Foi então uma tribuna do alto da qual nós podíamos juntar as massas à volta da bandeira do socialismo e educa-las para a luta. Mas, hoje, nós estamos no próprio coração da revolução proletária e trata-se agora de abater a própria árvore da exploração capitalista. O parlamentarismo burguês, assim como a dominação de classe burguesa que foi a sua razão de ser mais eminente perdeu a legitimidade. Agora, a luta de classes irrompe de cara descoberta, o Capital e o Trabalho nada mais têm a dizer um ao outro, já só lhes resta agarrar-se num amplexo de ferro e decidir a sorte desta luta mortal.

Mais do que nunca a frase de Lassalle é hoje atual: o ato revolucionário consiste sempre em exprimir o que é. E o que é chama-se: aqui o Trabalho — acolá o Capital! Não à hipocrisia de negociações amigáveis lá onde se decide da vida ou da morte, não à vitória de causas comuns onde há dois lados da barreira. Claro, franco, sincero e forte com esta clareza e esta sinceridade, o proletariado, constituído em classe, deve tomar em mãos todo o poder político.

“Igualdade de direitos políticos, democracia!”: eis o que não cessavam de repetir durante dezenas de anos os grandes e os pequenos profetas da dominação de classe burguesa.

“Igualdade de direitos políticos, democracia!”: repetem hoje em eco, os lacaios da burguesia, os Scheidemann.

Sim, mas trata-se precisamente de a realizar presentemente. Pois a palavra de ordem «igualdade de direitos políticos» só se tornará realidade no momento em que a exploração econômica tiver sido extirpada radicalmente. E «a democracia» — enquanto poder exercido pelo povo — só começará no dia em que o povo trabalhador tomar o poder.

É preciso fazer a crítica prática, a crítica tornada ato histórico, das frases de que abusaram as classes burguesas durante um século e meio. É preciso que as «liberdade, igualdade e fraternidade» que a burguesia proclamou em França em 1789 se tomem pela primeira vez realidade — pela abolição da dominação de classe da burguesia. O primeiro ato desta ação libertadora será declarar alto e forte perante o mundo inteiro e perante os séculos da história universal: o que passava até ao presente por igualdade e democracia, isto é o Parlamento, a Assembleia nacional, o boletim de voto para todos, era uma mentira! Todo o poder, arma revolucionária da destruição do capitalismo, às massas trabalhadoras — essa é que é a única verdadeira democracia!

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