Por Rodrigo Gonsalves.
Abaixo, reproduzimos a discussão entre Jacques Alain Miller e Jacques Rancière acerca dos eventos ocorridos em janeiro de 2015 em Paris. Uma troca de cartas que, novamente, edita a discussão política e posturas ideológicas distintas dos pensadores franceses da atualidade. A entrevista de Ranciére que iniciou o debate foi traduzida anteriormente.
Resposta a Rancière.
07 de Abril de 2015.
Por Jacques-Alain Miller,
Acabo de ler em l’Obs seus apontamentos expressos a Eric Auschimann e, eu não sei se vivemos no mesmo país, o que posso dizer – talvez nem no mesmo planeta, que o vi dizendo logo no início da entrevista, “todos, é claro, concordam em condenar os ataques de janeiro”. Tamanha flagrante inverdade, que desencoraja polêmicas. Eu mordo minha língua. Você tem o campo livre para explicar, como preferir, o que você quis dizer com essa sentença. O que então é esse “Todos, é claro”? Você nos mostrará e eu ficarei em deleite em conhecer esse “todos” de boa companhia, mesmo se um bom número de pessoas estiver fora dele.
Sob reflexão, eu acredito que você quis dizer que você não estava do lado dos assassinos e, se você dissesse isso estranhamente, é porque você não está mais ao lado daqueles que foram mortos.
Este “todos” que é todos é, se pensarmos à respeito, o problema do universal. Você deplora que o universalismo fora “capturado e manipulado”, “transformado no sinal distinto de um grupo”. Mas a podridão adentrou, quero dizer por dentro do próprio conceito. Universalistas não são tão tolos ao ponto de estar desavisados de que eles não são “todos”. Se existem universalistas, isto se dá porque existem particulares, sem contar singulares. Segue que universalismo nunca é qualquer coisa senão o “sinal distintivo de um grupo”. E que particulares, para o seu lado, estão no direito de denunciar o universalismo enquanto o particularismo de universalistas.
Isso não é desarrazoado. Aqueles que pensam “os grandes valores universalistas”, como você os chama, são apenas o novo look dos instrumentos imperialistas ocidentais, são uma legião. São a maioria da assembleia geral da ONU. Sobre isto, Putin e seus filósofos “Slavophilos” (Slavophile), os mestres da China, da Arábia Saudita, Iran, o novo califado Islâmico, sem mencionar o mais recente falecido Lee Kuan Yew, criador de Singapura (de sua independência), e os irmãos Castro, todos concordam.
Você disse o mesmo da França. Nomeadamente que os grandes princípios universalistas que agora são usurpados por uma vontade de dominação que trabalha para atormentar “uma comunidade específica”. Logo, você nega um universalismo que não apenas comporta xenofobia e racismo. Aí, eu digo: pare.
Distinguir os termos internacionais dos termos nacionais. Em relação ao concerto das nações, não é absurdo pensar que é melhor admitir que o universalismo é um particularismo, nosso, do que então teimosamente tentar fazê-lo universal. Como, neste caso, o Universal botté (Universal inicializado) deve ser invocado dos mortos, aquele que antes dava corpo, sob os auspícios dos Direitos Humanos, pelo famoso “devorador de homens”, o Imperador Francês. Mas na França, em nome do que você busca obter dos indígenas, que eles submetam seus particulares – que é universalista – ao particularismo de uma “comunidade específica”?
Quando Aeschimann lhe questionou sobre o véu e a emancipação da mulher, você respondeu: “O status da mulher no mundo muçulmano é certamente problemático, mas é primeiramente interessante livrá-los daquilo que os oprime. E, geralmente, são aqueles que suportam a opressão da luta contra submissão. Não se liberta o povo por substituição”.
Sua última sentença, analise bem a objeção de Robespierre à Brisset, quando o último estava chamando a França revolucionária de uma “cruzada pela liberdade universal”:
A ideia mais extravagante que pode brotar na cabeça de um político, é crer que é suficiente para que pessoas entrem com armas em punho no território de outra nação, para compeli-los à adotar seus leis e constituição: nenhuma pessoa ama missionários armados; e o primeiro conselho que a natureza e a prudência dão é repeli-los enquanto inimigos. (Discours au club des Jacobins, le 2 janvier 1792) (Discurso ao Clube dos Jacobinos, 02 de janeiro de 1792).
Mas esse ponto não responde a questão que fora posta. Não se trata de guerras externas. Aeschimann não conversou com você sobre libertar os afegãos ou os sauditas, ele lhe perguntou sobre a emancipação do véu dos franceses. Protelar aos maneirismos do “mundo muçulmano” quando questionado sobre o destino de seus compatriotas, e referi-los à suas responsabilidades, isso não cola. Isso é ofuscar o problema e brincar de Pôncio Pilatos. A potencial responsabilidade destes não é apenas responsabilidade deles, tão pouco pertence à “comunidade particular”, concerne a comunidade nacional como um todo. Eu não vejo você mais inspirado quando você considera que liberdade de expressão não estava, de modo algum, envolvida no massacre editorial de Charlie, e que este é apenas polarizado logo em seguida para “desqualificar parte da população”. Você vê na liberdade de expressão “um princípio que governa a conformidade entre indivíduos e o Estado”.
Não, Rancière. Por que o massacre de 7 de janeiro despertou uma emoção incomparável com a propiciada pelo atentado a bomba das estações de Madrid em 2004, com seus 200 mortos e 1400 feridos? É repentino que, uma vontade manifesta no coração de Paris, anunciando à humanidade como um todo que, sob pena de morte, certas coisas não deveriam ser ditas ou representadas em lugar algum do mundo. Essa exorbitante demanda da lei das nações testemunhou ao louco desejo por submissão universal. O massacre deu vazão às mais diversas reações: terror, rebelião, resistência, mas também compreensão, apoio e admiração.
Na realidade, isso já havia sido latentemente apresentado desde 14 de fevereiro de 1989, no famoso fatwa de Ayatollah Khomeini. Lembre que esse fatwa convidou todos os muçulmanos, o mundo dos crentes, para executar Salman Rushie sem sentença, para matar seus editores, também, assim como qualquer um com conhecimento sobre o livro dos Versos Satânicos. O mestre do Iran assim mostrou como ele poderia abertamente, impunemente, condenar blasfemos de inúmeros estados estrangeiros à morte em seus próprios territórios. Você dirá que liberdade de expressão, lá não mais, estava envolvida porque a situação se mantém para além do escopo da definição que você aprendeu?
Uma ação recíproca curiosa. Um truque bacana. Enquanto o Ocidente era forçado à admitir, de má vontade, que seu universalismo era um particularismo, o particularismo muçulmano provou-se um universalismo. O Universal inicializado está de volta entre nós. A tentativa neo-conservadorista americana falhou, agora é a vez do universal muçulmano, de montar a cena da história e jogar “com a alma do mundo”.
Isso também irá falhar. Por um lado, está dividido, consumido por dentro pela cisão que coloca Sunis e Xiitas um contra o outro. Por outro lado, democracias possuem a resiliência que totalitarismos falham em reconhecer, os vendo emasculados, corruptos e caóticos. Você parece entender mal, do seu lado, o aspecto transnacional das dificuldades francesas.
Há um universalismo judeu, como as sete leis de Noé aplicadas para todos [não-judeus também], mas isso é universalismo sem proselitismo o núcleo de onde é clamado o particularismo para um povo escolhido. Havia um tempo em que o universalismo cristão era jovem, tônico, e por vezes sanguinário: mas agora se satisfaz com a ladaina ecumênica. O universalismo do comunismo apenas sobrevive como memória e esperança. Isso deixa o espaço de competição dos universalismos para o capitalismo e o Islã.
O acordo nuclear recente acertado com Irã mostra que Obama está construindo sob poder leve para subverter, por dentro, o austero estado islâmico. Ele aparenta esperar pelo dia em que iremos nos entender para que o Teerã tenha o mais recente iPhone, Apple Akbar! Não será tão longe do que o substituir com o antigo Takbir. As boas vindas entusiastas do mesmo acordo com mais fanático dos revolucionários iranianos mostra que eles não acreditam em nada disto. Um luta de Titãs: quem irá vencer, os gadgets ou o Um? O objeto ou o significante-mestre? Irá isso resultar no casamento da produção intensa e identificação nacionalista, à lá China?
O particularismo russo expressa querer brincar com os meninos grandes do universalismo contemporâneo. Faz recurso ao reavivar a teoria escatológica de “Moscou como a terceira Roma”. Nós observamos isso marcando a orbita da extrema direita européia diariamente. Irá a sua Internacional mais longe?
Quanto ao particularismo francês, não tem mais ambições do que Maurras ao inspirar De Gaulle: aqueles que fizeram da velha nação, líder dos pequenos e médios poderes, resistindo aos Impérios. Eles meramente mantiveram seu “modelo”, que não é mais modelo para ninguém. Seu sarcasmo contra o secularismo francês – e não é por outro – eu leio semanalmente no Jornal Wall Street, no Financial Times. O povo Frances, todos dizem, mais um esforço se você quer ser capitalista: seja multiculturalista, liquide seu Leitkultur (cultura dominante), permite a livre passagem para o povo e seus produtos, e assegure que todos apreciem pacificamente seus amores, roupas e comidas.
Ótimo truque, novamente, quem vê os defensores, disto que você nos conta, dos mais explorados dos explorados, trabalhando para o Rei da Prússia.
Você faz o partido Socialista ser o coveiro da esquerda. Esse enviesar do papel desenvolvido pelo partido Comunista é o sepultamento do Homme-de-Gauche (pessoa de esquerda). Em sua altura sob Thorez, o PCF, moscovita até os ossos, conseguiu emergir como um partido nacional mais nacionalista ainda. Outro truque: deixou para si, longe de se enraizar na nação, perdendo seu sentido.
Você mesmo não quer olhar na atenção dada ao fator nacional que “galopa à direita”. Você espera pelos “movimentos democráticos em massa”, abandonando o nós não sabemos zou [onde]. Pelos últimos quarente anos, você apenas lembrou dos “desastres econômicos” e do “caos geopolítico”. E ainda você que é um dos mais distintos pensadores da esquerda da própria esquerda.
Massa é mencionada. Os proletários são a Frente Nacional. A esquerda da esquerda encolhe. A esquerda escorrega ao centro. A oferta da direita, de Sarkozy à Juppé, é mais distante. Esse é o novo acordo.
Com minhas melhores memórias,
JAM.
Por Jacques Rancière
Na noite passada encontrei essa resposta de Jacques Rancière à minha carta aberta de 07 de abril. Ele deixou ao meu critério para ser considerada privada ou “resposta pública à minha carta”. Aqui está. Eu tomo essa oportunidade para endereçar seus pontos e objeções e, por isso lhe agradeço.
– JAM, 10 de abril, 2015.
Caro Jacques Alain-Miller,
Você se pegou pensando se vivemos no mesmo planeta. Da minha parte, eu penso se estamos falando do mesmo texto.
Você disse que estava curioso para saber que “todos” são estes a qual me refiro, que estão de acordo com a condenação da chacina de 07 de janeiro. Penso que você socializa com eles diariamente. Minha sentença se refere a grande parte do consenso das opiniões publicas expressas na França logo depois do ataque. Haviam, é claro, vozes relatadas, histórias de estudantes colegiais que achavam que os ataques foram merecidos. Mas essas vozes foram reportadas precisamente como aquelas de um outro mundo. Minha sentença se referia ao consenso da voz mundial onde eu fora convidado a falar, que é também disto que você fala. Indica que eu não estava me distinguindo do consenso e que eu estava falando de um outro lugar. Falando então, ao fundo das coisas.
Você me acusou de negar o universalismo sob o pretexto de que não é mais um veículo atual, hoje, da xenofobia e do racismo. E você generosamente me inclui aos ditadores de onde os “grandes valores universais” são apenas o novo look do instrumento do imperialismo ocidental. Da minha parte, eu nunca parei, desde “As lições de Althusser”, de me opor àqueles para quem o universalismo, aos direitos dos homens, liberdades formais, humanismo ou democracia são apenas uma máscara para exploração e dominação. Eu não mudei, e eu não vou mudar quanto a isto. Por isso mesmo me preocupe em ver que, há uma ou duas décadas agora, um discurso “universalista” se desenvolveu que parece se destinar à dar razão aos ditadores em questão e para todos que compartilham de sua opinião. Claro que universalismo é sempre de um grupo particular de humanos. Isso não quer dizer que não se deve ser consistente aos seus próprios princípios. Quando universalismo é aplicado de um modo, quando é encontrar assimilado a um sistema de leis e restrições – até mesmo praticando bullying – o que apenas pode concernir a um grupo particular da totalidade que supõe regular, quando brandiu arrogantemente enquanto a marca da distinção entre “nós” e “eles”, isso apenas serve para fortificar e radicalizar nestes que se encontram eles mesmos, apontados, de fato, ao sentimento de que é uma mentira servindo apenas para oprimir. Então, contra estes que arruínam isso pelo fato de, defenderem o universalismo.
Eu não estou desprezando as meninas de véu da França. Minha proposição segundo a qual cabe aos interessados em saber o que é opressivo para estes e, que não libertemos pessoas por substituição, concerne primeiramente às questões do véu na França. Sobre o primeiro ponto, uma vez aprendemos que o que uma vez parecia ser o mais opressivo em termos de exploração do trabalho não era necessariamente aquilo que aos interessados mais o fazia sofrer. Isso também se aplica no caso às condições da mulher muçulmana e meninas aqui, e nós sabemos que há para eles, uma multiplicdade de maneiras de interpretar o véu – até essa provocação. É por isso que acredito que a “comunidade nacional” tem coisas mais importantes para fazer e que, a maneira como a situação fora “nacionalizada” reforçou muito as tensões identitárias que clamavam combater.
Sobre a liberdade de expressão, eu digo que a definição estrita concerne à relação entre o Estado e aqueles que expressam sua opinião. Você me confrontou com a reação de uma vontade que se anunciava “da humanidade como um todo que, sob pena de morte, algumas coisas não podem ser ditas ou representadas em lugar algum do mundo”. Nós podemos falar sobre o impacto universal que os irmãos Kouachi deram ao seu ato. Mas eu mantenho que o problema posto por tal vontade não pode ser confinada ao enquadre da “ liberdade de expressão” ou “liberdade da imprensa”. Nos eventos de 07 de janeiro, um tal Jacques-Alain Miller escreveu que “em lugar algum, (n)unca (n-ever, nunca-sempre), desde que existem homens, fora permitido dizer qualquer coisa”, pelo o que penso, ele não quis justificar o crime, mas lembrar que a questão entre o que é dito e não dito, assim como a questão dos efeitos da palavra, excedem qualquer definição legal da liberdade de expressão. Sempre houve, sempre haverão pessoas prontas para matar por uma palavra que os entristece. O problema é do saber, como, dentro de uma particular comunidade – neste caso da comunidade francesa ou da comunidade destes que moram na França – nós podemos assegurar que estes não Irão aumentar, e que seus atos não irão evocar admiração e apoio de uma parte maior da população. E por isso a simples afirmação de que há um direito em dizer qualquer coisa, intrinsecamente ligado à identidade francesa, não é apenas insuficiente mas é contra-produtivo, porque é mister que o próprio diretor do Charlie Hebdo declarou, sob risco de demissão, não ter direito de dizer qualquer coisa em seu jornal. É necessário um pouco mais de habilidade para seguir em frente, um pouco mais de compreensão das razões entre os outros, para ver que o que ele podia e não podia concordar sob aquilo que nós podemos ou não podemos comprometer para que, aqueles que precisam viver juntos, o façam de acordo com modalidades diferentes do assassinado ou da diminuição do outro. Há também a responsabilidade de cada individuo sob o aquele parece para ele ou para ela, dizer ou não dizer e, como seu dizer desta palavra é esperado ser ouvido. Aqueles que entoam o multiculturalismo quando essas coisas são mencionados estão mal intencionados.
Você finalmente fala do meu sarcasmo acerca do secularismo francês e apresenta um espectro não de um pós-comunista ou de ditadores islâmicos mas da bem-pensada imprensa anglo-saxã. O que disse sobre secularismo é o seguinte: um “secularismo” foi inventado nos últimos anos que nada tem relação com o que existe há mais de séculos na França. O último envolve o Estado e suas instituições, começando pela acadêmica. E a luta dos militantes por secularismo era a luta para assegurar que os fundos públicos fossem destinados às escolas publicas. Nós inventamos recentemente um secularismo que não é mais obrigado ao Estado mas aos indivíduos. Nós o inventamos como uma obrigação universal que estava preocupada com um objeto bastante particular – um pedaço de roupa transformado numa mensagem de propaganda religiosa – e dentro de uma categoria muito bem definida, jovens mulheres muçulmanas. Se você quer criticar o que digo sobre secularismo, é necessário provar que essa radical transformação do conceito não ocorreu ou que ela é boa. Mas isso não é o que você quer fazer. E sobre o resto, você se queixa à mim que o Partido Socialista não está apenas matando a esquerda e que o Partido Comunista também tem sua responsabilidade nisto. Minha intenção não era alocar pontos bons e ruins. Isso é simplesmente um fato, o Partido Comunista, apesar de tudo que fez nas últimas décadas, nunca conseguiu matar a esquerda e que o socialista, tão pouco, conseguiu absorvê-lo e matá-lo. Além disso, como você não define qualquer espaço político do qual você se situa, não há razão para permanecer com sonhos futuros dos quais você me julga ser uma ingênua vítima.
Atenciosamente,
Jacques Rancière.